DIRETRIZES PARA O APOSTOLADO (conclusão da 1.ª página)
Antes de tudo uma palavra sobre o conceito de apostolado. Este não consiste somente em anunciar a boa nova, mas também em conduzir os homens à fonte da salvação, se bem que com pleno respeito à sua liberdade, em convertê-los e em educar com árduo esforço os batizados para que se tornem perfeitos católicos.
Seria igualmente errôneo ver na Ação católica, — como foi por alguns recentemente afirmado qualquer coisa de essencialmente novo, uma modificação na estrutura da Igreja, um novo apostolado de leigos, que seria paralelo ao do Sacerdote, e não subordinado a este. Houve sempre na Igreja uma colaboração dos leigos no apostolado hierárquico, efetuada em dependência do Bispo e daqueles a quem o Bispo confiou a responsabilidade da cura de almas sob sua autoridade. A Ação católica quis dar a esta colaboração somente uma nova forma e organização acidental para seu melhor e mais eficaz exercício.
Se bem que a Ação católica em sua origem esteja, como a própria Igreja, organizada em dioceses e paróquias, isto todavia não impede seu ulterior desenvolvimento para além e acima dos limites restritos da paróquia. Deve-se antes reconhecer que, não obstante toda a importância dos valores e das energias fundamentais e insubstituíveis da paróquia, a complexidade rapidamente crescente da vida moderna, tanto no terreno técnico quanto no espiritual, pode exigir urgentemente uma mais larga extensão da Ação católica. Esta, porém, ainda em tal caso, continua sempre um apostolado de leigos, sujeitos ao Bispo ou a seus delegados.
A atividade da Ação católica se estende a todo o campo religioso e social, isto é, até onde chega a missão e a obra da Igreja. Ora, sabe-se que o crescimento normal e o incremento da vida religiosa supõem uma certa medida de condições econômicas e sociais sadias. Quem não sente constringir o coração ao ver quanto a miséria econômica e os males sociais tornam mais difícil a vida cristã segundo os mandamentos de Deus, e com demasiada frequência exigem heroicos sacrifícios? Daí porém não se pode concluir que a Igreja deva começar por deixar de lado sua missão religiosa e procurar antes de tudo o saneamento da miséria social. Se a Igreja se mostrou sempre solícita em defender e promover a justiça, entretanto cumpriu sempre, desde o tempo dos Apóstolos, sua missão, ainda mesmo à vista dos mais graves abusos sociais, e, por meio da santificação das almas, bem como da conversão dos sentimentos interiores, procurou iniciar a reparação dos males e desordens sociais, persuadida como está de que as forças religiosas e os princípios cristãos valem, mais do que qualquer outro meio, para conseguir sua cura.
A organização externa e bem disciplinada da Ação Católica não exclui, mas pelo contrário promove a perspicácia pessoal e o espírito de previdência e iniciativa de cada qual — segundo as respectivas qualidades e capacidades—, em contato permanente com os membros da Ação católica do mesmo lugar, da mesma profissão, do mesmo meio. Cada qual se mantém cordialmente à disposição sempre que se considere necessária alguma atividade ou campanha católica. Com seu entusiasmo e sua dedicação cada um traz um contributo desinteressado às outras uniões e instituições que possam desejar seu concurso para obter mais seguramente e mais perfeitamente seu próprio fim.
Em outros termos não seria compatível com o verdadeiro conceito da Ação católica a mentalidade de associados que se considerassem como rodas inertes de uma máquina gigantesca, incapazes de se mover por si mesmas, senão quando a força central as faz girar. Nem seria admissível ver os chefes da Ação católica agirem como operadores de uma central elétrica diante do quadro de comando, atentos somente a lançar ou a interromper, a regular ou a dirigir a corrente na vasta rede.
Estes, principalmente, devem exercer uma influência pessoal moral, que será o efeito normal da estima e da simpatia que terão sabido granjear e que dará força às suas sugestões, aos seus conselhos, à autoridade de sua experiência sempre que se trata de pôr em movimento as forças católicas prontas para a ação.
Não temos necessidade de vos ensinar que a Ação católica não está chamada a ser uma força no campo da política de partido. Os cidadãos católicos, enquanto tais, podem bem unir-se em uma associação de atividade política; é seu direito genuíno não menos como cristãos do que como cidadãos. A presença em suas fileiras e a participação de membros da Ação católica — no sentido e dentro dos limites acima — é legitima e pode até ser plenamente desejável. Não poderia pelo contrário admitir-se, também em virtude do artigo 43 da Concordata entre a Santa Sé e a Itália, que a Ação católica Italiana se tornasse uma organização de partido político.
A Ação católica igualmente não tem pelo fato de sua natureza a missão de estar à testa das outras associações, e de exercer sobre estas um ofício que seria quase um patrocínio autoritativo. O fato de que a Ação católica está sujeita à imediata direção da Hierarquia Eclesiástica não acarreta uma tal consequência. Com efeito, o fim próprio de toda organização é que determina seu modo de direção. E pode muito bem acontecer que tal fim não requeira, mas antes torne inoportuna esta direção imediata. Nem por isto aquelas organizações deixam de ser católicas e de estar unidas à Hierarquia (cfr. nota 6).
Comparado com elas (9) o sentido específico da Ação católica consiste (cfr. nota 3), como dissemos, no fato de que ela é como que o ponto de encontro daqueles católicos ativos, sempre prontos a colaborar com o apostolado da Igreja, apostolado este hierárquico por divina instituição, e que encontra nos batizados e crismados os seus cooperadores sobrenaturalmente ligados a ela (10).
Daí deriva uma consequências que é ao mesmo tempo uma admoestação paterna, não para a Ação católica de um determinado país, mas para a Ação católica de todos os países e de todos os tempos. Sua construção, dizemos, deverá adaptar-se nas diversas regiões a circunstâncias particulares de lugar; mas em um ponto todos os seus membros hão de ser iguais: no "sentire cum Ecclesia", na dedicação à causa da Igreja, na obediência aos que o Espírito Santo constituiu Bispos, para reger a Igreja de Deus, na filial submissão para com o Pastor supremo, a cuja solicitude Cristo confiou a sua Igreja.
E como poderia ser de outro modo, enquanto vós, membros da Ação católica, formais por assim dizer quase uma só coisa com o Bispo e o Papa? Com tal voto, vos damos com efusão de coração, caros filhos e filhas, Nossa Benção Apostólica".
(1) "Da altre", no texto original, e não "delle altre". Esta expressão deixa ver que esta característica não diferencia a Ação Católica de todas as outras associações católicas, mas apenas de certas outras.
(2) Também as Congregações Marianas, que são verdadeira Ação Católica como afirma Pio XII nesta alocução, possuem esta característica: "Entre as finalidades primárias das Congregações está o apostolado omnímodo, sobretudo social, que exercem, por mandato da própria Hierarquia Eclesiástica, na propagação do Reinado de Cristo e defesa dos direitos da Igreja. Para prestar esta verdadeira e plena cooperação com o apostolado hierárquico, em modo algum devem ser alteradas ou inovadas as normas próprias das Congregações, relativas às modalidades daquela cooperação." (Const. "Bis Saeculari").
(3) Sobre a inteira subordinação das Congregações Marianas à Hierarquia Eclesiástica, ensina Pio XII na "Bis Saeculari": “... quem não vê em que conta de oportunos instrumentos de apostolado devem ser tidas as Congregações Marianas, não só em virtude de sua absoluta e férvida obediência a esta Sé Apostólica, fundamento e cabeça da Hierarquia Eclesiástica, mas ainda por causa de sua humildade, sujeição e dócil dependência, cada qual de acordo com o próprio caráter e índole, aos mandatos e conselhos dos Ordinários. Pois, quem considera a interna constituição destas Congregações, com facilidade vê que umas são regidas pelos Bispos e Párocos; outras, por privilégio, são regidas por Nós mesmos, e, por delegação Nossa, pelo Prepósito Geral da Companhia de Jesus; mas que todas elas, ao empreenderem e levarem adiante trabalhos apostólicos, estão sujeitas à jurisdição do próprio Bispo, e, por vezes, à do Pároco. E, como são admitidas pela Hierarquia Eclesiástica nas fileiras da milícia apostólica e dependem claramente dela, tanto em aceitar como em levar a termo qualquer atividade apostólica, com pleno direito - como já tivemos ensejo de notar - devem ser chamadas cooperadoras do Apostolado Hierárquico".
(4) Como se vê, o Papa fala aqui apenas da Ação Católica Italiana.
(5) "Guiados", palavra expressiva que mostra que a função de marcar rumos compete ao Assistente Eclesiástico, e não aos leigos que ocupem cargos de direção na Ação Católica.
(6) Cfr. Const. "Bis Saeculari": "Ora, a que as Congregações Marianas sejam de pleno direito denominadas: "Ação Católica empreendida sob os auspícios e por inspiração da Bem aventurada Virgem Maria", não obstam, de modo algum, sua constituição e notas próprias, que, antes, assim como foram, assim são e hão de ser tutela e presídio para mais esclarecida formação católica dos espíritos. De fato, como muitas vezes declarou esta Sé Apostólica, a Ação Católica não está encerrada em círculo fechado, como que rigidamente circunscrita por limites invioláveis, nem, por ter finalidade definida, se esforça por atingi-la com método e modalidade peculiar "que elimine as demais associações de caráter ativo ou as absorva"; antes, deve julgar do seu dever harmonizá-las e compô-las amigavelmente derivando os progressos de uma para o bem das outras, com plena concórdia de ânimos, união e caridade. Pois, como ultimamente advertimos, neste intenso fervor de apostolado a Nós sumamente aceito, deve ser evitado o erro de não poucos que desejam como que fundir num só molde quanto se empreende a bem das almas. Bem é de ver quão completamente este procedimento aberra da intenção da Igreja, pois ela — bem longe de aprovar que, coarctando tal vitalidade que viceja e floresce espontânea, se entreguem a uma só associação ou à só paróquia todos os trabalhos apostólicos — quer antes, favorecendo a multiforme unidade, que na execução destes trabalhos haja esforços congregados mediante uma colaboração certamente fraterna dirigida para o mesmo alvo sob a orientação dos Bispos. Este "consenso unânime, ordenada coligação e compreensão mútua, que muitas e muitas vezes recomendamos", tanto mais facilmente hão de alcançar associações desta natureza, quanto mais profundamente, — posta de lado qualquer controvérsia sobre preeminência, — "se amarem umas às outras, distinguindo-se mutuamente com demonstrações de estima" e, tendo unicamente em mira a glória de Deus, se persuadirem, que só então conquistarão a primazia, quando tiverem aprendido a cedê-la às demais".
(7) Cfr. Const. "Bis Saeculari": "Pároco — é presidente nato das Congregações paroquiais, que poderá dirigir como as demais associações de sua paróquia".
(8) É esta, aliás, a diretriz do Santo Padre no que diz respeito às relações do Clero com todas as associações femininas cfr. "Menti Nostrae": "A este propósito vos endereçamos uma particular exortação, a fim de que, dirigindo associações e sodalícios femininos, vos mostreis como convém a Sacerdotes; evitai toda familiaridade; quando se fizer mister prestar a vossa assistência, prestai-a como Ministros sagrados. Na direção, portanto, dessas associações, vossa tarefa se limite ao estritamente prescrito ao vosso sagrado ministério."
(9) Isto é, com as associações que não são imediatamente sujeitas à Hierarquia.
(10) Este é o modo por que Pio XI e Pio XII sempre definiram a Ação Católica. Leia-se por exemplo o seguinte trecho da "Bis Saeculari": "Sendo assim, às Congregações Marianas, quer se lhes considerem as leis, quer se atenda à sua natureza, finalidade, empreendimentos e atos, não se pode negar característica alguma das que distinguem a Ação Católica, visto esta se definir adequadamente, conforme tantas vezes declarou Nosso Predecessor de feliz memória, Pio XI, "o apostolado dos fiéis que se põem a serviço da Igreja e de certo modo a ajudam a cumprir seu ministério pastoral".
Voltando-se depois aos membros das Congregações Marianas, o Augusto Pontífice lhes falou nos seguintes termos:
"E agora Nosso pensamento se volta para as Congregações Marianas de Roma e da Itália, presentes na Cidade Eterna para duas importantes reuniões.
Tantas foram as vezes e tantos os modos por que vos demos, amados filhos e filhas, o testemunho espontâneo de Nosso afeto e de Nossa solicitude, que outra coisa não poderemos verdadeiramente acrescentar, nesta ocasião, senão exortar-vos mais uma vez, e paternalmente. A retribuir Nossa confiança com uma docilidade sempre mais perfeita às vossas Regras, ao vosso espírito e a todas as recomendações e instruções que, em seguida a Nossos Predecessores, vos dirigimos Nós mesmo, principalmente com a Constituição Apostólica "Bis Saeculari". Pedimos-vos que vejais nesta a Carta das Congregações Marianas, e lembrai-vos de que as mesmas serão tanto mais vigorosas, prósperas e eficazes, quanto mais vos conformardes exatamente às suas prescrições. Fazei pois que tendam a tal fim vossos esforços pessoais, os esforços de cada uma de vossas Congregações, os desvelos conjugados e intensos de vossas assembleias, de vossas Federações e Confederações.
Estai bem certos: quanto mais vossas Congregações Marianas forem vivas e fieis a seu caráter, quanto mais trabalharem segundo seus métodos, em seu vasto campo de santificação, de caridade, de apostolado, tanto mais úteis se tornarão para a obra comum da Igreja, cujas formas são varias, mas cujo fim é um só.
Tudo isto tendes compreendido e praticado, como demonstra o magnífico álbum em que Nos apresentais um compêndio de vossos trabalhos levados a cabo nas paróquias e bairros da periferia de Roma. Segundo vossas tradições, agis sem rumor, com tanta discreção quanto intensidade. Nós bem o sabemos e vos louvamos por isto; mas é também conveniente que em algumas ocasiões "os homens vejam vossas boas obras e glorifiquem vossa Mãe que está nos céus".
Mas a vós particularmente, diletas filhas, acrescentamos uma palavra de especial estímulo. Este ano celebrais o 2º Centenário do Breve "Quo tibi", com o qual Nosso imortal Predecessor Bento XIV franqueava às senhoras e às Congregações femininas o ingresso na grande família da Prima Primária. Inovação providencial, pois se a exclusividade tinha concorrido durante dois séculos para dar à vida e às atividades das Congregações Marianas, maior solidez, a transformação da sociedade vinha conferir às senhoras uma função diferente, porém comparável, em força e em amplitude, às dos homens.
Com esta feliz extensão nada se alterou em seu caráter originário. Não foram as Congregações que mitigaram suas exigências para se colocarem ao alcance do elemento feminino, mas este se elevou à altura delas, enriquecendo-as com suas preciosas energias.
Sobre todos vós, pois, e sobre quantos a vós estão unidos em espírito no grande "Dia Mundial", invocamos os mais escolhidos favores de Deus, e de vossa Mãe celeste, enquanto de todo o coração vos damos Nossa Benção Apostólica".
3 DE JUNHO
BEATIFICAÇÃO DE PIO X
Um episódio dramático de sua vida: "Os piores inimigos da Igreja tramam seus perniciosos desígnios, não já fora, mas dentro dela, - é por assim dizer nas suas próprias veias e entranhas que se acha o perigo".
(Encíclica "Pascendi")
Na beatificação de Pio X, é intenção da Igreja afirmar que este Papa praticou, em vida, em grau heroico, as virtudes teologais de Fé, Esperança e Caridade, e as virtudes cardiais de Justiça, Prudência, Fortaleza e Temperança, pelo que está gozando no Céu a gloria correspondente. Em consequências, permite a Igreja que lhe seja prestado culto público em certos lugares.
Este pronunciamento tem por objeto próximo e explicito a própria pessoa do Papa Pio X. Implicitamente, porém, envolve de certo modo uma apreciação sobre seu modo de governar a Igreja. Pois, se o Papa foi heroico nas virtudes cardiais, é que no gerir os mais altos interesses espirituais da Cristandade, não se mostrou nem injusto, nem imprudente, nem fraco, nem intemperante. Antes pelo contrário, foi exímio na prática destas virtudes, não só enquanto homem privado mas ainda enquanto Papa. E suas ações, não só enquanto homem como enquanto Papa, nos podem e devem ser propostas como modelo digno de imitação.
Vem pois muito a propósito analisar a conduta do santo Pontífice num episódio absolutamente memorável da vida da Igreja em nosso século, tirando daí preciosos ensinamentos para nossa santificação.
A Igreja se encontra, hoje, em uma das fases mais dramáticas de sua História. Jamais foram tão poderosos, tão radicais, tão militantes os seus inimigos. Lembremos antes de tudo o mundo soviético, que vai da Indochina até a Alemanha, constituindo, pois, um Império maior do que o de Alexandre ou Carlos Magno. É inútil fechar os olhos à realidade: esse «mundo» forma o maior quisto de ateísmo jamais existente sobre a face da terra. Dentro dos limites circunscritos pela cortina de ferro, agonizam nos cárceres, nos campos de concentração, em outras prisões talvez mais disfarçadas, porém não menos cruéis, Cardiais, Arcebispos, Sacerdotes, Missionários, Religiosas, e simples fiéis. É uma oitava parte da população católica do globo que está sujeita assim a um governo direta e oficialmente ateu, que tem por intenção oficial e declarada extinguir a Religião. E este imenso quisto comunista não constitui senão a cabeça do polvo. Seus tentáculos se estendem pelas regiões vizinhas, a Indonésia, a Índia, a Pérsia, a desditosa Áustria, a Alemanha Ocidental, e se dividem em ramificações ativas que envolvem como em uma rede toda a Europa Ocidental, a América do Norte e do Sul, e grande parte da África. Nas Universidades, nos Parlamentos, na imprensa, no cinema, no rádio, nos sindicatos, os filamentos desta rede se multiplicam a todo momento. O inimigo não está «ante portas». Está instalado em nossas próprias entranhas.
E se fosse só este! Em face do corpo de doutrinas maciço do comunismo, de sua organização férrea, nada é mais fluido, mais inconsistente, menos orgânico do que a amálgama de princípios, instituições e povos habitualmente considerados anticomunistas.
O extremo oposto do comunismo é o Catolicismo. E, assim, tudo quanto contribui para enfraquecer a influência do Catolicismo constitui cooperação preciosa — se bem que às vezes não intencional — à expansão comunista. E a sociedade ocidental está sendo corroída por toda sorte de vermes que trabalham assim para a vitória do adversário. A literatura e os espetáculos imorais que enervam as forças de resistência da família cristã; a propaganda socialista que sob pretexto de justiça social lança de fato os pobres contra os ricos mina o princípio da autoridade e semeia o espírito de revolução; o ensino superior ou secundário que apresenta o universo como um grande todo tendo imanentes em si mesmo as forças de sua evolução gigantesca e indefinida, um todo que não foi criado por nenhum Deus pessoal e em que o homem não tende para uma felicidade sobrenatural, extraterrena e eterna; tudo isto fere a civilização cristã na sua própria alma, que é a Igreja Católica, e prepara o campo para o advento do comunismo.
Consideradas assim em seu conjunto as forças que trabalham contra a Igreja, numa imensa ofensiva ora violenta, ora sutil, ora adocicada (é este, tantas vezes, o caso dos socialistas p. ex.), em que o adversário conquista posições com todas as armas, desde a pólvora até o açúcar, qual deve ser a atitude católica?
Em outros termos, o que fazer: enfrentar a onda ou procurar flutuar sobre ela?
Como se enfrentaria a onda? Marcando muito definidamente a diferença entre o espírito da Igreja e as mil e uma manifestações do espírito neopagão de nossos dias, desde as manifestações brutais do comunismo russo até as mais macias blandícies das alas conciliadoras do socialismo, do protestantismo, ou do liberalismo: argumentando do modo mais eficiente contra o espírito neopagão, e a favor da doutrina da Igreja manifestada em toda a sua inteireza, no arrojo de sua nobreza, na sublimidade nua e por vezes trágica de sua austeridade; mostrando às almas que não podem ficar a meio termo entre as duas posições ideológicas; fazendo o possível e até tentando o impossível para as trazer à Igreja de Jesus Cristo.
Como se flutuaria sobre a onda? Evitando de discordar abertamente de qualquer coisa: homens, fatos, doutrinas. Procurando aplaudir o lado bom que há em tudo (pois até o demônio, no mais fundo dos infernos, totalmente mau como é do ponto de vista moral, tem, entretanto, um ponto em que pode ser elogiado: é o fato de ser criatura de Deus). Acomodando o Catolicismo, tão completamente quanto possível, ao gosto do século: sonhando com a abolição do traje talar para os Sacerdotes, e do celibato eclesiástico, ansiando pela supressão das Ordens meramente contemplativas; formando votos por que a eleição do Papa não toque mais ao Colégio Cardinalício mas ao povo de Roma; preconizando uma participação dos fiéis na celebração litúrgica, mais largamente do que em qualquer outra época da vida da Igreja; trabalhando pela introdução de paramentos litúrgicos muito simples, ou até pela autorização aos Sacerdotes para que celebrem com o «macacão» operário; dando apoio franco ao combate contra todas as diferenças de fortuna ou classe social, etc. etc. Em matéria doutrinária, flutuar sobre a onda consiste em apresentar a doutrina católica do modo mais parecido possível com os erros daquele com quem conversamos. Se ele é panteísta, falemos sobre o Corpo Místico de tal maneira que, sem desmentir claramente nossa doutrina, ele sinta nela um pouco de «sal» panteísta. Se é socialista, brademos mais energicamente do que ele contra toda diferença de classe social. Se é protestante, restrinjamos tanto quanto possível em presença dele os limites do magistério da Igreja.
Sem prejulgar a questão, lembremos aqui um ponto fundamental. É que ela se relaciona com todo um delicado problema de caráter e de feitio mental.
Assim, se alguém é amigo da lógica, da clareza, da franqueza; se tem entusiasmo pela doutrina católica e lhe dói presenciar a impunidade do erro; se é idealista e, portanto, está disposto a lutar e sofrer para a afirmação dos princípios que professa, será partidário da tática de enfrentar a onda.
Se pelo contrário alguém sofrer de um «complexo» (perdoem-nos os leitores a bárbara expressão) de timidez; se não tem absoluta certeza de suas opiniões nem coragem de as afirmar; se não lhe dói nem lhe incomoda que os outros glorifiquem e propaguem o vício ou o erro; se é amigo sobretudo de sua consideração social, gostando de passar por simpático, moderno, compreensivo, esclarecido; se por fim ama o sossego, e está disposto a todos os silêncios para não suportar lutas e discussões, então será um partidário de «deixar a onda passar», de flutuar sobre ela e de praticar uma política de «prudente» e extensa «adaptação».
Para resumir, há católicos que caminham para o adversário com a espada de fogo de São Miguel Arcanjo; outros pelo contrário julgam fazer melhor aconselhando o guarda-chuva de Chamberlain...
Este problema não é novo. E nem se coloca apenas no terreno religioso. Pois esta diferença de caráter e feitio deita reflexos em todos os campos da atividade humana. Diante do protestantismo, Filipe II personificou a atitude dos que enfrentam o perigo, e de fato se o protestantismo não conquistou a Europa tal se deve — humanamente falando pelo menos — ao grande Rei. Luiz XVI, pelo contrário, procurou contemporizar com a Revolução. Nicolau II também. Foram precursores de Chamberlain... que por sua vez teve e terá seguidores.
Em última análise, como se vê, a questão é muito velha. De fato ela é até mais antiga do que Felipe II. Data dos primórdios da humanidade. De quando em quando, isto é no que os franceses chamam com toda a propriedade de expressão «les tournants de l'Histoire», ela se põe.
No tempo de Pio X, a atual ofensiva contra a Igreja ainda não tinha atingido o clímax hodierno, mas já estava francamente em vias de desenvolvimento. Nem todos os problemas religiosos daquele tempo se punham como hoje. Mas pelo menos em suas grandes linhas gerais a situação podia ser vista como hoje a vemos. Já havia um forte movimento comunista, o socialismo se estendia por todo o Ocidente, a corrupção dos costumes já tinha entrado a fundo até em lares «cristãos», o espírito de revolta já lavrava francamente por toda a parte. O materialismo, o panteísmo, o evolucionismo já estavam na ordem do dia.
Por isto mesmo, os dois feitios temperamentais também já se tinham definido inteiramente entre os católicos. Uns eram favoráveis à luta. Outros à acomodação. Procuravam «modernizar» o Catolicismo.
Eram os chamados católicos «modernistas». Constituíam um «movimento» que tinha uma doutrina, uma estratégia, objetivos bem definidos, uma rede de instituições a seu serviço, e toda uma galeria de «grandes homens» para os chefiar. Como todo «movimento» que se preza, os modernistas tinham até seus «tabus».
A doutrina modernista consistia em última análise numa longa série de estratagemas e artifícios destinados a conformar o Catolicismo com as ideias religiosas do tempo.
Como dissemos, estas ideias admitiam um Deus impessoal, que estava latente em todas as forças do universo, e que se identificava em última análise com a «Natureza». Este Deus entranhado no kosmos guiava todas as forças para um progresso indefinido, em que se aperfeiçoaria o mesmo kosmos, e especialmente o gênero humano. Entranhado em todos os seres como a água numa esponja, ou a tinta num mata-borrão, este Deus impessoal também está «embebido» no homem. É uma força que produz em nós sensações interiores, aspirações de caráter religioso mais ou menos vagas. Cada qual procura, então, satisfazer estas aspirações forjando uma religião conforme lhe convenha, ou escolhendo uma das várias religiões já conhecidas. Isto posto, todas as religiões existentes, ou as que ainda se vierem a produzir, são igualmente legitimas, pois preenchem seu papel desde que satisfaçam as aspirações religiosas dos homens que a engendraram. Diante desta concepção, é perfeitamente indiferente indagar se os dogmas desta ou daquela religião são verdadeiros. De fato, todos os dogmas são falsos, produtos da mente humana que os concebeu para sua satisfação. São para os adultos mais ou menos como os contos de fadas para as crianças. Visto deste ângulo, o Catolicismo apresenta dois aspectos. De um lado, muito bom: enquanto religião engendrada por uma grande quantidade de homens para se satisfazerem quanto a necessidades religiosas. Outro muito mau: enquanto se pretendesse que os nossos dogmas são realmente verdadeiros pois que, sustentavam, manifestamente eles são tão falsos quanto os de outra religião qualquer. E vinha então toda uma explanação de objeções contra a doutrina católica: negava-se a divindade de Jesus Cristo, a existência do sobrenatural, a própria existência de um Deus pessoal, a veracidade dos fatos narrados nos Livros Sagrados, etc. etc. Se se perguntasse a um sábio desta escola se era inimigo do Catolicismo, responderia que não, mas que acharia perfeitamente ridículo ver nele uma religião objetivamente verdadeira. Seus dogmas eram falsos, eram mutáveis, de fato já tinham sido uns no início do Cristianismo e seriam outros com o decurso do tempo.
À vista disto, o que faziam os modernistas? Em lugar de desmascarar a doutrina nova, mostrando que em última análise ela negava todas as religiões, inclusive a católica, contemporizavam:
a) — uns, mais «moderados» limitavam-se a fazer coro com os escritores ímpios, em pontos «secundários», isto é, negando a autenticidade de relíquias e fatos hagiográficos veneráveis, até então tidos por incontestes; aceitando interpretações capciosas da Sagrada Escritura, tendentes a dar significado mais «racional» a este ou àquele tópico; pleiteando uma adaptação de toda a disciplina da Igreja aos costumes e estilos do século XX;
b) — outros, mais arrojados, insinuavam a possibilidade de reformar o próprio dogma em pontos reputados «menos importantes», sob a alegação de que alguns deles deveriam acompanhar a marcha das ciências. Pleiteavam também a «reforma» de certos pontos de moral, como a indissolubilidade do casamento, reputados manifestamente anacrônicos.
c) — outros, por fim, já não conhecendo limites para suas audácias, apresentavam em seus livros, em linguagem velada, toda a doutrina dos escritores ímpios.
O modernismo «católico» se propagou nos meios eclesiásticos da Europa e da América com a suavidade e a celeridade de uma mancha de azeite. Quando Pio X subiu ao trono pontifício, já este movimento ideológico constituía uma potência, que contava com a cooperação de professores universitários, escritores, jornalistas, homens de ação, personalidades de relevo social de toda a espécie.
Houve um diretório que orientasse todo este esforço? É difícil responder a esta pergunta, mas é certo que muitas coisas se passavam como se este diretório existisse. Assim, os modernistas de todos os países mantinham entre si uma correspondência estreita, elogiavam-se mutuamente e com ardor, e cooperavam intimamente para o mesmo fim... tudo com tanta precisão, tanta harmonia, tanta conjuração de todos para o objetivo comum, que verdadeiramente em certos momentos se tinha a impressão de que algo de coordenado havia em tanto trabalho.
Esta impressão era particularmente nítida para quem observasse com diligência a estratégia modernista:
a) - antes de tudo, guardavam um tal ou qual segredo. Para melhor «despistar», costumavam evitar a apresentação sistemática e lógica de sua doutrina. Pareciam até discrepar entre si num ou noutro ponto. Era necessária uma análise muito madura para perceber que estas discrepâncias ou eram inteiramente acidentais, ou até inexistentes; e que em meio a tanta aparente balbúrdia havia uma perfeita unidade de pensamento;
b) - de outro lado, os mais arrojados não exprimiam inteiramente seu pensamento. Falavam por meio de metáforas, de circunlóquios. Era necessária uma como que iniciação para se chegar ao inteiro conhecimento de seu modo de pensar;
c) - para escapar a qualquer condenação pontifícia, chegavam a publicar livros com nomes de autores supostos, o que permitia a um mesmo escritor ostentar várias máscaras, e mais facilmente embair os incautos;
d) - por fim, intimados a se explicar desdiziam-se com toda a facilidade, para mais tarde, em outra obra, voltar novamente a pregar o erro.
É doloroso dizê-lo, mas esta estratégia era seguida não só por leigos, mas até por Sacerdotes, de tal maneira o fanatismo modernista havia obliterado as consciências.
e) - quando alguém atacava suas doutrinas, moviam-lhe uma «guerra total», que ia desde a refutação doutrinária até a campanha de difamação pessoal. E quando nada tinham que objetar doutrinariamente, ou pessoalmente, organizavam a campanha do silêncio. Ao que era assim «castigado» cerravam-se todas as tribunas, todas as redações de jornais, as portas de todas as revistas, e até de muitas associações religiosas. Era o ostracismo.
Os objetivos do movimento eram claros. Tratava-se de transformar a Igreja por dentro. Era uma evolução a ser feita maciamente, sem choques nem barulho, mas que deveria ser, em última análise, a maior das transformações sofridas pela Igreja em sua história vinte vezes secular. Para isto, era essencial que os modernistas ficassem dentro dos ambientes católicos; que ocupassem cátedras, púlpitos, jornais e revistas católicos; que falassem sempre em nome da opinião católica. Em nossos dias chamar-se-ia a isto uma quinta coluna. Mas, no tempo de Pio X, o vocábulo ainda não existia. É frisante o caso de um Sacerdote modernista cujo livro fora condenado. Perguntaram-lhe se se revoltaria e deixaria a batina, ou se abjuraria suas ideias. Ele sorriu e, indicando que não faria uma coisa nem outra, deu esta resposta: «comprarei uma batina nova».
O que faria o Papa? Diante do modernismo, fecharia os olhos? Muitos motivos pareciam aconselhar esta tática:
a) — vários chefes modernistas eram inteligentes, capazes de uma atividade apostólica intensíssima, de uma probidade de vida indiscutível. Seria sumamente doloroso golpear pessoas dignas de tanta consideração;
b) — depois, golpeando-as não se correria o risco de as arrastar à apostasia? Dado que entre os apóstatas eventuais estava número não pequeno de Sacerdotes, inclusive Religiosos, não haveria com isto notável escândalo para o povo fiel?
c) — valeria a pena dividir os católicos numa época de lutas?
d) — o Papa é pai de misericórdia. Fica bem ao seu ministério agir com severidade em relação a uma corrente em cujas fileiras haveria possivelmente muitas pessoas bem intencionadas?
Este último ponto, especialmente, chamava a atenção. Pio X era de uma bondade angélica. Ninguém se aproximava dele sem experimentar os eflúvios de sua bondade. Iria ele agir com uma severidade que parecia tão contrária a seu temperamento?
Primeiramente, com bondade paternal, Pio X advertiu em particular aos principais responsáveis, aconselhando-os, exortando-os, advertindo-os. Dada a inutilidade destes esforços, começou a tomar atitudes públicas, referindo-se ao assunto com uma energia cheia de prognósticos severos. A 3 de Julho de 1907, a Sagrada Inquisição Romana e Universal publicou o famoso decreto «Lamentabili», em que se condensavam as principais doutrinas modernistas, todas condenadas pela Igreja. Ainda isto não foi suficiente. Pio X deu então o golpe fulminante que foi a Encíclica «Pascendi Dominici Gregis», de 8 de Setembro de 1907, em que com uma energia que se poderia chamar hercúlea se, mais do que isto, não fosse sobrenatural, denunciou e estigmatizou o modernismo.
Nesta Encíclica, Pio X expõe longamente toda a doutrina modernista, mostra sua identidade com o pensamento ímpio em voga no século XX, historia as origens do movimento, sua tática, a perfídia de seus estratagemas, a insinceridade de seus processos de ação, e por fim indica os remédios para esta «torrente de gravíssimos erros que às claras e às ocultas se vai avolumando».
Por fim, uma série de excomunhões das mais severas, expulsando das fileiras católicas muitos chefes do movimento, acabou por desmontar todo o sistema de incrustação modernista nas fileiras da Igreja.
Antes de tudo, notemos como Pio X se colocou em posição inteiramente oposta ao campo dos que acham melhor recuar diante do adversário, e passar por debaixo dele, do que enfrentá-lo. É este um primeiro exemplo que devemos atentamente meditar.
De outro lado, notemos como Pio X — o próprio Pontífice em que os homens aclamavam uma bondade que mais parecia de Anjo do que de homem — soube ser de uma energia invencível face ao mal. É que a bondade não exclui a energia, pelo contrário, a completa. E contra os que se obstinam no mal cumpre ser enérgico em toda a medida do necessário para impedir que eles propaguem seus erros e transviem os bons. Assim é que age o Bom Pastor, em relação ao lobo com pele de ovelha...
Por fim, consideremos a confiança de Pio X no sobrenatural. A força da Igreja não vem dos homens, mas de Deus. No cumprimento de sua missão, não tem que recear, nem tiranos, nem multidões. Confiante em Deus pode proceder com evangélico desassombro, porque a vitória será sua.
Estes exemplos têm uma aplicação profunda na vida de todos nós. Quando tivermos de lutar contra os erros modernos de que está saturado o ambiente que todos frequentamos, saberemos que nosso dever é de reagir e não de recuar. Quando um falso ideal de bondade nos sugerir a covardia diante da impiedade triunfante, saberemos que a bondade não consiste em permitir que os maus dizimem à vontade os nossos irmãos. Quando nos parecer que a luta é por demais desigual, continuaremos a lutar até com vigor redobrado, pois saberemos que nossa vitória vem de Deus e não de nós.