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(continuação)

o pecado não encontra guarida. Veio como Triunfador, buscar a Sua Amada, em quem celebrava o maior de Seus triunfos.

Tendo Maria Santíssima entregue Sua alma a Deus (suposto que tenha morrido), os Apóstolos procederam ao sepultamento, levando o corpo bendito envolto nos mesmos linhos sobre que exalara o último suspiro. Colocaram-no em uma sepultura e se retiraram a rezar.

Passado algum tempo — ignoramos quanto — ou, se não houve morte, no momento em que terminou Sua peregrinação terrena, a alma glorificada de Maria animou e transformou Seu corpo, dando-lhe aquela vida gloriosa, imortal, impassível e luminosa que já ornava o Filho de Deus e um dia ornará a todos os Remidos e Bem-aventurados.

E assim, de corpo e alma foi levada ao Céu a Virgem Gloriosa, nos braços dos Anjos, ao encontro de Seu Amado Filho.

O testemunho dos Apóstolos

Já pertence à parte não controlável da narrativa o relato de que os Apóstolos, ao abrirem o sepulcro, dias após a morte, o encontraram vazio, exalando perfumes, e as mortalhas dobradas cuidadosamente.

Comentam os antigos narradores que deste fato do sepulcro vazio, e do cântico dos Anjos, deduziram os Apóstolos a Assunção da Virgem, de corpo e alma, ao céu. O comentário é popular e não entra em apreciação dos problemas teológicos que o Dogma suscita neste passo.

Perguntamos. A verificação do sepulcro vazio é a base do Dogma da Assunção? Respondemos que não. Nem todos os fatos que os Apóstolos presenciaram são base de Dogmas. Todos eles, uma vez contidos na pregação oral ou escrita dos Apóstolos, são objeto de fé, mas nem todos constituem verdades básicas de nossa crença. Eles não fundamentam formalmente doutrinas a serem cridas, mas apenas são fatos que se admite em virtude da inspiração das Escrituras ou da infalibilidade da pregação apostólica.

O fato de encontrarem o sepulcro vazio e ouvirem cantar os Anjos torna plausível, provável a Assunção da Virgem. Porém somente uma revelação feita pelo Senhor aos Apóstolos, seja em Sua vida terrena, seja falando-lhes em visão coletiva, seja em iluminação interna e singular, fundamenta uma verdade de fé. Na própria Ressurreição do Senhor, o testemunho dos Apóstolos, enquanto eles referem suas experiências pessoais, prova apenas a verdade histórica do fato da Ressurreição. Baseados neste testemunho nós admitimos o fato histórico. Mas ainda não subimos ao Dogma da Ressurreição. Este se funda na revelação feita por Jesus antes e depois de Sua morte. Antes, afirmava o Senhor que ao terceiro dia ressuscitaria. Depois, afirmou aos discípulos que era Ele, o que morrera, e que ali estava de novo vivo. "Mete teu dedo nas chagas das mãos, mete tua mão na chaga do lado, e não sejas mais incrédulo, e sim fiel!" Os Apóstolos iluminados pela Luz divina que os fazia infalíveis arautos da verdade, pregavam e anunciavam a Ressurreição do Senhor. E os hagiógrafos, inspirados pelo Espírito Santo, escreviam o fato sob o testemunho de Deus, como fato baseado na autoridade infalível de Deus. Por isto a Ressurreição do Senhor é um Dogma, e não apenas um fato histórico.

Os Apóstolos, quer tenham presenciado a Assunção da Virgem, quer não, instruídos por Deus — em visão ou por iluminação interna — ou ensinaram aos fiéis como verdade revelada, que Deus glorificara o corpo de Maria, animando-o com a alma bem-aventurada da Virgem, e levando-o glorioso para os esplendores da Corte celestial, ou ensinaram doutrinas como a Virgindade, a Imaculada Conceição, a Maternidade Divina, em que está incluída a Assunção.

Não nos é possível, no estado hodierno da teologia, afirmar que os Apóstolos tenham ensinado formalmente como verdade revelada e credenda a Assunção de Maria. O que podemos dizer é que é probabilíssimo que eles o tenham feito. Mas é na Tradição que se baseia este Dogma.

Nos escritos apostólicos não encontramos nenhuma afirmação incontestável desta Verdade. O único que poderia ser apontado como arauto explicito da Assunção é o Discípulo Amado. Não lhe fica mal este papel singular. Quem melhor do que o Profeta de Patmos poderia proclamar a Assunção daquela que foi sua Mãe? A passagem de sua autoria que se poderia aduzir é a maravilhosa visão do Apocalipse no Capitulo doze: "Um sinal grande apareceu no céu: a Mulher vestida do sol, com a lua aos pés, e uma coroa de doze estrelas na cabeça..."

Realmente nosso coração não trepida em ver neste quadro portentoso a visão da Assunção da Virgem, e o Seu papel salvador e central na vida da Igreja. Mas, se nosso coração aplaude, a calma exatidão da Teologia deve dizer que tal interpretação não é tão segura, que se possa considerar como base sólida para a definição de um Dogma.

A disciplina do arcano a respeito do culto marial

Teriam então os Apóstolos omitido a proclamação desta Verdade em seus escritos, mas a ensinado explicitamente em suas pregações orais? Sem dúvida: ou, explicita e formalmente, ou implicitamente, ao ensinarem outros Dogmas marianos.

É certo que desde os tempos apostólicos a Igreja crê com absoluta fé na doutrina da Assunção da Virgem Maria. Talvez seja interessante aprofundar-nos no estudo da fé primitiva da Assunção.

Temos que fazer desde logo uma observação. A posição do culto de Maria e das doutrinas e fatos relativos a Nossa Senhora era de uma delicadeza extrema nos primeiros tempos da Igreja. Quer-nos parecer que a respeito da Virgem, mais ainda do que acerca da Eucaristia, tenha reinado uma severa "disciplina do arcano". Realmente, o vigor com que a devoção a Nossa Senhora subitamente procura sua expansão na liturgia, nos sermões e na arquitetura nos séculos quarto e quinto é tão grande e tão universal que supõe necessariamente a existência de um culto escondido aos olhos e ouvidos profanos durante muito tempo. Com a impetuosidade das águas de uma represa cujas comportas se abrem, o culto de Maria irrompe na Igreja, logo que as condições externas tornam supérflua a disciplina do arcano.

Qual seria o problema diante do qual a Igreja resolveu recorrer ao silencio e ao segredo, diante do mundo profano? Porque motivos a pessoa de Maria Santíssima e tudo quanto com Ela se relacionava ficou coberto com um espesso véu de mistério durante quatro séculos?

Seja-nos permitido abordar este assunto, que nos revela uma grande prudência e delicadeza da Igreja. Satanás, talvez com vistas a impedir ou comprometer a gloria de Jesus, tinha criado figuras que imitavam Seus traços e Sua doutrina. É conhecida a divindade frigia, chamada Mitras, que macaqueava com um paralelismo desconcertante a figura de Jesus. O próprio sacrossanto dia de Natal, 25 de Dezembro, fora escolhido por Satanás para celebrar o natalício de Mitras. Assim também a figura de uma mulher, mãe de Deus, fora abusada, deturpada, conspurcada pelo Inferno, na época em que a Imaculada pousava Seus pés virginais nesta terra empapada de crimes. As divindades fenícias do Panteon grego e romano eram vasos de imoralidade desregrada e sensualidade espessa. O oriente ostentava a sua "Magna Mater Deorum", a "Grande Mãe dos Deuses" com o corpo coberto de seios que se transformavam em animais. Cibele, Ceres, Vênus, são nomes que ainda hoje nos ocorrem cheios do pútrido cheiro do pecado. Éfeso, ali perto de Jerusalém, adorava a sua Diana frigia, num templo colossal, do tamanho da atual Basílica de S. Pedro em Roma, no qual a volúpia era praticada como rito sagrado para a apoteose do iniciado.

Diante deste Panteon de imundícies a Igreja tinha que ocultar a Virgem Santíssima e a veneração que se dava no recesso das reuniões de cristãos e no íntimo dos corações à Puríssima Senhora. Somente após quatro séculos de banhos lustrais que purificaram a atmosfera, os sentimentos, as cabeças e as fantasias do mundo antigo, a Igreja descerrou as cortinas do Santuário Mariano e ostentou à luz meridiana a Mulher, Mãe de Deus. As explosões de alegria de Éfeso são a expressão desta força indomável contida quatrocentos anos. Santa Maria Maior, a Basílica maternal da Cristandade, está aí, no jubilo de seus mosaicos e no esplendor de suas colunas, a proclamar o vigor da devoção mariana do século que viu o triunfo da Cruz sobre o paganismo.

A disciplina do arcano explica sobejamente a reserva dos documentos primitivos sobre a Virgem Maria, e sobre Sua morte. Mas eles apesar de tudo falam.

A literatura assuncionista apócrifa

Silenciaram os escritores inspirados, exceto S. João. Silenciaram os Padres da Igreja, obedientes à disciplina reinante. Mas um trabalho paciente nos revela uma tradição apostólica. Após a morte dos Apóstolos, que pregaram explicita ou implicitamente a doutrina da Assunção, que lhes revelara o Senhor, correu esta doutrina de boca em boca, cercada das cautelas que o decoro da Virgem exigia. Porém nem todos respeitavam tais cautelas.

Um rebelde, um herege, o qual, ao que tudo indica, viveu no século segundo, Lencio, de quem diz Pseudo-Militon que era discípulo dos Apóstolos, autor de escritos apócrifos, escreveu uma novela piedosa "Transitus Sanctae Mariae" em que, em torno do fato da Assunção de Maria, tece narrativas fantasistas, no estilo dos demais apócrifos. O núcleo, porém, não é invenção nem fantasia. É a fé popular, profunda e arraigada, da Assunção que fornece o tema para os devaneios da fantasia. Acontece com a Assunção o que acontece com a Infância do Senhor. Em torno dos fatos evangélicos certos e fundamentais, a imaginação do povo, em geral em meios heréticos, cria um acervo de narrativas arbitrarias e espetaculares. O tronco sadio da fé popular a respeito da Assunção atravessa os três séculos de silencio, intato, mas em torno dele, fora da Igreja, já se vai formando a literatura apócrifa como um emaranhado de cipós e de folhas secas, que um dia ameaçará sufocá-lo.

Quem não tem familiaridade com estes assuntos, ignora a fauna de parasitas que, vicejam em redor da fé inabalável e recatada. Publicou-se então toda uma pequena biblioteca de novelas girando sobre o fato central da Assunção. O mal enorme que este parasitismo fez à Igreja foi de perturbar a limpidez da tradição, e criar a impressão de que era sobre lendas populares e sobre narrativas apócrifas que se baseava a crença na Assunção. Foi necessário um imenso trabalho de depuração, que levou quatorze séculos, para libertar definitivamente o tronco imaculado da maravilha de fantasias que o cobriam.

A tradição, base do dogma

Se apelamos para o substrato histórico que permanece intato sob a literatura apócrifa, vemos a tradição apostólica do século segundo, e atingimos a época em que S. João vivia. Se recorremos às liturgias antiquíssimas, vemos realizarem-se em todas as igrejas, mal soa a liberdade do culto católico, as festas que celebram a Assunção da Virgem como doutrina inconcussa e revelada.

Assim, na página viva da fé, consubstanciada nas liturgias, e no monumento misto de ouro e ganga da literatura apócrifa, e, quem sabe, na Orante das Catacumbas e nos sarcófagos, como o de Santa Engracia, ao pé do Pilar de Zaragoza, a fé apostólica alcança a época da liberdade política e cultural da Igreja.

Mas, com o século quarto, os esplendores de Santa Maria Maior, e das demais igrejas dedicadas à Virgem são o quadro das mais expressivas homilias assuncionistas. Timóteo de Jerusalém, Epifânio de Eleuterópolis, na Palestina, o diácono poeta Santo Efrem, na Síria, Venâncio Fortunato no Ocidente, na França, São Gregório de Tours, e outros e mais outros empunham a lira ou acendem o estro para cantar os louvores da Assunção gloriosa de Maria.

S. Cirilo de Alexandria canta: "Recebei nossos parabéns, Maria, Mãe de Deus, Vós que sois o venerando tesouro do mundo, a lâmpada inextinguível, a coroa da virgindade, o cetro da crença reta, o templo indestrutível, a mansão do Infinito, a Mãe e Virgem!" E Esíquio de Jerusalém argumenta com o Senhor: "Levantai-Vos, Senhor, para Vosso repouso, Vós e a Arca de Vossa santidade (a Virgem, a Mãe de Deus, evidentemente). Pois se Vós sois a pérola, logicamente Ela é a concha; pois se sois o sol, a Virgem necessariamente será o céu; se Vós sois flor imarcescível, a Virgem será a arvore da incorrupção, o horto da imortalidade".

Mais antigo que ambos, Timóteo de Jerusalém é testemunha da fé tranquila da Igreja na Assunção da Virgem Maria. Comentando a passagem da profecia de Simeão: "À Tua própria alma traspassará uma espada, afim de que os pensamentos de muitos sejam revelados" — assim fala: "Deste texto provém que várias pessoas julgassem que a Mãe tivesse sido morta a espada, e que tivesse tido um trespasse igual ao dos mártires, porque Lhe dissera Simeão: "À Tua própria alma uma espada traspassará". Mas a realidade é diferente. O gládio, feito de bronze, divide o corpo mas não corta a alma. É por isto que a Virgem é até hoje imortal, porque Aquele que nela habitara, A levou para os lugares da assunção".

E São João de Damasco, que nos transmite a tradição oral e escrita da Síria e da Palestina, assim perora: "O corpo santíssimo (da Virgem Maria) é colocado em um túmulo belíssimo e preciosíssimo, e de lá, três dias depois, é elevado às celestes habitações. Porque era necessário que aquele domicilio da Divindade, aquela fonte intata da água da remissão não ficasse presa nas entranhas da terra; pelo contrário, assim como aquele corpo, d'Ela recebido e unido hipostaticamente a Deus, ressurgiu do sepulcro ao terceiro dia, assim era mister que Ela fosse arrebatada da sepultura, e a Mãe migrasse para junto do Filho; e assim como Ele descera ao seio d'Ela, assim Ela, que Ele tanto amara, fosse elevada naquele imenso e perfeito Tabernáculo, que é o Céu".

Aqui a voz da Tradição já tem acentos da teologia, da fundamentação sistemática com os dados da Revelação. É sobre a Tradição e sobre os Dogmas relativos à Virgem Santíssima, que se alicerça a definição da Assunção.

À palavra de S. João Damasceno e dos Escritores e Teólogos que nos deixaram o testemunho da fé católica, se vieram juntando no decurso dos séculos os Bispos de todo o orbe. Antes de proceder à proclamação do Dogma, o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, auscultou o sentir do Episcopado atual. Falaram os Bispos, não como investigadores dos argumentos teológicos que podem demonstrar a Assunção, mas como testemunhas da fé dos fiéis e do Clero de suas Dioceses. Desfilaram diante do Sumo Pontífice as petições feitas nos últimos decênios. Passaram por Suas mãos as suplicas de definição do dogma formuladas por setenta e dois Cardeais, dezessete Patriarcas, onze Vigários Patriarcais; desfilaram os Bispos Reunidos no Concilio do Vaticano e em setenta e seis Concílios plenários e provinciais; Ele manuseou os pedidos pessoais de 1.325 Arcebispos e Bispos residenciais, de 167 Administradores Apostólicos, de 131 Bispos titulares, de 261 Vigários Apostólicos, 67 Prefeitos Apostólicos, 22 Núncios e Delegados: ao todo 2.505 testemunhos e pedidos dos Sucessores dos Apóstolos. A este ingente coro, uniram suas vozes 17.063 Sacerdotes seculares, 15.228 Religiosos, 50.975 Religiosas e 8.086.396 fiéis.

Este foi o clamor imenso, que S. João compararia à voz de uma grande cachoeira, em que se baseou a Santa Sé na definirão do Dogma. Não diziam os Bispos apenas que eles criam na Assunção da Virgem, mas que eles e seus fiéis criam nesta doutrina como verdade da qual não é licito apartar-se, como coisa que Deus revelou à Igreja, e que é baseada no testemunho divino. A seiva viva da fé apostólica percorreu assim dezenove séculos intata e pujante. Como escorias foram afastadas as fantasias apócrifas, e hoje brilha, em todo o seu esplendor, o Dogma da Assunção como a consagração total dos dotes concedidos pela Santíssima Trindade à Virgem Santíssima.

Aplauso imenso do Céu e da terra

Ao comparecerem em Roma, em 1º de novembro de 1950, os trinta e seis Cardeais, os setecentos Bispos, os inúmeros Sacerdotes e fieis, vindos de todo o mundo, eles eram portadores do aplauso imenso do orbe católico ao ato pontifício que declarava com autoridade suprema e infalível a Assunção da Virgem Maria de corpo e alma ao céu, como verdade revelada por Deus, a ser crida como artigo de fé por todos os fiéis. Na explosão de santa alegria que acolheu esta sentença solene vibraram quatrocentos milhões de corações de católicos contemporâneos presentes em espírito, e os bilhões daqueles que creram como nós na Assunção de Maria, mas foram assistir à festa da proclamação do Dogma já nos páramos celestes, onde não mais creem mas vêm a Virgem Gloriosa a reinar em corpo e alma como RAINHA ASSUNTA AO CÉU.


COMO SE PREPARA UMA REVOLUÇÃO - O JANSENISMO E A TERCEIRA FORÇA

«A outros a defesa da verdade atacada pelas discussões que viciam a caridade, na qual, só, queremos nos firmar»

Legenda: O Cardeal Fleury, ministro de Luiz XV, foi, por temperamento e ambição política, um instrumento ideal da terceira força. Apoiou sistematicamente os Bispos que, com aparência de ortodoxos, impediam por sua inércia a luta contra o jansenismo. O quadro de Rigaud exprime bem a mentalidade superficial e otimista de Fleury. Fisionomia inteligente, risonha, despreocupada, porte nobre mas distendido, de homem pouco afeito à luta, o Cardeal parece fruir todas as venturas desta vida no exercício das altas funções eclesiásticas e civis cuja pompa é manifestada no quadro pela riqueza dos moveis, abundancia e fausto dos panejamentos.

Como se sabe, a Revolução Francesa foi fruto de uma preparação ideológica profunda, que, desde o Renascimento e o Protestantismo, passando pelo Deísmo e o Iluminismo, chegou à impiedade completa, expressa com toda a nitidez nas realizações políticas e religiosas do surto republicano de 1792.

O Jansenismo, quinta coluna na Igreja

CONSIDERADA à primeira vista, nos fins do século XVIII a luta pareceria delinear-se em termos muito claros: de um lado a Igreja, no lado oposto o conjunto de correntes e seitas declaradamente ímpias — Protestantismo, Filosofismo, Iluminismo, etc. — que se poderia chamar a anti-Igreja. Na realidade, o panorama era mais complexo. A anti-Igreja não colocara todos os seus sequazes nas hostes reconhecidamente heterodoxas; pois encontrou ela meios para instalar em grande número elementos seus dentro das próprias fileiras católicas. E estes elementos não estavam isolados uns dos outros, agindo cada qual por própria conta. Constituíam toda uma rede de atividades sabiamente executadas, visando fazer dentro da Igreja o jogo dos adversários desta, em suma o que em nossos dias se chamaria uma quinta-coluna.

O objetivo desta quinta-coluna consistia em minar a reação católica. Para isso, tinha uma dupla missão. Primeiramente, difundir, sob capa de Catolicismo genuíno, sistemas teológicos e morais errôneos, que aproximassem os fiéis das tendências ímpias, e os distanciassem dos ensinamentos de Roma. Em segundo lugar, introduzir-se, quanto possível, nos cargos chave: cátedras universitárias, direção espiritual de seminários e comunidades religiosas, de tronos e principados, paróquias importantes, e, acima de tudo, sólios episcopais. A heresia procurava assim infiltrar-se o mais profundamente que podia nas próprias entranhas da Igreja e das monarquias cristãs e conseguia desnortear e perder os fiéis, ensinando-lhes com autoridade quase da mesma Igreja os erros que esta condenava.

Tal foi o Jansenismo, heresia nefasta que com cínicos subterfúgios burlou as várias condenações contra ela lançadas pelo Magistério Infalível, e procurou conservar-se sempre no seio do Catolicismo, para viciar-lhe as fontes de vitalidade.

O Jansenismo minava a Fé e extinguia a piedade

A OBEDIÊNCIA e docilidade ao Santo Padre, a fidelidade à Escolástica — essa síntese admirável da Filosofia e da Revelação, — o fervor dos fiéis no habito da Confissão e da Mesa Eucarística, e a devoção a Nossa Senhora, asseguram na Igreja a conservação dessa energia que a torna a rocha viva contra qual se quebram as armas infernais.

Os Jansenistas, inimigos da Igreja, tentam permanecer aparentemente no seu seio, para acabar com tudo isso. Seu rigorismo farisaico afasta os fiéis dos Sacramentos. A crítica sofística a que submetiam as decisões pontifícias, criou o "opinionismo", o "liberalismo católico", a liberdade de pensar cada um como queira, pois que tudo não passa de opiniões que podem ser verdadeiras, como podem ser falsas; a exaltação da Patrística e da Igreja primitiva, abalando a confiança na Escolástica, teologia mais clara, mais precisa, mais definida, dá origem às incertezas da inteligência agindo em um campo ainda nebuloso, e confirma profundamente os espíritos na convicção de que tudo são opiniões igualmente respeitáveis.

Esta intenção do Jansenismo como pode ver-se por sua história. Na realidade apresentava-se como defensor da Teologia de Santo Agostinho, interpretada em sentido protestante, como se o Doutor da Graça admitisse a dupla predestinação como fruto necessário da graça divina ou de sua ausência. Pois, para os jansenistas, há preceitos divinos para cujo cumprimento faltam ao homem as energias necessárias; e caso receba estas energias, ou seja a graça de Deus, já não é mais ele livre de realizar a boa obra: o auxilio divino impulsiona necessariamente sua vontade.

Na aparência, portanto, o Jansenismo divide os espíritos num mero campo teológico. De fato, é uma conjuração à maneira de quinta-coluna hodierna, para solapar a Igreja.

Desmascarada a quinta coluna

PERCEBE-SE facilmente que esta seita herética realizaria sua infernal empresa com êxito se conseguisse ficar inteiramente oculta dentro dos meios católicos. Porém, tal não se deu. Vigorosamente combatida por polemistas e teólogos de valor, foi ela obrigada a defender-se. E, saindo a campo, pôs à mostra não só as garras, mas toda a musculatura. Seu objetivo essencial ficava assim, ao menos em parte, baldado. Roma, alertada, condenara o sistema. Os fieis estavam, pois, premunidos. Os jansenistas que se diziam católicos, já não podiam agir na sombra, como uma quinta coluna. Restava-lhes constituir, conservando a aparência de católicos, uma espécie de "igreja dentro da Igreja", arregimentando os espíritos mais orgulhosos, mais temerários, mais relaxados, para, numa guerrilha incessante de chicana e sofismas com os católicos autênticos, manter em luta contínua os filhos da luz. Com isto, mais fácil se urdia a conspiração dos filhos das trevas fora dos arraiais da Igreja.

Entre jansenistas e ortodoxos, uma terceira força

A revista "Annales" (abril-junho de 1951), atualmente, como se sabe, um dos melhores órgãos especializados em História, Emile Appolis publica um artigo valioso e muito interessante, em que, reunindo fatos já conhecidos e documentos novos por ele pesquisados, chega a demonstrar, com impressionante clareza, que o Jansenismo, caracterizado, condenado, perseguido, mas sempre entranhado nos meios católicos, engendrou por sua vez uma como que terceira força — terceiro partido, diz Appolis — constituída de eclesiásticos de várias categorias, que realizaram a tarefa muito delicada de dar aos jansenistas condições de existência suportáveis no seio da Igreja, apesar de toda a pressão contraria. Preliminarmente, estes eclesiásticos não se diziam jansenistas. Antes, a linha geral de seu procedimento dava a ilusão de que estavam de acordo com Roma. Na realidade, porém, não combatiam o Jansenismo, e sustentavam a tese de que este normalmente desapareceria se os anti-jansenistas cessassem qualquer campanha contraria, e a Santa Sé se abstivesse de toda medida de rigor que tivesse caráter pessoal.

Esta posição, que doutrinariamente nem era a dos jansenistas, nem a dos anti-jansenistas militantes, agradou a muitos espíritos eminentes, desejosos de empenhar toda a sua influência para desmoralizar a luta contra a heresia.

A partir do momento em que esta tática ardilosa triunfou, nas fileiras católicas houve três atitudes: os jansenistas, em luta aberta com os partidários de Roma; a terceira força, também em oposição aos partidários de Roma, que acusava de exagerados, intransigentes, fomentadores de lutas, inimigos da caridade; e os partidários de Roma, isolados, incompreendidos, desmoralizados porque contra eles se voltavam não só os jansenistas, mas muitas pessoas ilustres pelos seus cargos, e dignas por sua piedade e austeridade de vida, alistadas na terceira força.

O grande mérito do estudo de Appolis está em que põe em relevo que os homens da terceira posição, sob a capa de neutralidade, eram dedicados agentes da causa jansenista e que à seita prestavam o mais precioso dos serviços.

Este importante ponto da Historia eclesiástica recebe assim luz nova. CATOLICISMO, em cujo programa se inscreve o fomento do interesse pela História da Igreja, oferece a seus leitores os principais tópicos do estudo de Emile Appolis. Desnecessário será lembrar a pessoas cultas que a grande interferência, então existente, do poder temporal na preconização dos Bispos, prejudicava gravemente a liberdade de movimentos da Santa Sé, bem como a seleção de Pastores verdadeiramente imbuídos do espírito de integral fidelidade a Roma.

Constitucionários, Apelantes, Moderados

APPOLIS toma como objeto dê seu estudo a França do século XVIII. O Jansenismo estava em sua última fase de existência como seita (pois sobreviveu a si mesmo no espírito liberal que infesta ainda hoje muitas mentalidades e movimentos católicos). Seu grande chefe naquela época era Pasquier Quesnel, cujo livro "Réflexions morales sur le Nouveau Testament" foi, após várias peripécias, fulminado pela bula "Unigenitus” de Clemente XI ( 8 de setembro de 1713 ). Mas o Jansenismo, graças à negligencia do poder secular, já tinha firmado raízes em França. Assim, embora registrada pelo Parlamento, e aceita pela Assembleia do Clero, não obteve aquela bula papal obediência pacifica de todo o país; diante dela dividiram-se os Bispos franceses em três grupos. Uma parte acatou plenamente a palavra de Roma, e aplicou com ardor todos os dispositivos da bula; chama-os Appolis "constitucionários", em virtude de sua adesão perfeita à Constituição Apostólica. Outra parte, declaradamente jansenista, recusou submeter-se à decisão da Santa Sé, e apelou da Constituição para o futuro Concilio geral: são os "apelantes", que eram quatro em 1717, e depois foram em número de vinte. Uma terceira parte escolheu posição media, subscreveu a bula, mas nada fez para sua aplicação: são os que Appolis chama de terceira força.

A arma da 3ª força: salvar a união

A RAZÃO invocada por este último grupo de Prelados é a manutenção da paz entre as ovelhas, e da caridade com todos. Assim, não tomam partido, nem se preocupam com saber se há jansenistas em

(continua)