PELA CONCÓRDIA
"Em sua substância, o humanismo integral é um naturalismo integral"
(continuação)
seus principais caracteres, que é o que mais impressiona: desconfiança de muitos católicos em relação às ingerências, que chamam indébitas, da Igreja, isto é, desconfiança dos filhos para com a Santa Madre Igreja. Desconfiança que se evidencia pela insistência com que se assinala como perigo para tais atividades (as dos leigos) o clericalismo, em um sentido vago e que semeia confusões; e pela insistência em proclamar a necessidade de um humanismo integral teocêntrico, mas descristianizado, com o fim de encontrar e oferecer um ponto de unidade comum na solução de problemas fundamentais para a estruturação da cidade terrena”.
A Pastoral Coletiva passa a assinalar, em seguida, dois graves perigos: “a descristianização do Catolicismo” e “a desclerização do Cristianismo”. Fá-lo nestes termos:
“O primeiro poderia chegar até à heresia, se levado até suas últimas consequências. O segundo espalha confusão cada vez que, utilizando-se o conceito e termo clericalismo, não se defina e estabeleça bem claramente seu significado. Sem esta cautela poder-se-ia chegar, como infelizmente já se chegou uma ou outra vez, até à negação da Igreja enquanto Sociedade Hierárquica dotada de magistério infalível da verdade, como a estabeleceu e fundou Jesus Cristo.
“Mal se concebe que católicos, por vezes em maioria, que se empenham com reta intenção em dilatar o Reino de Deus, e aproximar d’Ele as almas, em busca da unidade, sintam a necessidade de prescindir doutrinariamente de Jesus Cristo e sua Igreja, em que parecem não ver centros de salvação e união, mas causa de desunião: tais católicos preferem, como doutrina salvadora, um humanismo que chamam integral e teocêntrico, acrescentando que é de inspiração cristã. E com esta qualificação aumentam a confusão e a desorientação em si mesmos e em seus discípulos. Por inspiração cristã entendem que não se pode negar a influência civilizadora do Cristianismo na estruturação do mundo ocidental, e que, nos princípios evangélicos, permanecerão sempre fermentos vivos, capazes de transformar as instituições atuais em outras mais justas e condizentes com a dignidade da pessoa humana. Mas eles deixam bem claro que, enquanto organização, não aderem a qualquer dogma teológico. Sem embargo disto, em sua grande maioria são católicos os que assim tentam implantar o humanismo integral teocêntrico, sustentando a explicação social, política, educacional e econômica dos elementos contidos na mensagem evangélica, e procurando, em síntese, a realização de uma cidade vitalmente cristã. Fala-se, pois, de inspiração cristã, se bem que se deixe de lado a Pessoa Divina de Jesus Cristo Nosso Senhor, ..., e, portanto, também sua Igreja Hierárquica,...
“Mas caberia aqui perguntar: pode haver salvação e unidade da humanidade em outro nome que não seja o do Redentor Jesus Cristo?... Por este caminho já se chegou a coisas incríveis: até à negação do Cristianismo como Igreja de Jesus Cristo, para afirmar exclusivamente a existência de um Cristianismo como cultura e humanismo universal. Assim, Jesus Cristo, para alguns, não teria fundado a sociedade visível e hierárquica que é a Igreja Católica, mas teria estabelecido a cultura universal que seria o humanismo cristão.
“... A tendência que apontamos procura, no humanismo integral, teocêntrico, a realização de uma cidade vitalmente cristã, o que não se pode alcançar sem Jesus Cristo e sua Igreja, quando visa realizá-lo maioria católica”.
Assim, pois, o Episcopado Argentino não trepidou em enfrentar o problema do “humanismo integral”, e o resolveu com consumada maestria. E para quê? Para estabelecer a unidade ente os fiéis. Pois é precisamente este o título da Pastoral Coletiva: “Apelo do Episcopado Argentino para a unidade dos católicos”.
Quantas e quantas vezes, fomos acoimados de semeadores de cizânia entre os católicos, porque ousávamos apontar os erros dos maritainistas. Pois, para os Bispos Argentinos, agir assim é trabalhar para a união. Seja como for, o que importa a nosso artigo é mostrar como um problema de interesse universal foi acertadamente enfrentado e resolvido com superior lucidez pelo Episcopado de uma nação.
O Clero em face de erros grassando entre os fiéis
Mas, objetará alguém, o que um Bispo pode dizer, não o pode um Padre. Pois veremos aqui como um Religioso ilustre, o Pe. A. Messineo, S.J., numa revista que é uma das glórias da cultura, isto é, a “Civiltà Cattolica”, em artigo recente (agosto de 1956) acaba de tratar desassombradamente do mesmo assunto. E isto sem ver motivos para recear que alguém o chame de divisionista, semeador de cizânia, etc., etc.
Não resumiremos aqui seu trabalho. Consideramos preferível publicar dele grandes excertos em outra edição. Limitamo-nos a referir que o ilustre filho de Santo Inácio, depois de apontar a influência do sistema modernista de Bergson sobre a concepção de humanismo integral de Maritain, e a coincidência que esta apresenta em alguns pontos com outro filósofo anticatólico, Benedetto Croce, conclui: “Sob o aspecto filosófico, a distinção ente natureza, de um lado, e espírito e liberdade, de outro, poderia levantar certas questões, mas é mais oportuno deixá-las cair, para nos firmarmos no essencial, ou seja, na relação entre a civilização e a Religião, ponto importante do sistema humanístico maritainiano. Afirmada a essência puramente humana da civilização, não se pode deixar de deduzir daí a separação da Religião e da Revelação, por onde começa a vacilar o conceito tradicional de civilização cristã... A Religião, diz Maritain, não é elemento constitutivo da civilização, de nenhuma civilização”. E mais adiante conclui o ilustre jesuíta: “No plano da história, pois, não atuaria o Cristianismo enquanto Religião revelada e transcendente, o Evangelho na sua pureza originária de palavra divina transmitida ao homem, a ordem da graça e das realidades superiores nela contidas, mas um Cristianismo e um Evangelho esvaziados de seu conteúdo sobrenatural e naturalizados, temporalizados”.
E por fim afirma: “Pode-se agora compreender o que se deve discernir na expressão humanismo integral. Aceitas as premissas sobre as quais nos temos firmado, ela não se pode entender senão como afirmação integral dos valores humanos, enquanto tais, e da liberdade, em uma sociedade profana e na existência profana, na qual o homem tomou consciência de si”. Os princípios cristãos perdem assim sua eterna imutabilidade, sua transcendência e universalidade. “São valores puramente humanos, naturais e não sobrenaturais,... que não se elevam de um centímetro acima do plano natural”.
Tal humanismo integral “não é um humanismo intrinsecamente cristão, não é o humanismo do homem regenerado pela graça, da sociedade fermentada e santificada por meio do homem, o humanismo das relações cuja lei deriva de uma natureza elevada e pertence à ordem transcendente da Revelação. É um humanismo cristão tão somente a título extrínseco, ao qual podem aderir o agnóstico e o ateu, o racionalista e o incréu. Na sua substância, pois, o humanismo integral é um naturalismo integral”.
Outro exemplo ilustre: Mons. Olgiati
Mons. Francisco Olgiati, professor da Universidade Católica de Milão, é um dos sacerdotes mais ilustres da Itália e um dos intelectuais mais em evidência em todo o mundo.
Deu ele também um magnífico exemplo de força e franqueza ao abordar os erros ou as tendências erradas existentes entre os católicos de seu país. Fê-lo sob a forma de uma carta aberta ao Conde Dalla Torre, diretor do “Osservatore Romano”. E para isto teve à disposição as colunas prestigiosas da “Rivista del Clero Italiano” (Milão, dezembro de 1955).
Tratando da tendência de importantes círculos católicos da Itália para a esquerda, e da correlativa reação de católicos para as posições ditas da direita, Mons. Olgiati destaca alguns problemas ideológicos especialmente palpitantes, suscitados a tal respeito, analisa-os lúcida e corajosamente, e pede o pronunciamento do Conde Dalla Torre.
Preocupa-o sobretudo a falsa ideia de que hoje em dia os católicos não podem agir a não ser apoiados na esquerda, e de que a história, em seu curso fatal, caminha para a esquerda, de sorte que, ou aderimos a esta posição, ou ficaremos fora da história.
Também esta carta aberta tem trechos magníficos. Mencionamos apenas um. Como se sabe, Mons. Olgiati é muito idoso. Terçou ele suas primeiras armas na liça do apostolado, quando ainda estavam vivos os grandes campeões católicos do pontificado imortal de Pio IX. Diz Mons. Olgiati: “O Cristianismo era considerado (por aqueles campeões) o levedo de que fala o Evangelho, que deve fazer fermentar toda a massa. E se alguém tivesse falado no curso fatal da história, aqueles grandes teriam sorrido. Naqueles decênios, o curso fatal da história parecia dirigido pelo liberalismo, hoje em declínio mas então em pleno vigor em todos os campos, a tal ponto que a Pio IX - que por meio do Syllabus o havia condenado - se replicava que ele se tinha afastado da história, e por isto seria o último Papa. E aqueles grandes sorriam, e respondiam, com o mártir do Equador, Deus não morre. A história nunca é aceita passivamente pelo cristão. Ele a cria em nome e com a força de Jesus Cristo”.
Palavras altamente benfazejas para certo público brasileiro que está sempre disposto a aplaudir e a endeusar tudo quanto é moderno, só porque é moderno, e receia que a Igreja, dissociada de modernismo e modernidades, morra.
Palavras que nos fazem ver um ilustre teólogo, cônscio de sua responsabilidade e seus direitos, e que não receia exorbitar apontando tendências erradas entre católicos italianos de nossos dias.
O dever da imprensa católica
Deixemos de lado o grande e lúcido debate que se trava pela imprensa religiosa da Itália a propósito do problema da colaboração dos católicos com os comunistas ou socialistas - problema vastíssimo que abrange, como é óbvio, muitas outras tomadas de posição estritamente doutrinárias, ou tático-doutrinárias - e no qual se envolvem a fundo figuras como Dom Sturzo, sem que ninguém se lembre de o estranhar.
E consideremos, depois de haver visto o exemplo de um Cardeal, de Bispos, de sacerdotes, [o] de um periódico de leigos católicos.
Como é natural, escolhemos o que há de melhor, para servir de exemplo. Nossos amigos da revista “Cristiandad”, de Barcelona, constituem um dos mais valorosos e brilhantes escóis da intelectualidade católica contemporânea em todo o mundo. Se fossem esquerdistas, estariam no galarim da glória. E não obstante sua orientação profundamente católica, têm uma notoriedade incontestável, árdua e honestamente conquistada por esforço próprio, pelo mérito de sua cultura e de sua ortodoxia.
É uma revista católica dirigida por leigos, com a larga aprovação do Exmo. Revmo. Sr. Arcebispo-Bispo de Barcelona.
Ora, esta revista, exímia na manutenção do princípio de autoridade, que é como que a alma de sua alma, estampou em sua edição de 1º e 15 de agosto p.p. um lúcido estudo do Revmo. Pe. José Bicart Torrens, refutando várias aberrações do livro de um sacerdote jesuíta, o Revmo. Pe. Carlos Maria Staehlin, intitulado “Apariciones. Ensayo crítico” e publicado pela Editora “Razón y Fe”, na Coleção Psicologia-Medicina Pastoral, com aprovação eclesiástica.
O livro desse sacerdote tem frases como esta: os Santos, “em suas visões, audições e revelações mais ou menos ilusórias, sofreram engano, do qual nunca saíram” (págs. 46-48 ). “Certas devoções salvadoras e tão populares e recomendadas como o Escapulário do Carmo se apresentam sem o devido fundamento histórico em que apoiar suas promessas atraentes” (pág. 154). E neste espírito e com esta linguagem tentou o autor deslustrar as principais devoções inculcadas pela Igreja, inclusive as do Santo Rosário, do Coração Imaculado de Maria e do Sagrado Coração de Jesus. Linguagem pelo menos muito irreverente e imprudente, capaz de ser nociva aos fiéis, máxime considerando-se que vêm da pena de um sacerdote.
Com todo o respeito, com toda a moderação, com toda a compostura, “Cristiandad” não hesitou em abrir espaço em sua “tribuna libre” para levar o fato ao conhecimento de seus leitores.
O que, para muitos espíritos brasileiros, pareceria... semear divisão.
* * *
E com isto concluímos. Demos todos os argumentos de razão para justificar nossa atitude, e apoiamo-los em esplêndidos exemplos.
O prestígio crescente desta folha nos meios católicos brasileiros bem mostra que as objeções de alguns elementos, com base no famoso “divisionismo” (objetar contra nós é trabalhar pela união; quando objetamos contra outros, trabalhamos pela desunião!) não colhem.
Não esperamos mudar a convicção dos objetantes, com a série de artigos que ora encerramos.
Sirvam, entretanto, os argumentos e os exemplos que aqui consignamos, para proporcionar aos nossos leitores os meios de fácil e comodamente justificar as atitudes de “Catolicismo”.
OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX
Mons. Dupanloup faz ameaças ao Papa
Fernando Furquim de Almeida
No mesmo dia em que a maioria enviava ao Papa o pedido de urgência para a discussão da infalibilidade, a minoria solicitava o seu adiamento. O postulatum da maioria teve perto de 480 assinaturas, enquanto os partidários da tese da inoportunidade só conseguiram 137 adesões.
A agitação diplomática, que vinha sendo intensa desde o início do Concílio, atingira o auge, mas não lograva abalar a firme determinação de Pio IX. O Pontífice não via razão para adiar o estudo da infalibilidade, tanto mais que poucos Padres Conciliares a negavam. Toda a oposição se fazia em torno da oportunidade, e a própria celeuma que essa questão provocara entre os católicos demonstrava cabalmente a necessidade de um pronunciamento do Concílio. Ao Cardeal Antonelli, que lhe expunha o estado de espírito dos governos das grandes potências europeias e as consequências que poderia ter a definição da infalibilidade, Pio IX respondeu: "Tenho a Santíssima Virgem por mim; irei para diante".
Num esforço desesperado, numa última tentativa para conseguir o adiamento da questão, Mons. Dupanloup escreveu no dia 23 de abril de 1870 a carta que vamos transcrever. Ela constituiria por si um argumento decisivo para convencer o Papa da necessidade da proclamação, se Pio IX já não estivesse dela plenamente convencido. À míngua de razões, o Bispo de Orléans procura atemorizar a Santa Sé com previsões de cismas e perseguições. Era desconhecer completamente o espírito de fé que animava o Pontífice, disposto a tudo para cumprir o seu dever. A carta era desrespeitosa e até ameaçadora. Só mesmo a exaltação da minoria explica que seu hábil autor a tivesse escrito.
"Santíssimo Padre, meu nome não vos é agradável; eu o sei, e é motivo de dor para mim. Mas não me acredito, por isso, menos autorizado e obrigado, no profundo e inviolável devotamento de que já dei tantas provas a Vossa Santidade, a lhe abrir meu coração neste momento.
"Confirmam-se os rumores de que vários solicitam Vossa Santidade, a fim de que ordene a suspensão imediata de todos os nossos mais importantes trabalhos e inverta a ordem das discussões iniciadas, para trazer ao Concílio, de repente, bruscamente, antes de sua hora e fora de seu lugar, a questão da infalibilidade.
"Permiti-me, Santíssimo Padre, dizer a Vossa Santidade que nada poderia ser mais perigoso. Essa questão põe neste momento a Europa em fogo; a uma só voz os homens competentes o atestam. Esse fogo se tornará um incêndio se, por uma precipitação violenta, se der a impressão de querer tomar a questão de assalto, a todo preço, e antecipando-se mesmo, por essa mudança na ordem natural das coisas, à hora da Providência. Acreditaria trair a Santa Sé e a Igreja se, sabendo tudo o que prevejo, não viesse advertir Vossa Santidade, com uma respeitosa mas inteira sinceridade, enquanto ainda é tempo de poupar à Igreja e à Santa Sé infelicidades em toda a Cristandade, que podem chegar a ser desastres que perdurarão, e por longos anos, causando a perda de um número incalculável de almas.
"É de todo impossível, Santíssimo Padre, dizer tudo numa simples carta. Seria necessário um volume. Vossa Santidade certamente deseja se esclarecer. Há um meio bem mais simples. Chamai alguns bispos de cada nação, dentre os mais experimentados, os mais desinteressados, e que não temam dizer a verdade; pedi-lhes que falem com toda verdade; dai-lhes todo o tempo necessário para que se expliquem, informando tudo o que sabem sobre as disposições dos espíritos nos seus países e tudo o que uma precipitação tão ostensiva acrescentaria aos perigos da hora presente.
"É esse o único meio de esclarecer verdadeiramente o Santo Padre e de aliviar sua consciência, pois os fatos não se adivinham; não se pode conhecê-los, senão por informações atentas e muito completas. E numa questão tão grave, tão cheia das mais formidáveis e irrevogáveis consequências, agir sem estar plenamente instruído seria tentar a Deus, jogando-se no desconhecido, e assumir não só diante dos homens, mas diante de Deus, a mais terrível das responsabilidades.
"Perdoai, Santíssimo Padre, a um dos mais antigos e mais fiéis servidores de Vossa Santidade, a liberdade episcopal e filial que toma escrevendo esta carta. Ele não foi levado, depois do amor da Igreja e das almas, senão pelo único e puríssimo desejo de servir ainda esta vez a Vossa Santidade, evitando talvez a vossos últimos dias a maior dor que pode atingir o coração de um santo Papa: a de ver a Igreja em fogo e seu seio dilacerado por novos cismas.
"Prostrado a vossos pés, sou, Santíssimo Padre, com o mais profundo e mais perseverante devotamento e a mais religiosa obediência, de Vossa Santidade o muito humilde filho e servidor".
NOVA ET VETERA
Têmis de túnica vermelha
J. de Azeredo Santos
Em meados de novembro último houve, na Capital do Estado de São Paulo, um congresso das Assembleias Legislativas. Segundo noticia publicada pela imprensa diária, esse "I Congresso deixou evidenciada, de maneira clara e inequívoca, a sua oposição a todo regime de força ou a qualquer sistema de governo que subtraia ao povo o direito de fiscalizar os atos de seus dirigentes" ("A Gazeta" de S. Paulo, 19 de novembro de 1956). Mas, segundo o mesmo jornal, "não ficou o Congresso apenas na defesa das liberdades políticas. Demonstrando que esta pouco vale, se não vier acompanhada de uma justiça social e econômica equânime e igualitária, os deputados brasileiros fizeram inscrever em alto relevo na Declaração de Princípios — inegavelmente o documento de maior significação aprovado pelo certame — estas afirmações: A liberdade não terá sentido, se permanecer somente na forma de liberdade política. Ela precisa ser complementada com a salvação do homem brasileiro das escravizações que o sufocam. Orientar os errantes, alimentar os desnutridos, vestir os andrajosos, dar teto aos que não possuem, eis as bases da valorização da pessoa humana, pela qual a democracia há de bater-se, sem renunciar aos princípios e postulados que a sustentam e filosoficamente a tornam indispensável aos sistemas de vida do povo brasileiro".
Uma pseudo-justiça social
Através das leis a justiça se manifesta. E hoje em dia se preocupam os legisladores sobretudo com a chamada justiça social. Mas se já estávamos habituados a lamentar os desvios de um conceito de justiça unilateral, claudicaste, de uma justiça com apenas um dos olhos vendado, agora nos achamos diante de uma concepção sectária e esquerdista de justiça: Temis passa a envergar uma túnica vermelha nesse manifesto do I Congresso Brasileiro das Assembleias Legislativas. Tão vermelha que a aludida Declaração de Principias, "pelos seus termos avançados e pelo seu conteúdo nitidamente nacionalista, acenou aos elementos de esquerda com a possibilidade de aprovação de uni documento no qual se reclamava a legalidade para o Partido Comunista. Habilidosamente, porém, a mataria teve sua discussão protelada, até os momentos finais do conclave, somente entrando em debate quando já não havia tempo para sua votação" ("A Gazeta", artigo cit.).
Teoricamente, os órgãos incumbidos da tarefa legislativa deveriam ser os guardiães da ordem jurídica. Mas vejamos os fatos concretos. Ouçamos a lição da história. Os maus parlamentos vêm abrindo o caminho para os ditadores não só através do desprestigio da representação popular, mas ainda e sobretudo pelo preparo da base "legal" desses governos discricionários. Com efeito, notadamente a partir da Revolução Francesa não têm sido as assembleias legislativas doteis instrumentos criados para fornecer ao Estado as armas com que este vem matando as legitimas liberdades do povo? Em nome da liberdade, da igualdade, da fraternidade e, agora, da justiça social, quantos atentados não se cometeram contra a ordem natural. A maior opressão do século XX é a exercida pelo Estado. E tal opressão política não se faz sentir exclusivamente através da ação pessoal dos ditadores. Além, dessa odiosa tirania de um só, há o despotismo dos corpos legislativos, que de modo irrecorrível vêm estruturando a sociedade conforme a senha dada pelos mentores da revolução universal.
Voracidade tributária
Monotonamente se repetem os chavões da "escravização econômica", da "exploração da economia privatista". Mas dessa escravização imposta pelos órgãos legislativos não ha que cuidar. Desde que uma lei seja aprovada pelo critério da maioria parlamentar, mesmo que esse ato legislativo seja gritantemente contrário ao próprio direito natural, não há apelo, não há recurso a instancia superior: o poder judiciaria só cogita de saber se não há contradição com texto legal hierarquicamente superior, e se a confecção da lei seguiu os tramites constitucionais.
Como um dos mais impressionantes aspectos dessa escravização econômica emanada do Estado, com o endosso das câmaras legislativas, temos o seguinte: três vezes por ano o equivalente de nosso meio circulante entra nas arcas da União, dos Estados e dos Municípios sob forma dos varies tributos que pesam sobre o povo. É claro que esse verdadeiro confisco atinge de modo mais pungente os economicamente fracos, as camadas mais humildes da população. E enquanto assim se exaurem os recursos dos particulares, fica integralmente de pé a legislação social outorgada pelo Estado Novo, inspirada pela ideia da luta de classes e grandemente propicia à madraçaria e, portanto, corresponsável pela condição gravosa de nossa economia.
E é diante de tal estado de coisas que esse I Congresso das Assembleias Legislativas vem votar unanimemente uma Declaração de Principias de caráter nitidamente socialista, como o manifestam as suas disposições sobre a estatização das fontes de energia, sobre a reforma agraria, sobre a desapropriação de terras à base do custo histórico, etc.
Despotismo "legal"
Não se pode conceber socialização que não seja despótica. Pouco importa que ela se imponha por meios violentos e revolucionarias, ou por medidas legislativas e fiscais. A realidade última é que a socialização, imposta seja por que processo for, atenta contra os mais fundamentais e elementares direitos do homem e da família, como sejam a liberdade de possuir bens, a liberdade de trabalhar, de se entregar a uma atividade econômica honesta.
Como derradeira amostra desse unilateralismo que despede chispas de fogo sobre a atividade privada e fecha os olhos às mais clamorosas injustiças emanadas do Estado, temos o que dispõe essa Declaração de Principias sobre a redução dos prazos de usucapião. Perguntamos: por que não se aplica o instituto do usucapião às terras devolutas? O que vemos, pelo contrário, com a complacência e conivência dos corpos legislativos, não é a expulsão violenta dos que ocuparam essas glebas abandonadas e as transformaram em terras produtivas?
Repitamos: ao conceito de justiça unilateral, claudicante, de justiça com apenas um dos olhos vendado, vem se juntar, entre nós, a concepção sectária e esquerdista de justiça, fantasiada de justiça social. Themis passa a usar túnica vermelha.