Em todo grande país, há cidades de dois tipos diversos. Umas vivem, trabalham e palpitam concentradas em si mesmas. Os fatos que nelas ocorrem não excedem em importância a medida pequena dos acontecimentos da vida cotidiana, e sua repercussão não vai além dos limites municipais. São as cidades que desfrutam a modesta e serena ventura de não ter História, e acompanham com olhar distante e indiferente o que se passa nos grandes centros onde se decidem os destinos dos povos e das civilizações. Outras, pelo contrário, se associam intimamente, pelo pensamento e pela ação, a tudo quanto de relevante, de grave, de novo se faz no cenário nacional. O pensamento de seus filhos se abre avidamente para as influências que vem de fora. Sua atitude não se limita a ser receptiva. Suas elites analisam, ponderam, tomam posição, e o seu pronunciamento, ecoando além das fronteiras municipais, repercute por todo o país, contribuindo de maneira eficaz para a determinação de rumos e a escolha de soluções.
Os campistas jamais se contentaram com a existência trivial e plácida das cidades sem História.
A índole ativa de seus filhos impeliu-os sempre a uma vida de trabalho que fez de Campos um dos centros mais dinâmicos da economia nacional. De outro lado, a intensidade de nossa vida intelectual e cívica atraiu constantemente para nós os olhares de todo o Brasil. E, assim, de geração em geração, foi crescendo nosso progresso, do qual podemos enumerar índices dos mais lisonjeiros, no início desta segunda metade do século XX.
Campos é hoje o maior município açucareiro do Brasil, situando-se assim na vanguarda da economia nacional. A facilidade das modernas vias de comunicação lhe proporciona contato fácil e constante com os maiores centros do país. Seus cem mil habitantes, servidos por todos os recursos próprios a uma grande cidade contemporânea, se revelam ávidos de cultura. Temos 5 estabelecimentos de ensino secundário, 3 escolas de comércio, 3 escolas normais. Proporcionalmente ao número dos habitantes nossa imprensa atingiu um desenvolvimento notável, possuindo 6 diários, entre os quais nos apraz destacar um dos decanos da imprensa nacional, o "Monitor Campista", com uma existência já mais do que centenária. A Associação Campista de Letras e a Sociedade Fluminense de Medicina e Cirurgia são um expressivo padrão de nosso progresso intelectual. Nossa elite social, constituída de usineiros cultos e viajados, de numerosos advogados que labutam neste grande centro judiciário que é Campos, de engenheiros, de mais de 200 médicos, acompanha com lucidez e carinho a evolução de todas as grandes questões do momento. O senso dos problemas sociais não lhe falta, como atesta o funcionamento de obras tais como a Policlínica, a Maternidade, o Hospital Infantil. Associações pujantes, como a Associação Comercial ou a Associação Campista de Imprensa bem demonstram do que é capaz entre nós o espírito associativo no campo intelectual como no econômico.
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E no campo eclesiástico?
Temos todos consciência de que ao lado de nossos êxitos intelectuais e econômicos, também podemos mencionar com ufania um título de glória no terreno religioso? Sabemos o que significa, em nossa bela e ampla Catedral, o trono episcopal, já ilustrado pela virtude peregrina de dois Bispos, Dom Henrique Cesar Mourão e Dom Octaviano Pereira de Albuquerque? Sabemos que Campos é a metrópole eclesiástica de uma imensa circunscrição, que abrange um milhão de habitantes e mais de 17.000 km2, ou seja, um terço do Estado do Rio?
Que missão tem a cumprir em Campos a Igreja? Que obrigações resultam para Campos, em face das diversas cidades da Diocese, e de todo o Brasil, das muitas graças espirituais e temporais que recebeu?
A Igreja exerceu uma influência profunda na formação espiritual, cultural e social do povo brasileiro. A Fé Católica é o substractum da alma nacional. Nossos costumes, nossa História, nossas instituições se plasmaram segundo os princípios da civilização cristã. E é o caráter cristão de nossa civilização o maior título de nossa ufania.
Todas estas afirmações, que valem plenamente para o passado, e também — dentro de certa medida — para o presente, devem ser igualmente válidas para o futuro. Cumpre que o desenvolvimento de nossa cultura, a evolução de nossas instituições, a ascensão de nosso progresso se faça sob a inspiração ativa e constante do pensamento católico, e dentro das normas da civilização cristã. Esta a tarefa para a qual vem tendendo os esforços da Igreja em todo o Brasil. Queremos de nossa parte exercê-la em Campos com uma intensidade e um esmero sempre maior, bem lembrados de uma verdade que acresce singularmente nossas responsabilidades. Todo país tem — do ponto de vista militar — seus postos-chave, cuja conquista determina automaticamente a sorte de uma guerra. O mesmo se pode dizer das lutas ideológicas. Por seu progresso, por sua cultura, por sua influência no cenário nacional, Campos é ideologicamente, um dos postos-chave do Brasil. Cumpre, pois, desfraldar e firmar aqui, em todos os domínios da vida pública e privada, o estandarte triunfante da Realeza de Cristo.
* * *
É este o objetivo com que lançamos hoje "Catolicismo". Nossa folha visa contribuir para proporcionar à elite intelectual e às organizações religiosas católicas da cidade e de toda a Diocese, uma visão sintética dos principais acontecimentos nacionais e mundiais no campo religioso, filosófico, literário, político, social e artístico, completada sempre por uma apreciação feita do ponto de vista da doutrina católica. Por esta forma, contamos proporcionar à intelectualidade campista meio seguro e cômodo de analisar o desenvolvimento da grande tragédia contemporânea - à qual está ligada o Brasil como membro da comunidade das nações cristãs do Ocidente — do único ponto de vista que realmente interessa: na imensa confusão em que vivemos, estamos nos afastando de Jesus Cristo, ou estamos retornando a ele? Quais as ideologias, os partidos, os sistemas, os homens que aproximam o mundo de Jesus Cristo; quais os que Dele o afastam?
"A opinião pública é a rainha do mundo", escrevia Voltaire. Em nossos dias, esta afirmativa se torna cada vez mais verdadeira. Formar a opinião tem sido o objetivo constante de todas as forças ocultas ou não, que vem tentando desde o século XVIII, ou quiçá, desde o século XVI a conquista do mundo.
Devemos lutar para evitar o monopólio da opinião por estas forças, instituindo uma imprensa genuinamente nossa, através da qual proclamamos os fatos e os princípios que tantas vezes são negados, ocultados, subestimados, nos ambientes formados pelo espírito laicista, liberal e naturalista e profundamente maçonizado de nossos dias.
Por certo, não faltam em nossa cidade mentalidades lúcidas e vigorosas, que por si mesmas possam analisar à luz dos princípios católicos o evoluir da crise contemporânea. Mas estas mentalidades, em Campos como por toda a parte, são minoria. E mesmo para elas seria insano o trabalho de informação e de análise que um tal estudo exigiria para ser completo.
"Catolicismo" visa incumbir-se deste trabalho. Acompanhando os fatos pela leitura direta dos jornais e revistas mais interessantes do Brasil e do Exterior, analisamo-los com o concurso de intelectuais católicos em evidência nos maiores centros do País, e pomos o fruto deste esforço ao serviço da intelectualidade campista.
Nada, porém, do que é de Campos fica circunscrito só a Campos. Desejamos registrar em nossas páginas os ecos da intelectualidade campista, e, pela difusão de nosso jornal em outros centros do País, assegurar a irradiação da alma católica campista em todo o Brasil.
Seria supérfluo dizer que objetivos tão elevados não são compatíveis com a competição dos interesses privados, das ambições pessoais, do espírito de clã que infelizmente ainda marca tão a fundo a vida política do Brasil. Assim jamais haverá lugar em nossas colunas para considerações direta ou indiretamente tendentes a nos levar a um terreno em que não podemos nem queremos ingressar. □
J. B. Pacheco Salles
É inegável a importância sempre crescente, que se atribui à Justiça Social em nossos dias. Por toda a parte, na plataforma dos políticos, na pregação dos sacerdotes, na ideologia dos reformadores, na propaganda dos revolucionários, encontramos a preocupação dominante da Justiça Social. Em nome da Justiça Social derruíam-se instituições milenares, destroem-se tradições imemoriais, modificam-se fronteiras, desaparecem e criam-se países, faz-se a paz e a guerra. Neste mundo moderno, conturbado, dividido, retalhado, em que ninguém mais se entende, encontramos, entretanto, uma coisa que é o alvo comum da todas as seitas, de todos os partidos, e todos os governos: a Justiça Social. Assim sendo, existe uma grave obrigação de se procurar conhecer a verdadeira natureza deste poder quase miraculoso e decifrar o sentido profundo destas palavras mágicas, a fim de que a Justiça Social não seja como aquele Deus Desconhecido, que os atenienses adoravam, mas ignoravam. Só assim nossa "devoção" será autêntica, distinguindo-se da superstição ou da idolatria.
A primeira vista, parece haver uma corno tautologia na expressão "Justiça Social". Seria pouco mais ou menos como "sombra escura". "líquido fluído", "círculo redondo", ou chover no molhado. Os antigos não a conheciam. S. Tomás, que tratou longamente da justiça, distinguiu três espécies: a legal, a distributiva e a comutativa, mas não fez qualquer referência a uma justiça social. De fato, para S. Tomás toda justiça é essencialmente social, pois "non est nisi unius hominis ad alium", e somente em sentido metafórico alguém pode ser justo para consigo mesmo (Cf. IIa. IIae., Q. 58, art. 2) E esta relação de um homem para outro, que é a matéria própria da justiça, pode ser considerada de duas maneiras: "Uno modo, ad alium singulariter consideratum. Alio modo, ad alium in communi: secundum scilicet quod ille qui servit alicui communitati servit omnibus hominibus qui sub communitate ill a continentur" (Ibid art. 5). A justiça nada mais é do que a reta razão no uso das coisas exteriores em relação às outras pessoas (Ibid., art. 11). O anacoreta, o homem que vive no deserto, pode ter a disposição interior da justiça, mas não pode exercer concretamente os atos próprios da justiça, porque lhe falta o indispensável ambiente social.
Entretanto, modernamente, criou-se a expressão "Justiça Social". Passando por cima da sua propriedade, que é que se procurou designar com ela? O melhor meio de se precisar o significado de uma expressão confusa ainda é indagar a sua origem histórica. Como é sabido, surgiu no século passado, como um dos resultados das transformações sociais determinadas pela revolução francesa, a chamada Questão Social. Em suas linhas mais simples, esta questão se punha do seguinte modo: uma porção da coletividade, a minoria, gozava de todas as vantagens e facilidades da civilização, ao passo que a grande massa gemia sob o peso de condições de vida quase insuportáveis. E tudo isto acontecia dentro dos quadros jurídicos de liberdade, igualdade e fraternidade, estabelecidos pela revolução e consolidados por Napoleão. Formalmente, não havia abusos nem violências, e os direitos de todos eram igualmente sagrados e respeitados. Tudo estava em ordem, numa sociedade bem policiada. Na verdade, tudo estava profundamente em desordem. Mas a opressão das camadas inferiores não partia de uma oligarquia dominando truculentamente pela força: era o resultado natural da ordem jurídica existente. Não se iam tirar, violentamente, ao operário, individualmente considerado, as suas posses, nem era ele reduzido à escravidão para prestar trabalhos forçados. Mas, pelo fato de pertencer à classe operária, já ficava numa condição em que certos direitos fundamentais, inerentes à natureza humana, não se tornavam efetivos. Tratava-se, portanto, de fazer justiça, não a indivíduos singulares, mas a toda uma classe enquanto classe. A isto se chamou, e se chama ainda hoje, "Justiça Social".
A Justiça Social supõe, assim, como ponto de partida e verificação objetiva dos fatos, que a sociedade está dividida em classes, e que entre estas classes há uma desigualdade. E sobre este ponto não há discrepâncias. As divergências surgem quanto ao tratamento a ser dispensado àquela realidade social pela Justiça Social. Uns acham que a divisão da sociedade em classes desiguais, hierarquicamente sobrepostas, deve ser mantida, consistindo a justiça em se reconhecer concretamente às camadas inferiores aqueles direitos sem os quais não é possível uma vida segundo a dignidade humana. Outros vão mais longe, e pensam que haverá injustiça enquanto houver desigualdade entre as classes. Por fim os mais extremados têm por ideal uma sociedade sem classes, como sendo o único estado compatível com a igualdade humana. A bem dizer, destas três posições, só a primeira e a última são coerentes, pois a segunda se dissolve naturalmente na terceira. De fato, ou as classes são estratos qualitativamente diferenciados da sociedade, ou não passarão de especializações funcionais na sociedade. Ora, nem mesmo os mais extremados adeptos da sociedade sem classes (como Karl Mannheim, por exemplo) negam a necessidade inelutável de especializações funcionais, e até do aparecimento de elites em cada uma delas. Assim sendo, a única alternativa é entre uma sociedade hierarquizada, onde reina a desigualdade, ou o absoluto igualitarismo de uma sociedade sem classes, uma open mass society.
Além disso, — e ainda sempre como uma verificação objetiva dos fatos — nota-se que, por Justiça Social, entende-se, de um modo quase absolutamente geral, a melhoria da situação material dos operários. Senão por palavras, pelo menos por atos se procede como se a Justiça Social nada mais fosse do que dar melhores salários, melhor alimentação, melhor habitação, mais repouso e mais divertimentos aos operários. E, quando se faz referência à situação moral e espiritual dos trabalhadores, é como se fosse apenas uma resultante da situação material, de maneira que as deficiências éticas nada mais seriam que a consequência das deficiências econômicas: os patrões seriam os únicos responsáveis dos pecados dos operários. Parece que o marxismo, que por primeiro chamou a atenção sobre a Justiça Social, a infeccionou de algum modo, de forma que há um certo materialismo latente e prático no fundo de muita justiça social, mesmo da que é levada a efeito por pessoas de convicções declaradamente espiritualistas.
Entretanto, já Leão XIII havia chamado a atenção para este grave desvio, na encíclica Graves de Communi, de 18 de Janeiro de 1901. Se a voz dos Papas tivesse mais repercussão, mesmo entre o elemento católico, muita desorientação e muitos males seriam evitados. Mas, vejamos o que diz a encíclica sobre este ponto: "De fato, alguns espalham e fazem crer a muitos que a assim chamada questão social seja apenas econômica, ao passo que é absolutamente certo que ela é principalmente moral e religiosa, e que, portanto, é preciso resolvê-la à luz das leis morais e religiosas. Aumentai, pois, o salário ao operário, diminui-lhe as horas de trabalho, reduzi-lhe o preço dos gêneros; mas si o deixais, como demasiadamente acontece embeber-se de certas doutrinas e refletir certos exemplos que o induzem a despojar-se do respeito de Deus e a corromper os costumes, fadigas e bens lhe serão arruinados. Uma experiência quotidiana ensina que grande parte dos operários, embora trabalhem menos e percebam melhores salários, se têm uma conduta depravada e privada de religião, vivem ordinariamente numa deplorável miséria. Tirai das almas aqueles sentimentos que são o fruto de uma educação cristã: tirai a previdência, a moderação, a parcimônia, a paciência e semelhantes virtudes morais que a própria razão ensina, e vereis que todos os maiores esforços para se obter a melhoria da vida não terão resultado."
Leão XIII descreveu profeticamente os nossos tempos. Os Estados modernos, inspirados pela "peste do socialismo" — como este mesmo Pontífice o chama — assumiram os encargos da Justiça Social de um modo puramente leigo e materialista. A partir desta base, trataram de substituir aquelas virtudes morais de previdência, moderação, parcimônia e paciência pela Previdência Social absoluta e indiscriminada, pela Assistência Social e pela planificação econômica. Ficou assim o operário dispensado de organizar virtuosamente a sua vida, porque o Estado pensa por ele, prevê por ele, faz por ele. O Estado assumiu, desta forma, tudo aquilo que devia constituir a personalidade do operário, a sua dignidade de homem moralmente livre, responsável e capaz de dirigir os seus destinos, reduzindo-o a uma perpétua menoridade a ser tutelada do berço ao túmulo. O resultado são o descontentamento, as dificuldades, a miséria, a fermentação onímoda do mal-estar, a sensação de insegurança e a precariedade de uma ordem econômica cada vez mais artificial, que vai sendo levada por expedientes, pois o Estado não é onipotente para dar conta da tarefa sem limites que se arrogou. E, além disso, a profunda desvalorização e consequente desmoralização da massa operária, reduzida à condição de rebanho, ao qual se aplica o critério exclusivo do trabalho, fisicamente considerado, isto é, justamente daquilo que prescinde dos padrões morais, e de que até os animais são capazes. Assim, os obreiros que, hoje, dominam o campo da Justiça Social tendem a destruir, com as suas fórmulas e a sua atividade, precisamente o único remédio verdadeiramente eficaz para o mal que corrói as sociedades contemporâneas e põe em risco iminente a própria Civilização.
E' preciso que nós católicos não nos deixemos seduzir por semelhantes erros. É verdade que há um mínimo de bem estar material exigido pela virtude. É verdade que certas condições de vida acarretam quase necessariamente o vício. Porem, as palavras de Leão XIII continuam sempre verdadeiras: a questão social, antes de ser uma questão econômica, é principalmente uma questão moral e religiosa. Ninguém nega que haja aspectos econômicos da mais relevante importância que devem ser resolvidos; mas o fundamental está no levantamento espiritual do operário. E este aspecto, embora intimamente relacionado com o econômico, não lhe é subordinado, mas, antes, o subordina, conforme é afirmado meridianamente na encíclica citada. Neste ponto se divorciam inelutavelmente os católicos e os marxistas, teóricos ou práticos.
Ora, por maiores que sejam as dificuldades econômicas, com que luta a classe operária, muito mais grave é a sua verdadeira indigência espiritual. E nós, que, como católicos, devemos achar que as almas valem incomparavelmente mais do que os corpos, devemos confranger-nos muito mais desta indigência. Mesmo porque há uma verificação importante, que não pode passar desapercebida: não se pode negar que muita coisa já tem sido feita em prol da melhoria da situação material do trabalhador; restará muito ainda por fazer, mas o que foi realizado não pode ser sumariamente ignorado. Pois bem, esta melhoria não ocasionou por si só qualquer aprimoramento espiritual, antes, parece que neste ponto a crise se agravou sobremaneira. Neste sentido, basta acompanhar um pouco o noticiário policial dos jornais para se ficar horrorizado. Os crimes que se cometem são de arrepiar os cabelos pela sua natureza e multiplicidade. Vê-se que desaparece o respeito à vida, à dignidade, à honra. Em seu lugar, surge a mais selvagem brutalidade, que não respeita nem às mulheres e às crianças, tratadas com revoltante grosseria e diante de quem se proferem, aos brados, senão aos urros, as maiores enormidades. Do ponto de vista sexual, o que se nota é a mais desbragada incontinência aliada às perversões mais chocantes. A família tende a desaparecer, substituída por uniões ocasionais e mais ou menos promiscuas. Os casos de abandono do lar por parte do chefe, sem causa justificada, se tornaram tão frequentes, que obrigaram o legislador a incluir esta nova figura de crime no atual Código Penal Brasileiro. A infância e a juventude se corrompem além de qualquer estimativa. E para completar o quadro seria necessário mencionar algo de tenebroso, que viola os laços mais sagrados de família, e cujo nome é melhor não pronunciar. Se passamos para o campo profissional, o espetáculo não é mais confortador. Lembremo-nos apenas de que todos os aumentos de salário são, atualmente, condicionados à frequência total, porque, das primeiras vezes, esta melhoria se tornou ocasião de tantas faltas ao serviço que chegou a ser um risco para a economia nacional. Como exemplo de falta de responsabilidade não podia ser mais sintomático. Se considerarmos, porem, a consciência política, veremos que o caricato funambulismo e a insensibilidade patriótica, que impudentemente se pavoneiam no Congresso, nas Assembleias Legislativas e nas Câmaras Municipais, exprimem apenas a falta de civismo das massas que para lá mandaram os seus escolhidos. Da ação política destas massas está cada vez mais ausente o Brasil, como uma nação que tem um passado, com trabalhos, sofrimentos, lutas e glórias; que tem uma honra, que é preciso sustentar em face do mundo; que tem um destino e um espírito a que é preciso ser fiel para que não se transforme em mera expressão geográfica. Infelizmente movem-nas apenas, em quase todos os países contemporâneos, os mais elementares impulsos gástricos, senão outros instintos inferiores. São massas anônimas e desnacionalizadas, que tanto podiam estar aqui como nos antípodas, e que tendem a destruir o espírito nacional, ou — o que é a mesma coisa — a cultura brasileira no que ela tem de mais autêntico, transformando a nação numa sociedade informe: "A sociedade sem cultura é uma sociedade sem forma — uma multidão ou uma coleção de indivíduos ajuntados pelas necessidades do momento" (Christopher Dawson — Religion and Culture, Sheed & Ward, 1.948. pg. 48). Por fim, do ponto de vista religioso, o que se nos depara é um vago sincretismo mágico-supersticioso, onde têm papel relevante o espiritismo e a macumba, de envolta com algumas devoções populares do Catolicismo. Neste sentido, as classes trabalhadoras, pelo menos nos grandes centros urbanos, estão regredindo rapidamente para a situação da plebe pagã.
O que ficou acima é apenas uma recapitulação sumária de alguns aspectos típicos da decadência espiritual das massas. Os leitores conhecerão, certamente, por experiência própria, muitos outros casos altamente ilustrativos. Infelizmente, basta abrir os olhos para que os exemplos pululem por toda a parte. Porém, o mais triste é que não há elites que falem para apontar e verberar estes males. As classes operárias estão, neste sentido, "sentadas à sombra da morte", e como "ovelhas sem pastor". Pelo contrário, são o pasto de toda a espécie de demagogias, pois todos aqueles que a elas se dirigem só têm palavras para lhes gabar as qualidades e virtudes, lembrar-lhes os direitos e prerrogativas, exaltar-lhes a superioridade, lamentar-lhes os ultrajes, adular-lhes a vaidade, atiçar-lhes a revolta contra as classes superiores e acenar-lhes com a miragem de uma igualdade absoluta, criando e alimentando o mito entre todos daninho do São Povo ou da Santa Plebe, que prepara e anuncia o mito diabólico, a se desenhar já, em esboços perceptíveis, da Santa Canalha. Tudo isto lembra a lamentação de Jeremias: "Prophetae tui viderunt tibi falsa et stulta, nec aperiebant iniquitatem tuam, ut te ad poenitentiam provocarent: viderunt autem tibi assumptiones falsas et ejectiones." E assim a gangrena vai roendo implacavelmente. A decadência espiritual do homem-massa está solidamente defendida, de um lado pela demagogia dos falsos profetas, de outro pelo hebetamento produzido pelos Suplementos Juvenis e pelo fanatismo futebolístico. O que ameaça surgir daí é uma nova barbárie. Apenas o bárbaro antigo trazia em si todo um tesouro de aptidões culturais, expresso numa mitologia rica de significados transcendentais; por isso, a Igreja pôde trabalhá-lo e fazer dele o material com que se edificou a Civilização Cristã. Mas o novo bárbaro, o homem-massa só tem uma ideia: o ódio contra toda superioridade; só tem um ídolo: a força bruta, expressa no campeão herói ao mesmo tempo do murro, do pontapé, e do vigor sexual.
O que porém não é admissível nem tolerável é que tudo isto continue a ser feito em nome de uma Justiça Social. A Justiça, seja social ou de qualquer outra espécie, não pode continuar a ser o pretexto sob o qual se acobertam os demolidores da Civilização. A Justiça é uma coisa sagrada, e fazer dela, por uma hábil confusão de nomes, a cortina de fumaça de uma certa "justiça social" é um como sacrilégio. Cabem aqui as palavras de T. S. Eliot: "Eu devo introduzir, entre parêntesis, um protesto contra o abuso do termo corrente "justiça social". Do sentido "justiça nas relações entre grupos ou classes", pode-se escorregar para o sentido de uma hipótese particular sobre o que estas relações devam ser; e uma atuação poderia ser apoiada por representar o escopo da "justiça social", mas que, do ponto de vista da "justiça", não era justa. O termo "justiça social" está em perigo de perder o seu conteúdo racional, que seria substituído por uma poderosa carga emocional" (Notes Towards the Definition of Culture, Faber & Faber, 1.949, pg. 16, nota).
Esperamos desenvolver, em próximo número, algumas considerações sobre a justiça social tomada em seu verdadeiro sentido. □
Bertrand de Poulengy
No primeiro capitulo de seu livro «Des intérêts catholiques au dix-neuvième siècle", Montalembert, descrevendo a situação da Igreja em 1800, mostrava em toda a parte ruínas e perseguições e não vislumbrava nesse vasto naufrágio o menor sinal que justificasse a esperança de melhores dias para a Igreja de Nosso Senhor; e uma testemunha dessa época, Joseph de Maistre, respondia a uma carta do marques de *** com estas palavras: «O Sr. me pede para abrir o coração sobre uma das maiores questões que podem interessar hoje um homem sensato. Quer que eu exponha meu pensamento sobre o estado atual do Cristianismo na Europa. Poderia lhe responder em duas palavras: olhe e chore».(*)
(*) «Lettres et opuscules inédits de Joseph de Maistre» — 1861 — A. Vaton, Libraire-éditeur II pag. 389.
Realmente tudo parecia perdido. Depois de ter abatido um dos mais fortes e mais gloriosos tronos da Cristandade e aprisionado o Santo Padre, fonte e seiva da civilização católica, a Revolução, julgando ter realizado a primeira parte do seu programa, iniciava uma nova fase, na qual, sem os horrores dos tempos iniciais, espalhava suas ideias num mundo atemorizado e que buscava nessa pretensa conversão do monstro revolucionário, o pretexto para não mais o combater. Por outro lado, as monarquias tradicionais, que deveriam liderar a reação, procuravam se amoldar aos novos princípios, numa ânsia insofrida de não perder os seus tronos, ou ressuscitavam os antigos erros regalistas, imaginando opor-se tanto melhor à Revolução quanto mais absolutistas se mostrassem. Para agravar a calamidade, morto Pio VI em Valença, a Igreja entrava no novo século sem Pastor e com o Sacro Colégio disperso, impedido de voltar a Roma e enfrentando as maiores dificuldades para se reunir a fim de eleger o novo Pontífice.
Titubeantes e fracos no inicio da Revolução, sacrificando tudo quanto era humanamente possível para não enfrentá-la, os católicos, no entanto, haviam suportado o martírio com denodo quando a Revolução quis exigir mais do que eles poderiam conceder, e essa firmeza na defesa de seus princípios transformaria a fisionomia do século que se iniciava com tão maus prognósticos. Um renascimento católico pujante seria o fruto dos sofrimentos e da bravura dos católicos da era da Revolução.
Esse reflorescimento católico foi universal, bastando lembrar os nomes de O'Connell na Inglaterra, Balmes e Donoso Cortes na Espanha, e Windhorst na Alemanha, mas, como não poderia deixar de ser, foi a França o seu berço e lá serão travadas, durante todo o curso do século XIX, as batalhas mais acesas entre a Igreja e a Revolução, batalhas essas seguidas com interesse por todo o mundo e cujo resultado era ansiosamente esperado, pois indicaria o curso que seria seguido pela humanidade. Assim, estudando o movimento católico ter-se-á uma visão de conjunto do Catolicismo no século XIX.
Esse movimento teve por ponto de partida dois homens, dos quais um é justamente célebre e de renome universal, e outro, injustamente esquecido: Joseph de Maistre e o Padre Bourdier Delpuits.
Justificando o velho ditado de que Deus escreve direito por linhas tortas, um dos grandes benefícios indiretamente resultantes da Revolução, senão o maior, foi ter levado Joseph de Maistre a escrever os seus célebres livros. Senador da Savoia e vivendo num país organizado, sua existência transcorria serena, quando arrebentou a Revolução. Obrigado a emigrar, o espetáculo de devastação que presenciou e sua larga visão do futuro levaram-no a tomar da pena para combatê-la, advertindo a humanidade dos perigos que correria se seguisse os seus princípios e apontando o abismo em que fatalmente viria a cair com sua vitória. Dai os livros que o fizeram um clássico da literatura francesa, e, entre eles, o celebre «Du Pape», que o transformou em líder das novas gerações católicas. O «Du Pape», verdadeiro hino ao Papado, restabelece o seu verdadeiro lugar na História, os seus direitos e prerrogativas e principalmente dá um impulso novo à doutrina da infalibilidade do Soberano Pontífice, que o Concilio do Vaticano, em 1870, promulgaria dogma. Foi o livro que mais influiu nos católicos do século XIX: daí por diante, foram conhecidos por ultramontanos os que seguiam as suas ideias, e Louis Veuillot, respondendo a «Le Siècle», que apontava o ultramontanismo como uma nova seita, podia dizer que católico e ultramontano eram palavras perfeitamente equivalentes, sendo uma sinônima da outra, pois, a não ser os galicanos, todos os católicos se declaravam ultramontanos.
O P. Bourdier Delpuits entrara muito jovem na Companhia de Jesus, e quando, em 1762, esta fora expulsa da França, ainda não tinha ele pronunciado os últimos votos, o que lhe permitiu entrar no Clero secular. Durante a Revolução, foi preso e exilado, mas voltou à França antes da queda de Robespierre, por julgar de seu dever exercer ali o sagrado ministério, apesar dos perigos que corriam os Padres refratários. Preocupado com a situação dos jovens e principalmente dos universitários, o P. Delpuits, aproveitando a liberdade que Napoleão concedera ao exercício do culto, fundou a 2 de fevereiro de 1801 a Congregação Mariana «Sancta Maria, Auxilium Christianorum», conhecida na historia da França simplesmente por «a Congregação». Foi essa Congregação Mariana que deu verdadeira formação religiosa à juventude que crescera sob a Revolução. Dela saíram os primeiros grandes nomes católicos nesse século — o duque Mathieu de Montmorency, o Cardeal Príncipe de Rohan e Félicité de Lamennais. Seus congregados eram incansáveis no serviço da Igreja e, quando Napoleão, depois de tentar subjugar a Igreja, entrou em luta aberta com ela, foram os congregados que trouxeram a Bula de excomunhão do Imperador e a publicaram em Paris. Quando, no auge da luta, Napoleão prendeu o Papa e impediu a comunicação entre os Cardeais, foram eles que, burlando a polícia mais bem organizada daquela época, serviram de mensageiros entre os membros do Sacro Colégio que estavam na França. A Congregação foi a primeira a ser combatida pelos revolucionários, que lhe moveram, no fim da Restauração, uma perseguição sistemática até abatê-la, aproveitando-se da fraqueza de Carlos X.
Mas, ao desaparecer a semente já estava lançada: conversões numerosas se anunciavam e Lamennais já liderava um dos mais auspiciosos movimentos católicos que jamais apareceram na França.
Napoleão não se iludiu com a pseudoderrota da Igreja no início do século e tentou uma retirada, dando-lhe aparente liberdade, mas, tentando por todas as formas subordiná-la ao Estado. A Restauração mostrou-se incapaz de reconstruir a antiga monarquia francesa e, aproveitando-se de todas as instituições napoleônicas, tentou se amoldar às novas ideias e restaurar o absolutismo estatal em matéria religiosa. Toda a política eclesiástica de Luiz XVIII e Carlos X visava ressuscitar o galicanismo, e, se a França não se tornou um país galicano, isso se deve em grande parte a Felicité de Lamennais.
Lamennais aliava a uma inteligência genial um dom excepcional de proselitismo. Discípulo de Joseph de Maistre, reuniu em torno de si uma verdadeira plêiade de futuros grandes nomes do Catolicismo, formando-os e difundindo as ideias ultramontanas. Assim, vemos em La Chênaie, seu quartel general, D. Guéranger, o restaurador da liturgia romana, o Padre Salinis, que seria Cardeal e um dos primeiros jornalistas católicos, o Padre Rohrbacher, o melhor historiador da Igreja no século XIX, o Padre Gerbert, que Louis Veuillot considerava um dos mestres da literatura francesa, o Conde de Coux Lacordaire, Montalembert e tantos outros, sem contar os trânsfugas como Lamartine e Victor Hugo. De La Chênaie partiam os assaltos contra o galicanismo, quer combatendo os seus erros, quer denunciando suas tramas, quer expondo os verdadeiros princípios do Catolicismo. De lá saiam livros, jornais, novas edições de Joseph de Maistre, obras de puro apostolado, e, tendo Chateaubriand aberto as portas do «Le Conservateur» a Lamennais e seus discípulos, as teses caras a Joseph de Maistre eram expostas no melhor jornal da época. Lamennais não deixava em paz Mons. Frayssinous, Bispo de Hermópolis, Grão Mestre da Universidade e nessa época chefe do galicanismo; a Inquisição, a Liga e os Guises eram exaltados e, para grande escândalo de alguns galicanos, o P. Salinis publicava artigos em honra a S. Gregório VII.
Com a queda de Carlos X, toda essa obra tão promissora quase se perdeu com a reviravolta brusca de seu chefe. De um momento para outro, o líder ultramontano e legitimista Lamennais passa a defender os erros da Revolução. É quando aparece «L'Avenir», fundado com o objetivo de «reconciliar a Igreja com a liberdade». Lamennais era uma bandeira, e o alto nível, o brilho com que seus redatores o apresentavam assegurou um sucesso incalculável ao jornal. Pouco a pouco, porém, não tanto os ataques dos galicanos, quanto a verdadeira orientação que se tornava clara foi afastando os católicos, e «L'Avenir» foi perdendo assinantes e terreno, até ser forçado a desaparecer, em 1832.
É bastante conhecida a história do fim de Lamennais. Fechado o jornal, ele vai para Roma com Lacordaire e Montalembert, pedir à Igreja um pronunciamento sobre as teses do «L'Avenir». Recebendo-os friamente, Gregório XVI usa de todos os meios para não ser obrigado a lançar uma condenação sobre o antigo campeão da infalibilidade. Lacordaire e Montalembert vêm a partida perdida e se afastam da Cidade, mas Lamennais, tomado de um orgulho satânico, se obstina, e quando, afinal, resolve retirar-se, o faz com um supremo desafio à Santa Sé, declarando ao Internúncio em Florença que vai reabrir «L'Avenir» e que, Roma não querendo julgá-lo, considerava-se absolvido. Gregório XVI, então, com a Encíclica «Mirari vos», condena todas as teses de «L'Avenir». Abafando sua revolta, Lamennais submete-se, para pouco depois apostatar.
O conhecido agitador italiano Mazzini, escrevia por essa época: «... Napoleão, aprisionado o Papado, arrastando-o para Paris, ameaçando-o e transigindo politicamente com ele, acabou de o desconsiderar e aviltar. Tombado o gigante, e a inércia política permitindo o renascimento dos estudos filosóficos e pacíficos, aparecem o espiritualismo, o ecletismo, escolas que, embora não reneguem o sentimento religioso, não consideram mais o Papado como um elemento necessário. Em todo o mundo católico não ficava para o Papa senão Joseph de Maistre".
Era cedo ainda para Mazzini cantar vitória. Lamennais, de fato, comprometera seriamente o movimento católico do século XIX com a aventura de «L'Avenir». Sua escola cindiu-se: alguns, como Lacordaire e Montalembert, conservavam as tendências más da segunda fase, da época do jornal, e iriam formar, mais tarde, ao lado dos católicos liberais, enquanto outros, como D. Guéranger, P. Rohrbacher e o P. de Salinis, conservariam a formação antiga e, dentro em breve, surgiria aquele que, como o Lamennais da primeira fase, seria o sucessor de Joseph de Maistre na defesa do Papado; Louis Veuillot, o maior jornalista católico de todos os tempos. □