A REVOLUÇÃO NO REGIME DE DISTRIBUIÇÃO DE BENS
Plínio Vidigal Xavier da Silveira
Todo homem precisa ter uma ocupação, mas deve cuidar em que ela não degenere em trabalho — dizia-se em Viena, na "Belle époque".
Formulação picante, que soa como a maior das heresias para a mentalidade moderna. Feita a devida censura ao seu aspecto leviano — de fuga ao sofrimento e à cruz — não é verdade que essa expressão reflete um estado de espírito que está longe de ser desumano como o do "business man" dos dias de hoje, visceralmente materialista, neurastênico, que ama o trabalho pelo trabalho, que almoça negócios, janta negócios, e à noite, depois de se distrair com algum filme sensual ou com coisa congênere, ainda dorme pensando nos negócios?
"TANTO PIOR PARA OS FATOS"
A economia moderna se ressente de algo profundamente errado. Uma análise de qualquer de seus aspectos denuncia essa situação. No comercio, por exemplo, encontramos a loja monumental, que comporta quase sempre a exposição exuberante de inutilidades atraentes, destinadas a compradores para quem a propaganda as tornou necessárias; feericamente iluminada, hospitalarmente limpa, em geral tudo ali procura disfarçar a má qualidade dos produtos oferecidos. O freguês, anônimo, desconhecido, é servido por empregados mal-humorados e quase sempre em número insuficiente para atender a todos. A indústria, desenvolvendo-se para produzir essas inutilidades, vai esmagando os pequenos artesãos, "atrasados" e "economicamente impossíveis" diante do progresso; cada vez mais aumenta a produção de artigos que duram cada vez menos. Todos os ramos da atividade econômica vão adotando técnicas modernas: apesar disto — ou será por causa disto? — uma crise generalizada domina a economia de quase todos os países.
Para resolvê-la, fazem-se conferencias e reúnem-se comissões, elaboram-se planos quinquenais, fala-se de justiça social e direitos dos operários. Mas tudo continua na mesma, para não dizer que vai de mal a pior.
Os fatos parecem mostrar que certos métodos empregados nestes últimos trinta anos servem mais para provocar ou agravar essa crise crônica do que para debelá-la. Dir-se-ia que é bem o caso de abandonar as tendências socializantes, o intervencionismo do Estado, a industrialização a qualquer preço, e de adotar outras normas, seguir o exemplo de países que, como a Alemanha, obtiveram no após-guerra um notável reerguimento com métodos diferentes.
Mas... assim não pensam senão uns poucos estudiosos. Para a maioria, o socialismo tem que dar certo; o intervencionismo não pode estar errado; a propriedade privada tem de ser um mal; é preciso industrializar febrilmente, emitir à larga, — e crer, contra toda a evidência, num porvir risonho. Se tudo isto até hoje só trouxe dissabores, se a aplicação concreta desses princípios nos conduziu à beira do abismo, se o seu fracasso é atestado pelos fetos, "tanto pior para os fatos".
D. QUIXOTE ESTUDA ECONOMIA
A triste figura do herói de Cervantes, arremetendo furiosamente contra moinhos de vento, merece ser lembrada quando vemos a insistência "corajosa" com que se responsabiliza toda a burguesia pelos desmandos econômicos de nossos dias; se age contra os que vivem de pequenos negócios e da renda de imóveis, e de modo geral contra toda a classe média; se crítica e condena todo o modo antigo de trabalhar e tudo quanto não acerta o passo com o "progresso".
Há cinquenta anos atrás, os negócios no Brasil tinham outro aspecto. O comerciante português do Rio de Janeiro era característico exemplo da mentalidade então reinante. Estabelecido numa ruela estreita, com uma loja escura e pouco limpa, sua mercadoria era todavia de boa qualidade e ele se contentava com um lucro honesto. Por isso, sem depender de créditos, seu negócio prosperava, e lhe permitia repousar sossegadamente depois que fechava a casa ao fim do dia. Os empregados, que se sentiam e viviam como membros de sua família, trabalhavam com dedicação; cada freguês era um conhecido, senão um amigo, e todos eram servidos cortesmente; quando os "moços" ou "caixeiros" precisavam de cuidados médicos, o patrão os auxiliava naturalmente, tornando desnecessária a assistência social artificial que conhecemos. Ao mesmo tempo, as propriedades agrícolas eram praticamente auto-suficientes, produzindo quase tudo quanto consumiam; não havia urgência de vender as colheitas para atender a outros compromissos, e assim não se estava sujeito, como hoje, ao despotismo dos intermediários; a tradição dos fazendeiros, que conservavam as suas terras através de gerações, dava aos colonos uma grande estabilidade. A pequena indústria artesanal completava a organização da economia: era pequena, porém sólida, e progredia devagar. Havia crises, havia problemas, mas em geral tudo passava e se resolvia; os anos bons voltavam.
Desde que D. Quixote de la Mancha estudou economia, essa mentalidade foi pejorativamente chamada "atrasada". Vieram os planos para fazer progredir os países subdesenvolvidos. E chegamos até o ponto em que estamos...
DISTRIBUIÇÃO DE BENS ORGANICAMENTE DESIGUAL
São Tomás de Aquino ensina que o homem magnânimo não se ocupa preponderantemente do que lhe possa trazer vantagens materiais, mas se dedica às coisas grandes; e prefere os bens infrutuosos aos úteis (cf. IIa. IIae., q. 129, a. 3). Esse pensamento — também herético para a generalidade de nossos contemporâneos — constitui uma condenação de toda a mentalidade materialista a que nos referimos. Ele supõe o desapego dos bens materiais, o desejo de viver para a virtude, o amor e o respeito aos valores espirituais, com a própria situação, sem almejar enriquecimentos fáceis, mesmo porque sabem que tal coisa é impossível. Também resulta que o nível da moralidade pública se eleva, pois há menos ambiente e ocasião para invejas e ambições exageradas, com sua sequela de desonestidades de toda ordem. O dinheiro fica relegado a segundo plano, e outros fatores, como a tradição e o mérito, determinam a hierarquia da sociedade.
A REVOLUÇÃO NO REGIME DE BENS
A ação revolucionaria se tem feito sentir profundamente nesse campo. Todas essas características da ordem católica, ela as vem alterando. Uma grande facilidade em converter os bens em dinheiro faz com que a mobilidade destes se acentue, passando rapidamente de mão a mão, numa vertiginosa especulação. Impostos extorsivos, como o de transmissão "causa mortis" — que nega a propriedade familiar — forçam a alienação de bens que, outrora, passariam de pais para filhos durante séculos. Com isso diminui a estabilidade das famílias, perde seu objeto o amor à terra que sempre pertenceu aos ancestrais, enfraquece-se a tradição. As chamadas leis do inquilinato, entre outras, abalam a solidez econômica da burguesia. Profissões, da classe média passam a ser pessimamente remuneradas, como acontece com os professores primários e secundários. As delícias mais ou menos fictícias das grandes cidades atraem as populações rurais, entregando-as à imoralidade urbana. Guerras e outros fenômenos - e nomeadamente o protecionismo industrial - criam condições propicias para a formação de grandes fortunas em pequenos lapsos de tempo. O dinheiro passa a ser o principal critério no estabelecimento da hierarquia social. Daí o prêmio frequente aos desonestamente enriquecidos, a excitação das ambições desordenadas, a sedução das fortunas fáceis; a inveja passa a reinar.
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Esse regime de bens distribuídos anomalamente entre as classes é um dos grandes fatores dos desequilíbrios econômicos e sociais hodiernos. Modificá-lo através de uma política econômica sadia e orgânica seria uma obra notável, — mas impraticável enquanto nossa época não renunciar aos desvios doutrinários a que aludimos. Insistir em aplicar melados socializantes é favorecer a ação dos males que nos atormentam, é deixar-se ferir pelos gigantes malfazejos enquanto se investe contra moinhos de vento.
Numa ordem de coisas católica, esse modo de ser é facilitado pelas condições de vida. Todos sentem a estabilidade de sua própria situação, as famílias habitam tradicionalmente os mesmos sítios, exercem as mesmas profissões, que de ordinário se transmitem de pai a filho. Isto é possível graças ao regime de distribuição dos bens.
Uma ordem católica supõe que o maior número possível de famílias possua bens de alguma espécie, embora seja inevitável a existência de algumas na pobreza e na miséria. Mas essa distribuição dos bens deve ser organicamente desigual dentro de um mesmo povo; assim, grandes patrimônios e famílias abastadas devem existir simultaneamente com outras simplesmente "arranjadas" ou que vivam com parcimônia. Conforme a extensão e o grau de riqueza de cada país, esse desequilíbrio de fortunas deve ser mais ou menos acentuado. As famílias devem conservar estavelmente, através de gerações, um mesmo nível econômico; não é normal que grandes fortunas possam ser feitas ou perdidas rapidamente ou mesmo ao longo de uma só vida. Quando esses princípios são reconhecidos verdadeiros, resulta que as pessoas se sentem satisfeitas
TEXTOS ESQUECIDOS
Entristecer o próximo pode ser insigne ato de caridade
São Paulo Apóstolo
Na primeira Epístola aos Coríntios o Apóstolo os adverte de que "se ouve constantemente falar que há entre vós fornicação", e os repreende dizendo que "andais ainda inchados, e não tivestes antes pesar, para que fosse tirado dentre vós quem fez tal maldade" (1 Cor. 5, 1 e 2).
Lê-se na segunda Epístola:
Porque embora eu vos tenha entristecido com a minha carta, não me arrependo disso, se bem que tenha sentido pesar, vendo que tal carta, ainda que por breve tempo, vos entristeceu; agora folgo, não de vos ter entristecido, mas de que a vossa tristeza vos levou à penitência. Entristecestes-vos segundo Deus, de sorte que em nada recebestes detri-mento de nós. Porque a tristeza que é segundo Deus produz uma penitência estável para a salvação; mas a tristeza do século produz a morte. E, se não, vede o que produziu em vós essa tristeza segundo Deus: quanta solicitude, que vigilante cuidado em vos justificardes, que indignação, que temor, que desejo (de remediar o mal), que zelo, que (desejo de) punição (pela injuria feita à Igreja). Mostrastes em tudo que éreis inocentes neste negócio. — (2 Cor. 7, 8-11).