O MAL DO SÉCULO
Paulo Corrêa de Brito Filho
Geração "outsider"
Em trabalho anterior (1), focalizamos a degenerescência intelectual e religiosa de uma pseudo-escola literária norte-americana, denominada "Beat generation". Os exemplos concretos que forneciam alguns desses jovens autores "transviados" eram tão frisantes para demonstrar nossas teses, que consagramos a eles um artigo inteiro. É evidente que um Kerouac e um Lamentia jamais mereceriam uma linha sequer de crítica, enquanto literatos ou filósofos. Eles apenas nos serviram para analisarmos um estado mórbido frequente na mocidade contemporânea, da mesma forma que um determinado doente mental pode tornar-se objeto das pesquisas científicas de um psiquiatra, em virtude do seu próprio desequilíbrio.
Entretanto, poder-se-ia perguntar se o fenômeno "Beat generation" não é puramente local, estritamente norte-americano, em vez de constituir um "símbolo da degradação mental e religiosa de uma época", conforme sustentamos. O presente artigo visa mostrar como, de fato, em outras partes do mundo, observam-se generalizadamente sintomas semelhantes, quer em produções literárias da juventude atual, quer na sua existência quotidiana. A filosofia da vida adotada pela "Beat generation" está se tornando, cada vez mais claramente, o "mal do século". O frenesi, o furor destrutivo dos dançadores do "rock'n'roll" não contagiou os jovens dos países europeus, latino-americanos e de todo o Ocidente, após ter assolado os Estados Unidos, sua terra natal? O espírito de revolta generalizada, a mentalidade do desajustado não-conformista, isto é, do "outsider", não constitui, igualmente, uma característica muito frequente na mocidade hodierna, em todo o mundo?
Embotamento do Instinto de Conservação
Em maio do ano passado, apareceu nas livrarias de Paris um romance com um título estranho: "Juro me alucinar". A obra alcançou um êxito extraordinário, mas a autora não desfrutou esse sucesso, pois se suicidou pouco depois de ter confiado o manuscrito ao editor.
Evelyne Mahyère, filha de um pastor protestante, teve uma vida bastante movimentada e esquisita. Trabalhou sem muita constância em diversas editoras, não gastando quase nada consigo e distribuindo seu ordenado com os amigos. Era uma desesperada, fruto típico de sua geração e vítima do assim chamado "após-guerra negro".
Essa jovem de 28 anos não se contentou em escrever uma obra na qual defende a necessidade do suicídio: ela passou da teoria à pratica com uma premeditação e frieza espantosas... A heroína de seu romance parece ser, ao menos em parte, um auto-retrato: Sylvia é uma desajustada, rebelde e não-conformista, que se entrega a desregramentos sexuais, à bebida e a entorpecentes. No meio de toda essa desordem uma obsessão a persegue: a morte. Em face das misérias e sofrimentos deste mundo, a única solução é a autodestruição.
Esta solução, a jovem escritora não tardou a buscá-la para si mesma. Foi em Genebra, onde passava férias com sua família. Aproveitando uma ocasião em que se achava sozinha em casa, envenenou-se com gás, deixando aos pais uma carta que merece ser analisada: "Caros pais, visto que me quereis bem e que vos quero bem, perdoai-me. Peço-vos que me ameis a ponto de admitir que eu nunca soube viver e que foi melhor assim. Amai-me o bastante para serdes novamente felizes. Então, talvez eu também seja feliz do lado de lá. Finalmente encontrei o sorriso (é verdade: a minha morte me distrai). É maravilhoso morrer como se me divertisse, pela graça de Deus. Quero-vos muito".
Que pensar dessas linhas? Cinismo? Desequilíbrio mental? Crueldade para com os pais? Exibicionismo? Mitomania? Excentricidade e esnobismo? Parece-nos que pode haver alguma coisa de todos esses elementos, mas o que mais espanta, o que é verdadeiramente antinatural é a indiferença, a superficialidade, mais do que isto, o espírito de brincadeira com que se encara o momento mais terrível e importante da vida, que é o momento da morte. "É maravilhoso morrer como se me divertisse, pela graça de Deus".
Quando se lêem essas palavras, conhecendo-se os antecedentes da autora, as circunstâncias do seu suicídio e a tese da obra, pode-se perguntar com razão: não terá essa jovem conseguido embotar em si um dos instintos mais arraigados na natureza humana, conatural a todo ser — o instinto de conservação?
A tese do romance não constitui propriamente uma novidade no ter-reno literário ou filosófico. Em todo esse triste episódio cuja protagonista foi Evelyne Mahyère há, porém, um aspecto monstruosamente novo, que é a frieza com que a escritora pôs em prática suas teorias, o desprezo da vida, o cinismo em face da morte e da eternidade, que demonstrou por ocasião do suicídio. E para melhor compreendermos o que significa esse embotamento do princípio de conservação, convém lembrar a importância que São Tomás atribui a este último: "Assim, pois — lê-se na Suma Teológica — a ordem dos preceitos da lei natural será paralela, totalmente, à ordem das tendências naturais. Vejamos essa ordem. Em primeiro lugar, tem o homem uma propensão para um bem que é da sua natureza; propensão comum a todos os seres, dado que todos apetecem sua própria conservação, conforme as exigências de sua própria natureza. Em virtude dessa propensão, pertencem à lei natural todos aqueles preceitos que concernem à conservação da vida do homem ou tendem a evitar os males contrários a essa vida" (S. Teol., I.a, II. ae, q. 94, a. 2, c.).
Essa tendência à conservação da própria existência, que o Doutor Angélico afirma corresponder aos preceitos mais básicos da lei natural, parece que havia desaparecido em Evelyne Mahyère. Normalmente, para violar esses preceitos que "concernem à conservação da vida ou tendem a evitar os males contrários a essa vida", é necessário ao ser humano um imenso esforço, uma violência contra si mesmo, que com frequência se nota na atitude dos suicidas. Quantos não se arrependem nos momentos de vida que ainda lhes restam... mas já é tarde para evitar a morte próxima. Outros confessam numa carta de despedida a tristeza de abandonar o mundo e a aversão que lhes causa a ação desesperada que vão praticar. Mas dizer que é "maravilhoso morrer como se me divertisse, pela graça de Deus", constitui uma aberração da natureza e ao mesmo tempo exprime uma nova filosofia da vida e da morte, mais pervertida do que a que inspirou suicídios românticos como o de um Werther. Não estaremos diante de outra manifestação do mesmo espírito céptico e niilista da "Beat generation", impregnado de budismo? Esse brincar com a morte, esse embotamento da natureza não terá como fundamento aquele princípio enunciado por Kerouac, o líder da "beat": "Nós somos a visão vazia de um espírito", ou então: "Não somos senão fantasmas vazios" (2)? Segundo essa concepção, o suicídio seria apenas o ato que permitiria o transito de um "fantasma vazio" para o "lado de lá", que é também um nada, como aqui... Por que motivo. então, se emocionar ao pra-ticar uma ação tão banal?
Os "Outsiders" ou Supremos Rebelados
A "Beat generation" tem os seus líderes e tipos-símbolos, como Kerouac e Lamentia. Evelyne Mahyère já é cultuada como uma nova estrela no firmamento dessas celebridades degeneradas — uma "Rimbaud feminina", uma "Sagan mil vezes mais forte, dez mil vezes mais apaixonante". Sua obra, intitulada originariamente "Le Sacrilege", com o subtítulo — "Vós que compartilhais a gloria dos anjos", procura justificar o suicídio como "uma ânsia de absoluto e de destruição dos próprios amores e de si próprio". A protagonista já se tor-nou o símbolo dessa "ânsia de absoluto e de destruição", que considera a morte e a eternidade uma brincadeira... Em um mês, foram vendidos cerca de cem mil exemplares da edição francesa, cuja tradução foi disputada por um editor norte-americano, três ingleses e dois alemães.
Françoise Sagan, a jovem autora de "Bonjour Tristesse", "superada", ao que parece, por Evelyne Mahyère, transformou-se num dos símbolos da amoralidade para a juventude moderna. As páginas de seu romance revelam uma tal degradação moral, que custa crer terem elas sido escritas por uma adolescente. Isto explica a reação de Mauriac, que — acertando ao menos uma vez — chegou a afirmar que aquela
(continua)