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UM ANIVERSÁRIO E UMA LEMBRANÇA

Rafael Gambra

(da Universidade de Pamplona)

MADRID (para "Catolicismo") — Completou-se no ano de 1956 o vigésimo aniversário do levante com que se iniciou na Espanha a cruenta guerra e revolução que ensanguentou seus campos e cidades durante quase três anos.

Não nos cabe aqui julgar o regime político, ainda vigente na Espanha, que nasceu daquela insurreição, nem de sua fidelidade às suas origens, nem da retidão de seu governo. Tenha a respeito dele cada um sua opinião, e a história o julgue por suas obras.

Também não queremos emitir um juízo de conjunto sobre a própria rebelião e o desenvolvimento daquela guerra. Como em todas as situações anárquicas houve ali de tudo, numa mistura cerrada: nobres impulsos, luta de classes sociais, influencias do fascismo imperante, paixões de vingança pessoal, heroísmo e crimes.

Entretanto, na origem daquele protesto popular houve algo sem o qual nada se teria produzido, e a Espanha seria hoje, salvo intervenção estrangeira, mais um entre os países sob influência soviética. Algo cuja lembrança não podemos deixar de evocar aqui como cristãos católicos e como ibéricos, isto é, como membros de um Corpo Místico animado por uma mesma fé, e como membros da comunidade hispânica de povos. Por mais que se tenha querido confundir o sentido daquela insurreição, por mais que se discorde do regime que dela nasceu, não podemos esquecer„ neste aniversario, tantos milhares de jovens que há vinte anos caminharam para a morte cantando hinos religiosos, com o nome de Deus e da pátria nos lábios, e tantos outros fieis, Sacerdotes e Bispos que foram barbaramente imolados por causa de sua profissão de fé e morreram como confessores mártires.

Talvez tenha sido essa a última vibração do gênio espanhol como sujeito de uma comunidade de consciências, defensora no decurso de sua história da ideia de Cristandade como unidade política e hierárquica numa só Fé. Se os anos da Republica, com sua política laicista e sua educação ateia, não tivessem ofendido intimamente a consciência religiosa e nacional dos espanhóis, o ambiente de protesto e de guerra civil não se teria verificado. Se a incitação ao incêndio de templos e ao sacrilégio, dos últimos meses, não tivesse calado até o recesso do coração cristão de muitos espanhóis, estes não se teriam decidido a deixar a comodidade e a paz de suas vidas por uma aventura em que pereceriam aos milhares.

Essa ofensa não é sentida quando a fé — como acontece nos países de influência protestante ou descristianizados — passou a ser um elemento puramente individual, que não preside — nem pode presidi.? — uma comunidade humana como é a pátria. Então, quando se concebe a sociedade como uma mera coexistência neutra — liberal — de homens e de grupos religiosamente heterogêneos, a educação e o governo laicos são aceitos como sendo o natural e o desejável. A última reação ou autodefesa da Cristandade como comunidade histórica, o ultimo eco da Reconquista, das Cruzadas, de Joana d'Arc, das Guerras de Religião, foi talvez a insurreição espanhola de 1936.

Ninguém que a tenha vivido poderá negar que Deus e a pátria foram os lemas iniciais da sublevação e o denominador comum de todos os combatentes espanhóis.

Porém, dentro deste sentido religioso-político geral do levante, é forçoso recordar aqui o exército voluntario que reuniram na Espanha os carlistas, ou tradicionalistas — os requetés — aqueles soldados da "boina roja" que assombraram o mundo com seu valor e heroísmo sem limites, com um desprezo absoluto da própria vida. Nos primeiros e difíceis lances da campanha do Norte, em face de um inimigo muitas vezes superior, dizia-se na Espanha que um requeté recém-confessado era uma força insopitável, impossível de vencer.

O Carlismo é, como se sabe, o partido legitimista que defendeu na Espanha, desde 1833, os direitos à Coroa, de D. Carlos, irmão de Fernando VII, e de seus descendentes, em oposição aos Príncipes que, a partir de Isabel II, aceitaram o regime constitucional ou liberal. Mas o Carlismo é muito mais que um legitimismo político: encerra a continuidade de uma concepção religioso-política em que, sob certo aspecto, se prolonga a autentica história da Espanha. Para compreender esta significação é preciso analisar desde seus primórdios o processo histórico.

De certo modo, pode-se afirmar que foi no século passado que se deram no solo espanhol as guerras de Religião que para o resto da Europa ocorreram no século XVI.. Da guerra dos Trinta Anos os espanhóis, sustentáculos da causa católica, tiraram o fruto de conservar intacta sua unidade religiosa. Muito fizeram suas armas pela defesa da ortodoxia; porém não alcançaram uma vitória completa contra a heresia, e, como o sentido da luta era universalista, pode-se dizer que, afinal, falharam em seu empenho vendo surgir à sua frente a Europa moderna, coexistência laica de povos religiosamente heterogêneos, contrastando com a antiga unidade comunitária e estrutural da Cristandade.

Não obstante, a salvação de sua unidade interna lhes permitiu viver em paz espiritual durante mais de dois séculos, visto que a unidade religiosa e política se manteve de jure na Espanha até princípios do século XIX, embora de facto possam assinalar-se influencias heterodoxas em anos anteriores.

A primeira tentativa pública ou política de introduzir no pais um sistema explicitamente revolucionário e, no fundo, heterodoxo, coincide com a invasão francesa de 1808. Napoleão, defensor e salvador dos princípios revolucionários, que nunca abjurou, havia identificado a causa da Revolução com a da França, e sobre esses princípios constituiu um Estado forte e imperialista. Com isto, tudo ficou subordinado ao interesse do Estado, que era o da Revolução. A vitória de suas armas estendeu por todo o continente as ideias revolucionarias. Por causa deste sentido histórico — ao mesmo tempo revolucionário e imperialista — alguém, não sem razão, denominou Napoleão o primeiro fascista da história.

Os espanhóis, se bem que vencedores militares de seus exércitos, foram uma vítima do Corso na ordem espiritual. Grande parte de suas classes cultas — nobreza, exercito, intelectuais — se declarou partidária das novas ideias constitucionalistas afrancesadas. Durante a própria Guerra de Independência se fizeram as duas primeiras tentativas de reunir Côrtes liberais, por sufrágio individual. Umas em Bayona, honrando sua significação e origem, em torno de José Bonaparte, o Rei imposto por Napoleão. Outras em Cádiz, por aquele reduzido número de liberais que segundo frase de Menendez y Pelayo, "por louvável inconsequência deixaram de afrancesar-se (de seguir o partido do inimigo na guerra) ".

Ato continuo começa na Espanha uma serie de lutas civis, que poderíamos chamar lutas de independência espiritual em relação às novas ideias revolucionarias que tinham sido importadas. Todas reconhecem como causa uma mesma fé em que se unia, em estreita síntese, o espirito religioso, ainda vivo e fervoroso nas classes populares, com o amor às formas puras de governo e a lealdade à legitimidade. A defesa, enfim, de uma ordem social que se reconhecia resultar de uma crença religiosa que com ela formava uma bandeira. Durante prolongadas períodos bélicos, exércitos populares surgidos das próprias entranhas da pátria, sem dinheiro e sem meios, mantinham em xeque os exércitos governamentais em grandes zonas do país.

Pois bem, o ultimo eco destas lutas heroicas foi a insurreição de mais de sessenta terços de requetés — cem mil boinas rojas — no levante espanhol de 1936 frente à anárquica sacrílega e pré-comunista em que havia culminado a Republica de 1931. O foco mais importante desta força histórica foi o antigo Reino da Navarra e o país basco, mas ela brotou de todas as regiões espanholas em maior ou menor proporção. A Navarra, com seus trinta mil carlistas dos primeiros dias, conteve o inimigo na frente de Aragão e iniciou as vitorias decisivas da frente norte. Quantos e quantos daqueles jovens deixaram sua vida em flor pelos campos ensanguentados da Espanha, com a pureza de intenção de um mártir da fé! Lembro ainda aquela emocionante canção do front, cheia de ingenuidade e de entusiasmo viril:

No llores, madre, no llores

porque tus hijos van a la guerra.

Que importa que el cuerpo muera

si el alma va a la Eternidad!

A las armas, voluntarios,

a las armas a luchar

por nuestra fe,

moraremos defendiendo la bandera

de Dios, la Patria y el Rey!'


VERDADES ESQUECIDAS

"Melius est ut scandalum oriatur quam veritas relinquatur"

São Bernardo

Da "Apologia", obra escrita — como se lê no prologo — para "louvar a Ordem de Cluny... e repreender os que a repreendem, bem como, isso não obstante, para condenar tudo o que nela merece correção":

Embora esses abusos existam em vossa Ordem, estou longe de imputá-los a vossa Ordem. . . Não é contra a Ordem, mas contra os homens dela e a favor da Ordem; pelo que, repreenderei não a Ordem nos homens, mas os vícios dos homens na Ordem a que pertencem. E por certo nessa tarefa não receio que se enfadem comigo os que amam verdadeiramente a Ordem: antes pelo contrário, penso que há de ser-lhes muito grato que eu persiga aquilo mesmo que eles odeiam. Se alguns se molestarem, só por isso já se descobrem como não tendo nenhum amor à sua Religião, pois não querem que sejam condenados os vícios que a desfiguram e corrompem. A estes lhes fecharei os lábios com aquela palavra de S. Gregório Magno (.Homil. 7, in Ezech.): "Melius est ut scandalum oriatur quam veritas relinquatur" — "É melhor resultar algum escândalo de se dizer a verdade, do que deixar abandonada e indefesa a mesma verdade". — (Apologia, cap. VII —Obras Completas de San Bernardo, trad. do Pe. Jaime Pons, S. J., ed. Rafael Casulleras, Barcelona, vol. IV, pag. 349, e vol. I, pag. XXXV).


[Mensagem do Bispo Diocesano a "Catolicismo"]

O ano de 1956 foi dominado, de janeiro a dezembro, por duas grandes sombras: a angustia e a confusão.

Na esfera internacional, mais de uma vez a humanidade se viu diante da perspectiva de uma guerra mundial. E, neste sentido, os dias que vivemos quando chegava a seu auge a crise de Suez, foram verdadeiramente dramáticos. Ao findar o ano, não podemos afirmar que este espectro se haja desvanecido. As razões de apreensão continuam, substancialmente intactas. E agravadas pela atmosfera de confusão em que, mais do que nunca, o mundo parece imerso.

Do lado comunista, uma ideologia de ferro, à qual é inerente o desejo de deflagrar em todo o orbe a revolução das massas, tem inspirado diversas mudanças de tática nos últimos meses. Ora o dragão vermelho sorri, bonacheirão; ora ruge com violência diabólica, e perpetra crimes que enchem do horror a humanidade, como no caso da Hungria. Nestas alternativas, entretanto, não há confusão. Há uma sucessão de táticas empregadas com premeditação inteligente e inflexível, visando aturdir, desorientar e desunir o mundo ocidental.

Do lado deste último, a manobra vai atingindo infelizmente todos os seus objetivos. Quando o dragão soviético sorri, nossa fraqueza e nossa superficialidade de espirito nos levam a pensar imediatamente em concessões, desarmamentos, liberalidades. Quando ele ruge, encolhemo-nos cheios de pavor. Só isto pode explicar que, exceção feita do Santo Padre Pio XII, nenhuma voz se haja levantado contra as atrocidades praticadas na Hungria, com uma indignação proporcional à enormidade daqueles crimes.

A par disto, uma lamentável confusão de ideias parece ter-se assenhoreado de todos os espíritos no Ocidente. Nas relações entre os povos, nas lutas entre os partidos, nas produções das correntes ideológicas, na atitude inerte e aparvalhada dos simples particulares à vista da Babel contemporânea, se vislumbra um germe de incoerência, de inercia, de desalento, que causa terror.

E isto se explica. Onde faltam principies, não pode haver coerência. Os princípios estão morrendo, na alma do homem ocidental. E daí nos vem o caos em que nos agitamos em vão.

Nesta situação, os católicos têm uma grande missão. Cabe-lhes restaurar o primado da coerência, no Ocidente, condição indispensável para a vitória deste contra o comunismo. Pois na luta entre duas coerências, pode-se perguntar quem vencerá. Na luta entre a coerência e a incoerência, o problema não deixa margem a dúvidas.

Mas para que possamos ensinar coerência aos outros, devemos possuí-la e praticá-la nós mesmos. E, assim, nenhum apostolado se afigura mais atual, mais palpitante, mais moderno no sentido melhor desta tão ambígua palavra, do que o apostolado da coerência entre os católicos.

Formar católicos de uma fé viva, apaixonados pela doutrina da Igreja, desejosos de a conhecer inteira, em todas as suas consequências, e plenamente confiantes em que ela, e só ela, contem a solução de todos os problemas, eis uma alta e nobre missão.

Pode-se dizer que desta missão se desincumbiu esplendidamente "Catolicismo" em 1956. Por toda parte, o jornal vem despertando ardente entusiasmo. E isto não sã pela inteligência e cultura de seus ilustres colaboradores, pelo senso jornalístico com que toda a meteria nele se apresenta, por sua paginação original e atraente, como sobretudo por sua profunda ortodoxia, e pela coerência admirável com que sabe aplicar aos fatos tão ondulantes e incertos da atualidade as verdades eternas e imutáveis da doutrina católica.

Abençoando-o de todo o coração neste seu sexto aniversário, pedimos a Nossa Senhora Aparecida que dê a nossos caríssimos Diocesanos as graças necessárias para amar e assimilar, com entusiasmo sempre maior, estes esplendidos ensinamentos de coerência que "Catolicismo" lhes dá.

Antonio, Bispo de Campos