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“Videre Petrum”

Pelo Cardeal Alfredo Ottaviani

As notícias telegráficas deram muito realce a um artigo do Emmo. Sr. Cardeal Alfredo Ottaviani, estampado a 25 de janeiro do corrente ano no órgão da Ação Católica Italiana, «Il Quotidiano», falando de «comunistas de sacristia». Entretanto, que saibamos, nenhum jornal brasileiro o reproduziu.

Tendo recebido esse texto, publicamo-lo para corresponder ao legítimo desejo de nossos leitores. Estes encontrarão sólido alimento espiritual e intelectual nas palavras do ilustre Pro-Secretario da Suprema Sagrada Congregação do Santo Oficio.

Escreve Sua Eminência:

“Hoje, Festa da Conversão de São Paulo, se completa a solene Oitava de orações pela unidade, isto é, pelo retorno dos extraviados ao redil, à mansão do Pai, de que se distanciaram, à Igreja Católica que; com exclusividade, tem o privilégio de conservar desde os tempos apostólicos a unidade hierárquica, a unidade litúrgica e a unidade doutrinaria. O povo romano se congrega ao redor do Papa e se une a ele na oração junto do túmulo desse ilustre Apóstolo dos Gentios, que pregou com tão grande eficácia a doutrina da unidade, condensada nestas expressivas palavras: «unum corpus... una fides... unum baptisma» (Er. 4, 4-5).

E que nos ensinou a reconhecer em Pedro o chefe visível do Corpo Místico de Jesus.

Após sua conversão, Paulo cometeu um erro que foi depois mais de uma vez praticado por convertidos, e que é frequente na juventude de nossa época: lançou-se cegamente à ação, sem a preparação necessária. Experimentou assim o fracasso de sua estréia no apostolado.

Retirou-se então para o deserto a fim de se preparar convenientemente, na oração e na penitência. O douto Saulo, discípulo inteligente e fogoso do rabino Gamaliel, não se contentou com sua ciência humana. Procurou a ciência divina. Mas, nem mesmo as revelações que teve o privilégio de receber o dispensaram de se dirigir a Pedro para obter dele conselho, doutrina e orientação: foi a Jerusalém «videre Petrum».

Os protestantes e os cristãos dissidentes do Oriente têm, também eles, a Bíblia, rica em revelações; têm doutores ainda mais sábios do que Gamaliel. Entretanto, não têm «una fides», nem «unum baptisma», não fazem parte do «unum corpus», porque lhes falta uma coisa que é substancial: a união necessária entre os membros e a cabeça. Eles não compreenderam a lição contida nas duas palavras de Paulo: «videre Petrum». E não se decidem a dirigir-se a ele no espírito com que Paulo o foi ver.

«Videre Petrum» significa permanecer no horizonte da luz de Cristo, um horizonte que é a linha entre este céu e o Céu de Deus. «Videre Petrum» poderá igualmente significar ser crucificado, e crucificado com a cabeça para baixo; mas isso é amar Jesus, amar seus irmãos. «Videre Petrum» é não saber nem mais nem melhor do que ele, é segui-lo em seu caminho.

«Videre Petrum» é caminhar com seu rebanho, guiado por ele; é poder contar, na fadiga, com os ombros do Pastor; é contar, quando surgem os lobos, com sua proteção, com sua vida e com sua morte. «Videre Petrum» é, ao longo dos séculos, quando as trevas se adensam ou a tempestade se desencadeia, manter os olhos fitos no eterno e verdadeiro; na única verdade que não engana nem seduz, na única verdade que dá luz e calor, na única verdade que se confunde com o amor de Deus.

É isto que deveriam compreender também os que se encontram já a salvo no rebanho guiado pelo Sucessor de Pedro; os que, diria eu, por vezes se desencaminham e nem sempre escutam com docilidade o Pastor que os chama.

É corrente, hoje em dia, de modo especial entre certos jovens, julgar, criticar, eliminar tudo o que não têm marca de novidade, de moderno, de revolucionário. Ovelhas que prestam mais ouvidos ao chamado do mercenário do que à voz do Bom Pastor; que olham, com desejo mal dissimulado, mais para o exterior do que para o interior. E o pobre cristão fica aturdido de ouvir tanta acrimônia exalada por certos pequenos comunistas de sacristia, de ouvir repetir em todos os tons que tudo está atrasado.

E, particularmente, o único efeito da ação destes no domínio social é desequilibrar, abalar, destruir, arrasar, preparar, em suma, o caminho... para quem? Basta considerar quem maneja os fios desta devastação. O Anticristo, diremos, e não tememos desmentido: o Anticristo, para nós, é todo aquele que é por uma sociedade contra Deus, ou mesmo simplesmente sem Deus. E quem se alia a gente assim, ou lhe estende a mão, obedece ao Anticristo e sem o saber lhe prepara o caminho.

Pretende-se, até para o Sacerdote, uma transformação que importa em renegar sua missão sagrada.

Com efeito, os fiéis devem esperar do Padre o pão da pregação evangélica e do banquete eucarístico, a santa ação que redime o pecado; e não que lhes lavre o campo e compartilhe de suas horas de trabalho na fábrica, ou participe das lutas de classe em lugar de se entregar à cruzada do amor entre os irmãos.

No domínio social, temos uma riqueza de doutrina, exposta pelos Papas, que é mais do que suficiente para resolver até mesmo os problemas da hora presente, sem solicitar auxílio dos partidários do marxismo, que, por cumulo da ironia, proclamam não serem eles que devem tender para a concepção cristã da vida, senão os católicos que devem ir engrossar-lhes as fileiras.

Mas a doutrina social da Igreja, não basta a certos católicos desequilibrados que, com falsos ares místicos, têm, é verdade, em seus lábios em sua pena os nomes dos Santos e do Papa, mas não hesitam em seguida em colocar no banco dos réus os homens de Igreja que não participam de suas levianas atitudes proféticas. Estes fazem os católicos correrem o risco da ruptura da unidade interior, dando assim motivo para que saltem de júbilo os que, entrementes, atacam do exterior.

De 18 de janeiro, festa da Cátedra de São Pedro, a 25 de janeiro, festa da Conversão de São Paulo, os fiéis, e com eles os Sacerdotes, todos nós enfim, atendendo ao chamado do Papa, temos considerado o gênero de coesão e de graça que nos mantém unidos na Igreja. Coesão e graça que imploramos para os que delas estão privados; rezamos igualmente para que sejamos todos dignos desse dom imenso da unidade, para que não lhe atente contra a solidez nenhum dos que estão do lado de dentro. Seremos dignos desse dom se o «videre Petrum» significar para nós não só visitá-lo ou aplaudi-lo, mas também ouvi-lo, obedecer-lhe, pôr em pratica seus ensinamentos. Ninguém faça passar o êxito pessoal adiante da fidelidade, as honrarias adiante da honra; ninguém anteponha os triunfos oratórios, os aplausos dos adversários, as atitudes proféticas levianas, ao humilde exercício das virtudes que requerem a disciplina e a obediência.

O Chefe que nos guia herdou de Pedro o eco e a força, da palavra de Deus firmada para a eternidade: «non praevalebunt».

«Qualquer que seja a dor, a desgraça, a obscuridade, a perseguição, tudo isso não é nada quando temos a certeza de que, entre os homens, há e haverá sempre um homem em quem a luz da verdade eterna jamais se extinguirá. A noite do mundo é sombria para nós, mas nunca sem estrela: há o Papa».

Isto escrevíamos neste jornal em 1956, quando Pio XII ocupava a Cátedra de Pedro; o mesmo podemos repetir hoje a propósito de João XXIII, ao irmos, nós também, com o mundo católico, à Basílica da Via d'Ostia «videre Petrum».

Esta é a segurança da Igreja, una, santa, católica e apostólica, ontem como hoje e nos séculos vindouros: uma luz que não se extingue e que «durará por quanto tempo durar o mundo» (Dante, Inferno, II, 60).


VERDADES ESQUECIDAS

“SE ERREI, MOSTRA-ME EM QUE: SE NÃO, PORQUE ME BATES”

São Jerônimo

Um jovem monge, outrora advogado, afirmava, sem dizer onde nem quando, que São Jerônimo condenara o casamento. Usando injúrias em lugar de argumentos, pretendia refutar suas obras contra Joviniano, escritor que se excedera na apologia do matrimonio; e, ao mesmo tempo, gabava-se de lutar também contra este adversário do Santo.

Jerônimo escreveu a Domnion, cristão idoso e muito considerado em Roma, para protestar contra essa tática, que ainda hoje está em voga. Esta carta é como que a explanação da palavra de Jesus ao servo que O esbofeteara na casa do Sumo Sacerdote: "Se falei mal, mostra-Me em que; mas se não, porque me bates?" (Jo. 18, 23). Extraímos dela os seguintes tópicos:

Escreves-me que estes (que criticavam as obras do Santo) — mas sobretudo não sei que monge, charlatão, sempre deambulando pelas esquinas, encruzilhadas e praças, propagador de diz-que-diz-ques, palrador, esperto unicamente para denegrir, que, por meio da trave que está em seu olho, se esforça em extirpar o argueiro do próximo — esses tais, dizia, discorrem contra mim; os livros que escrevi contra Joviniano, com seus dentes de cão eles os mordem, dilaceram, fazem em pedaços. Esse "dialético" de vossa cidade,..., tece silogismos assilogísticos... nos círculos de ignorantes e nos banquetes de boas senhoras,...

Encontrou-se um homem que é perfeito sem ter precisado de mestre, inspirado e instruído pelo próprio Deus,... Dizem que basta lhe darem um tema, e ele está pronto... a disputar nos dois sentidos, isto é, pela justiça ou contra a justiça. O mundo escapou de um grande perigo, e os processos de sucessão ou de Direito Civil foram preservados de uma catástrofe, porque esse indivíduo, abandonando o fórum, mudou-se para a igreja. Quem, contra a vontade dele, teria sido absolvido? Que criminoso não teria sido salvo por seus arrazoados, desde que ele se pusesse a enumerar nos dedos as partes da causa e a estender as redes de seus silogismos? Na verdade, batendo com o pé, dardejando seus olhares, franzindo a testa, apontando com a mão, torneando as palavras, sem demora obscureceria a clarividência dos juízes. Não admira, pois, que, estando eu ausente, e de há muito desacostumado da língua latina,... esse latiníssimo e fecundíssimo personagem leve a melhor, quando Joviniano, que estava presente (que grande homem, bom Jesus, mas seus escritos são ininteligíveis para todos,...), quando Joviniano, dizia eu, foi esmagado sob o peso de sua eloquência!

Rogo-te, pois, venerável amigo, que o advirtas. Que ele não fale contra sua votação, não destrua por suas palavras a castidade que seu habito anuncia. Virgem ou continente — o que ele pretende ser, a ninguém mais interessa — não iguale os casados aos virgens,... Ouro que de bom grado circula entre as celas das virgens e das viúvas, e cheio de empáfia filosofa no meio delas a respeito das Sagradas Escrituras. Ora, que ensina ele a essas moçoilas e velhotas, em segredo, ou em seus quartos? ... Por certo formula só preceitos cheios de virtude. Pois bem, professe em público o que diz a domicilio! E se a domicilio ensina o mesmo que em público, é preciso afastá-lo do convívio das jovens. Esse moço, esse monge, que — segundo crê — é eloquente, cuja boca destila todas as graças, cuja linguagem é tão elegante e temperada de sal cômico e espírito, esse monge não cora de visitar assiduamente as residências da aristocracia, de frequentar as recepções das matronas, de transformar nossa Religião em campo de batalha, de deformar a fé de Jesus Cristo por sua linguagem de polemista e, nesse meio tempo, de caluniar seu irmão. Sim, se lhe parece que me engano — deveria ou refutar-me, ou interpelar-me por escrito,...

Ele é monge, saiba-o, não quando fala, nem quando corre por toda parte, mas quando guarda o silêncio e a obrigação de residência,... Se crê ter recebido a férula de censor para proceder contra todos os escritores, se se crê sábio porque teria sido o único a compreender Joviniano — pois diz o provérbio que o gago compreende melhor o falar do gago — todos nós, os escritores, apelamos de tal juiz...

É aos livros que eu apelo, a esse memorial que deve ser transmitido à posteridade. Falemos através de nossos escritos, para que o leitor, que se cala, nos julgue,...

Não é grandioso, caro Domnion, coaxar pelos cantos das ruas, e proferir sentenças sobre a sociedade: "este fala bem, aquele fala mal;..." Esse direito de julgar todo mundo, a juízo de quem ele o possui? Resmungar pelas esquinas contra qualquer um, e contra qualquer um difundir um amontoado de grosserias, mas nenhuma acusação concreta, é próprio de pelotiqueiros e de indivíduos sempre prontos a criar casos. Vamos!.... toda sua capacidade, mostre-a ele por escrito. Dê-nos ocasião de responder à sua facúndia. Poderia morder, por minha vez, se quisesse; se ele me irritar, poderei meter-lhe um molar na pele...

Mas preferimos ser discípulos dAquele que disse: "Ofereci meu dorso às chibatas, e não desviei a face dos escarros ultrajantes" (Is: 50, 6); ... Ele rezou pelos que O crucificavam, dizendo: "Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem". (Luc. 23, 34). Também eu perdôo o erro de meu irmão; compreendo que as maquinações do demônio o enganaram. Em sua roda de velhotas e moçoilas, ele parecia a seus próprios olhos sábio e eloquente. Mas quando minhas obras chegaram a Roma, começou a ter-me horror como a um rival. Também de mim pretendeu fazer um motivo de gloria para si,...

Quis, na verdade, como homem muito experiente, qual um veterano do exército, ferir-nos a nós dois com um só molinete de sua espada, e mostrar aos povos que tudo o que lhe apraz é a própria sentença da Escritura. Digne-se, pois, enviar-nos sua prosa, e corrigir nossa garrulice, não mais só por suas repreensões, mas também por sua doutrina. Compreenderá então que... não é o mesmo o tom para discutir sobre os dogmas da Lei Divina entre os fusos e os cestos de costura das mocinhas, e entre homens cultos. É com toda a liberdade e impudência que ele agora declama barulhentamente ante os profanos: "Jerônimo condenou o casamento”... Mas quando chegar aos livros, quando lhe for necessário empenhar-se numa luta em que se avança ou se recua palmo a palmo, quando precisar alegar ou ouvir-nos alegar as passagens da Escritura — então suará, então se verá muito embaraçado,... "Também nós, pai, distribuímos os golpes do ferro com mão forte; das feridas que fazemos brota sangue" (Vergílio, En. XII, 50 segs.). Vamos mais além: se ele não quer escrever, se julga não dever agir senão por suas grosserias, ouça ao menos — através de tantos continentes, mares e povos que nos separam — o eco de meu clamor: "Não condeno as núpcias, não condeno o casamento".

("Saint Jérôme — Lettres", trad. Jérôme Labourt, Soc. d'Edition "Les Belles Lettres", Paris, 1951, tomo II, p. 150, carta L).