ESCREVEM OS LEITORES
CUNHA ALVARENGA
Ockham, a caridade e a justiça
Revmo. FREI CONRADO CARNEIRO LEÃO, O. F. M., Convento de São Francisco, Pesqueira (Est. Pernambuco): "Sou o Vigário substituto do Curato de Alagoinha, neste Estado. Ao tomar posse da freguesia, encontrei entre os jornais e revistas destinados à instrução e orientação dos paroquianos, o mensário CATOLICISMO.
Embora discorde, em alguns pontos, dos conceitos expendidos nesse semanário, resolvi continuar a assinatura. Pois, uma vez que as divergências atingem assuntos controvertidos na Igreja, a norma a seguir é a caridade mútua, no dizer de Leão XIII: "In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas".
Entretanto, em o número de junho deste ano, deparo com um artigo que não apenas lesa a caridade. Fere também, e frontalmente, a justiça. A justiça que se deve ao pensamento e à doutrina alheios. Refiro-me ao artigo do Sr. Cunha Alvarenga, "Filósofos minavam na retaguarda a obra dos cruzados".
Aí o articulista faz injustiça ao escolástico franciscano Guilherme Ockham. Taxa-o de "pai do nominalismo ou do separatismo introduzido em nossa vida intelectual, com a degradação muito árabe do intelecto ao nível de nossas operações sensíveis".. Precursor lógico do "sensualismo, liberalismo, individualismo, com passagem pelo panteísmo". Idealizador "de uma organização racionalista e laica da humanidade...” E muitos outros qualificativos desabonadores para a ortodoxia do pensamento ockhamista.
É fácil de se construir um fantasma irreal, e, depois, é mais fácil ainda arremeter vitoriosamente contra ele. Só não é justo e, muito menos, cristão. Pode ser quixotesco.
Nessas condições, faço um apelo ao Sr. Cunha Alvarenga no sentido de conferir o que escreveu sobre a filosofia de Ockham e o que Ockham mesmo consignou como sendo seu pensamento. Não se satisfaça com o que terceiros apresentem como doutrina do Venerabilis Inceptor. E, se encontrar alguma contradição, não se esqueça do dever elementar de honestidade e justiça: retificar de público, o que de público disse contra o "Pai do nominalismo"
Na revista "Vozes de Petrópolis", 12 (1954), pags. 364 ss., Frei Pedro C. Vier respondeu, num artigo longo e muito bem documentado, às mesmíssimas acusações contra Ockham.
Da Redação desejava saber se os artigos publicados no mensário são de inteira responsabilidade de seus respectivos autores. Desejava também o obsequio de fazer chegar ao Cr. Cunha Alvarenga o conteúdo desta carta.
Sem mais, esperando ser atendido, a bem da verdade e da justiça, (a) Frei Conrado Carneiro Leão, O.F.M."
R - Revmo Senhor,
Devo confessar que sua carta me causou profundo pesar. Em primeiro lugar, porque vejo nela um pressuposto que, data vênia, me parece inaceitável. V. Revma. tolera nosso jornal, porque julga, muito acertadamente, que "in dubiis" deve reinar a liberdade de opinião. E depois me assaca veementes acusações de injustiça e falta de caridade porque a respeito de Guilherme de Ockham não penso como V. Revma. "In dubiis libertas": não haverá então liberdade para um católico, para um dedicado amigo da Família Seráfica, de interpretar diversamente de V. Revma. o pensamento daquele mestre? Não aceito esta limitação de minha liberdade de fiel, que só o Magistério da Igreja pode legitimamente cercear. Respeitosamente devo declarar que não a aceito como católico, e nem como intelectual. V. Revma. sabe tão bem quanto eu que, nos ambientes intelectuais, são numerosas as questões relativas à interpretação e à ortodoxia desta ou daquela sentença de mestres ilustres. Se todas estas questões fossem resolvidas em termos de ressentimento, e se discuti-las fosse automaticamente injuriar tais autores, então a vida cultural estaria extinta entre os católicos.
Em segundo lugar, causou-me pesar sua carta porque fortes laços de afinidade espiritual e de amizade pessoal me prendem à Família Franciscana. E é justamente de um filho dessa Ordem, que me é tão cara, que me vêm acusações tão graves, como as de faltar à caridade, ferir frontalmente a justiça, de construir fantasmas irreais, agir de modo não cristão, mas quixotesco, e tudo isso por motivo de breve referência que fiz à ação nefasta de Guilherme de Ockham como colaborador eficiente que foi na triste tarefa da destruição do mundo medieval.
Concordo com V. Revma., como é evidente, em que nenhuma fonte será mais segura para se conhecer o pensamento desse filósofo do que as próprias obras que ele deixou. O assunto é vasto e importante, e a ele voltaremos com mais vagar em ocasião oportuna. Entretanto, desde já devo dizer a V. Revma. que, como todo professor universitário e publicista católico, não construo a partir de zero a verdade teológica, filosófica ou científica, mas tenho que me valer de todo o cabedal de conhecimentos e de dados que me vêm da plêiade de estudiosos e especialistas que me precederam em meu trabalho intelectual. Muito pobres seriam todos os ramos do saber humano se, ao fazer qualquer afirmação, tivéssemos que remontar às origens, sobretudo quando se trata de referência a pensadores sobre cuja obra várias gerações se debruçaram, dela tirando ilações e conclusões valiosas. É o que acontece com Guilherme de Ockham, cuja atividade teve grande repercussão não apenas no campo da teologia e da filosofia, mas também no do pensamento e da ação social e política. Por uma questão de economia em nosso labor científico, temos que nos valer dessa contribuição de terceiros, que V. Revma. parece menosprezar, mas sem a qual — sejamos francos — seriam praticamente nulos os nossos conhecimentos em qualquer ramo de atividade intelectual.
Tudo depende do grau de credibilidade que podemos depositar nesses autores. Para mim, por exemplo, tenho como honesta e autorizada a opinião de meu saudoso amigo, o Revmo. Pe. Denis Fahey, C. S. Sp., há pouco falecido, douto professor de Filosofia e de História da Igreja no Colégio Missionário do Espírito Santo, em Kimmage, Irlanda. A prevalecer o ponto de vista de V. Revma., teriam que ser inteiramente refundidos os capítulos XI a XIII da obra do erudito Sacerdote, "The Mystical Body of Christ and the Reorganization of Society" (1945, The Forum Press, Cork), nos quais longamente faz o confronto entre o tomismo e o ockhamismo. Chegamos com ele à conclusão de que "a teoria de Ockham, de uma intuição intelectual do objeto singular ou individual, realmente degrada o intelecto ao nível do sensível. O nominalismo tende a transformar nossas diferentes representações mentais em entidades isoladas sem uma natureza substancial. Com o passar do tempo, isso daria origem ao liberalismo, ao separatismo e ao individualismo de Locke, cujas teorias políticas e econômicas pesaram tão fortemente sobre o mundo moderno. A filosofia de Locke é um prolongamento do ockhamismo na direção do empirismo" (obra citada, pp. 245/246). Quanto às conseqüências panteístas do nominalismo, o Revmo. Pe. Garrigou-Lagrange, O. P., terá que se retratar de tudo quanto disse a esse respeito em seu estudo na "Revue Thomiste", ano de 1938? Crê V. Revma. que também deverá sofrer uma revisão profunda o capitulo da História Universal de Weiss que, estudando a decadência da escolástica, diz que "cumpre considerar o Frade Menor Guilherme de Ockham como o próprio fundador do nominalismo. Encontrá-lo-emos ainda como fervente adversário dos Papas, como impugnador de sua infalibilidade, como aliado dos fraticelli, como defensor de Luís da Baviera..." (p. 195 do volume VII, Tipografia da Educação, Barcelona, 1929)? Tenho também como boa e honesta a obra do professor da Universidade de Innsbruck, Revmo. Pe. Hartmann Grisar, S. J., intitulada "Martin Luther" (P. Lethielleux, Libraire-Editeur, Paris, 1931). Deverá esse autor modificar radicalmente seu livro na parte em que mostra a influência que escolásticos da decadência, como Ockham, exerceram sobre Lutero (pp. 15 e 16)? Terá ele faltado à verdade e à caridade ao dizer: "O nominalista Gabriel Biel permaneceu sempre, em seus ensinamentos, fiel à Igreja. Mas, por outro lado, graças às singularidades de espírito de um Guilherme de Ockham, germes de erros perigosos se insinuaram no nominalismo. E as Lições do jovem Lutero não se acham isentas desses erros. Ele afirma ser ockhamista: Sou da escola de Ockham (factionis Occamicae), e reconhece seu mestre nesse partidário apaixonado e cismático de Luís da Baviera em suas lutas contra o Papado" (pp. 54 e 55)? E mais adiante: "Como Ockham, ensina (Lutero) que não há necessidade de que uma coisa seja verdadeira ao mesmo tempo na filosofia e na teologia. Seguindo as pegadas de Ockham, ele (Lutero) rebaixa a razão, despreza a autoridade da Igreja; e, assim, vem a atribuir ao sentimento ou à inspiração interior de Deus o valor de testemunho que, independente do Magistério da Igreja, deve dar ao homem a certeza para lhe fazer compreender qual é o verdadeiro sentido da Escritura ... E, enfim, compreende-se sem dificuldade como o desdém do ockhamismo pela verdadeira escolástica pôde influenciar o juízo de Lutero sobre as antigas escolas" (p. 55). Por último, chegaremos também à conclusão de que o grande mestre franciscano, Frei Agostinho Gemelli, O. F. M., terá faltado à justiça e à caridade para com o seu irmão de hábito, e isto num livro reputado como "indisputavelmente a obra capital" desse insigne filho de São Francisco de Assis. Com efeito, são da pena do sábio Religioso as seguintes palavras: "As infiltrações joaquimitas e heréticas, especialmente as dos fraticelli, deram à defesa da pobreza, em si nobilíssima, a aparência de uma rebelião, que de franciscana pouco mais teve do que o nome, quando exercida por aqueles que, como Guilherme de Ockham com seus excessos, acabaram caindo no sectarismo e às vezes mesmo na heresia, ao mesmo tempo que arrastavam o pensamento escolástico à decadência, derrocando-lhe com suas agudezas a nítida construção, enquanto, solidarizando-se com o Imperador e com os gibelinos, envolviam na política as suas aspirações religiosas" (p. 16 de "O Franciscanismo", tradução de Mesquita Pimentel, Editora Vozes, 1944).
Como pode V. Revma. imaginar, estou apenas citando autores que se acham ao alcance de minhas mãos, em minha modesta biblioteca, nesta tarde de domingo em que, por amor à verdade e em atenção à sua qualidade de Sacerdote, me disponho a responder a sua carta. Não deixa de ser melancólico, meu Revmo. Amigo, que os que dedicam toda a sua vida ao apostolado da boa imprensa, à divulgação da doutrina católica e ao trabalho de esclarecer seus irmãos sobre os fundamentos dos males de nossa época, recebam de um Levita, não palavras de incentivo, mas a pecha de descaridosos, de injustos, mesmo de desonestos, quando apontam os erros de um infeliz Frade excomungado que pôs sua inteligência ao serviço de Cesar contra o Vigário de Cristo, e que teve como comparsa nessa inominável tarefa o não menos lamentável Marsílio de Pádua, precursor doutrinário do totalitarismo hodierno.
Quanto ao livro de Bernard Landry, por mim citado no artigo que deu motivo à sua carta, reputo-o uma obra conscienciosa e documentada, no que diz respeito à influência árabe na escolástica da decadência. Tema que, aliás, não é original e já foi estudado por outros autores que seria longo enumerar.
Enfim, para encerrar, devo dizer que assumo plena responsabilidade pelo que afirmei no mencionado trabalho, e não vejo razão para qualquer retratação, a menos que V. Revma. saia do campo das afirmações vagas e me indique com clareza e precisão e documentadamente o ponto ou pontos em que eu haja incorrido em erro. Devo também declarar que CATOLICISMO não é uma tribuna liberal em que qualquer espécie de opinião tenha livre curso. Obscuro colaborador que sou, desse órgão da imprensa católica, atrevo-me portanto a afirmar que meu artigo não encontraria acolhida em suas páginas se fosse assim afrontosamente contra a caridade e contra a justiça, como V. Revma. quer fazer acreditar.
Pedindo orações, despede-se o servo em Nossa Senhora,
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Outras Cartas
Nosso colaborador Prof. Plinio Corrêa de Oliveira recebeu a seguinte carta do Revmo. PE. Louis MICHEL, C. P. C. R., Casa de Retiros Nazareth, Chabeuil (França) : "J'ai été intéressé au plus haut point par le texte du discours de S. Exc. Mgr Proença Sigaud sur l'Action Catholique ("Estrutura e funcionamento mecânico, ou vida própria e colaboração orgânica?", CATOLICISMO, n.° 90, junho de 1958). Je n'avais encore jamais trouvé un exposé si complet du problème. Cependant tout cela nous avait été dit par notre Père (Padre Vallet, fundador da Congregação dos Cooperadores Paroquiais de Cristo Rei, falecido em 1947), qui affirmait que l'A. C. telle qu'elle était imposée ne répondait pas à la pensée du Saint Père, et qu'un jour tout cela serait reconnu... Je pense que le discours du Saint-Père (ao Congresso Mundial do Apostolado dos Leigos) aura toutes les conséquences espérées. Nous désirerions publier dans "Marchons" (revista dos RR. PP. Cooperadores Paroquiais, editada em Chabeuil) le discours de S. Exc. Mgr D. Sigaud. Voulez-vous demander pour cela l'agrément de Son Excellence et celui de M. le Directeur, de CATOLICISMO?"
Sr. JOÃO LUIZ VANNUZINI, Bauru (Est. São Paulo): "Estou recebendo o CATOLICISMO com regularidade e estou gostando bastante, não só dos artigos, como também da sua apresentação".
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Cada vez menos pão
e mais circo...
Plinio Corrêa de Oliveira
Reproduzimos hoje a circular de propaganda de um candidato a deputado à Assembléia Geral ( equivalente, como função constitucional, à atual Câmara dos Deputados ), nos últimos meses da monarquia.
O signatário, Dr. Delfino Pinheiro de Ulhôa Cintra, exerceu esse mandato em várias legislaturas e foi Presidente da Província de Santa Catarina.
Nesse documento, mostra-se ele partidário da monarquia e da descentralização, mas contrário ao sistema federativo. Não são propriamente suas idéias políticas que desejamos comentar, mas o aspecto "ambientes, costumes", da circular que o candidato enviou aos numerosos chefes eleitorais de suas relações. Como gostava de ser tratado, há setenta anos atrás, um eleitor brasileiro? Qual o perfil moral que ele exigia de um homem público para lhe dar sua simpatia, sua confiança, seu voto? É o que se pode notar nessa circular, redigida e impressa segundo os estilos correntes na época.
O tratamento é respeitoso. O destinatário tem seu nome precedido da fórmula "Illm. Snr.". O candidato, em linguagem elevada e cortês, declara que "vem solicitar de V. S. o apoio de seu voto e merecida influência". E "espera confiadamente" que o destinatário continuará a distingui-lo com sua confiança política", a exemplo de eleições anteriores em que já lhe deu seu "benévolo apoio". E por fim se subscreve: "De V. S., Atto. Amgo. e affectuoso servo".
Fórmulas, fórmulas comuns, usuais, por assim dizer moeda corrente do trato social na época. Mas moeda em que estavam cunhados, como símbolos, os estilos de muitos séculos de civilização cristã, inspirados no respeito e no amor recíprocos. Fórmulas, por isto mesmo, que tinham um papel no trato humano, e cuja ausência causaria estranheza.
Qual o argumento dado pelo candidato para merecer sufrágios? Suas idéias. E nenhum outro. Não alega que é campeão de qualquer coisa, que toca bumbo, que sabe montar a cavalo com a frente para a garupa, nem que é ventríloquo. Propõe um programa, com concisão, simplicidade e elevação de linguagem. Se estão de acordo, votem nele. Se não, votem em outro.
E nisto tudo se retrata não só o candidato, mas o eleitor, e todo o ambiente político brasileiro de então.
* * *
Votem em Pedro para deputado federal, lê-se num cartaz preso a uma árvore. Na mesma galharia, a poucos centímetros, uma faixa nos recomenda votar em João. Em frente, suspenso a dois postes, balança ao vento outro cartaz ainda, mandando que se vote em Francisco. João é do P.X. Pedro é do P.Y. Francisco é do P.Z. Que diferença há entre os três candidatos? E entre os três partidos? Ninguém sabe. Nem eles próprios. O que fará triunfar a candidatura de um sobre a dos outros? Em boa parte, o número e o tamanho dos cartazes. Muitos candidatos não têm outro argumento. E muitos eleitores nem desejam mais que isto. "Tempora mutantur..."
Às vezes, algum argumento sério entra em cena: impressiona pouco. A gravidade, a nobre e digna compostura de outros tempos, a lógica, são fatores eleitorais pouco eficientes, às vezes até contraproducentes.
Pelo contrário, ser demagogo populacheiro, saber dizer piadas em comício, alegar títulos profissionais que não habilitam para o trato das coisas públicas, como tocador de violão, locutor de rádio, ou campeão de qualquer coisa ( que não seja jogo de xadrez, grave, sisudo, sem graça ), eis algo de eleitoralmente útil. Em suma, uma certa nota de circo é muitas vezes o ideal. Se isto tudo ainda não é inteiramente assim, já é assim em boa medida. E tende a ser cada vez mais assim, sobretudo nos grandes centros.
Disto o outro clichê nos dá uma idéia muito nítida. É um folheto distribuído aos milhares, em São Paulo, em eleição anterior. Alteramos apenas os nomes dos candidatos. O comício deve assegurar-lhes a vitória, por causa dos artistas com que divertirão os eleitores...
A tanto vamos descendo, ao influxo da mania de facilitar, relaxar, nivelar, e fazer da vida um imenso e desatado divertimento.
Os romanos da decadência se contentavam com pão e circo. Os brasileiros vão sendo adestrados para o mesmo programa. Mas com uma variante: cada vez menos pão e mais circo.