Sagrada Congregação dos Seminários
Carta Circular sobre Problemas de Formação do Clero Moderno
Transcorrendo este ano o primeiro centenário da morte de São João Batista Maria Vianney, Cura d'Ars, S. Em. o Cardeal José Pizzardo, Prefeito da Sagrada Congregação dos Seminários e Universidades, dirigiu uma carta circular a todo o Episcopado católico, datada da festa do Coração de Jesus, versando sobre "algumas questões relativas à formação eclesiástica" consideradas em função do luminoso exemplo dado por aquele grande Santo.
Se bem que o texto se refira propriamente a problemas da formação e do apostolado sacerdotais, fundamenta-se em princípios superiores que também tem guardadas todas as proporções — uma aplicação importante no campo, especificamente diverso, do apostolado dos leigos, e na formação dos militantes dos vários quadros da A. C., como as Congregações Marianas, a JUC, a JEC, a JOC, etc.
Por isto, transcrevemos aqui alguns tópicos desse relevantíssimo documento, diretamente tirados do texto oficial português distribuído pela Congregação dos Seminários aos Exmos. Srs. Bispos do Brasil.
"MAIS ATUAL DO QUE NUNCA"
Tendo São João Maria Vianney vivido há cem anos, poder-se-ia talvez perguntar se seu exemplo, indubitavelmente excelente para seu tempo, continua atual nas condições, tão profundamente diversas, de nossos dias.
A este respeito, diz sabiamente a Circular:
"Aos jovens levitas do nosso tempo, o Santo Cura d'Ars tanto tem para dizer que podemos afirmar ser mais atual do que nunca a mensagem que lhes envia dos esplendores da gloria celeste".
AS VIRTUDES SACERDOTAIS DO SANTO
A Sagrada Congregação põe em relevo, em seguida, o altíssimo conceito em que o Santo tinha o Sacerdócio, sua fidelidade heróica em corresponder à graça da vocação sacerdotal, e o zelo com que se afastou de tudo quanto é carnal e mundano, para ser um Padre segundo o Coração de Jesus.
E assim a Carta declara:
"Se olhamos a fisionomia espiritual do Santo Cura d'Ars, logo nos damos conta de que brilha com tal esplendor que se torna um genuíno modelo de primeira grandeza. Ele sabia, com efeito, que o Sacerdócio o tinha identificado com o único e eterno Sacerdote, o Verbo Encarnado. Isso o fazia repetir frases como estas: "Quando virdes o Sacerdote, pensai em Nosso Senhor Jesus Cristo", ou então: "O Sacerdócio é o amor do Coração de Jesus". Mas que importam, por mais belas e expressivas que sejam, as palavras com que indicava a divina realidade? O essencial para ele era viver o Sacerdócio que o Senhor exercitava por seu intermédio. Ei-lo, portanto, na atitude, desejada pelo Apóstolo, de mediador do povo, dedicando toda a vida à adoração, intercessão e sacrifício total; vítima como o Redentor para implorar com "gemidos inenarráveis", dia e noite, a remissão dos pecados, sempre pronto a realizar no seu corpo o que falta à Paixão de Cristo".
VIDA INTERIOR E ÊXITO APOSTÓLICO
O êxito apostólico do Santo Cura d'Ars se deveu, em larguíssima medida, à intensidade de sua vida interior. Afirma o documento:
"Esta adesão perfeita a Deus, esta conformidade com o Eterno Sacerdote, que lhe faziam apreciar a oração e a vida interior, constituíram o segredo dos seus estrepitosos sucessos. Sabia perfeitamente que a eficácia dos trabalhos apostólicos depende antes de tudo da oração e da união com Deus; consciente da humilde condição de instrumento da graça divina, dela e só dela esperou o sucesso da ação apostólica. Não foi sem razão que o Sumo Pontífice Pio XI constituiu o Cura d'Ars patrono especial dos Párocos e dos Sacerdotes com cura de almas, querendo mostrar com isso que a ação pastoral, para ser verdadeiramente eficaz, deve apoiar-se na santificação pessoal e ancorar-se numa profunda vida interior.
A Sagrada Congregação dos Seminários verifica infelizmente que há ainda muito a fazer, neste sentido, nos Institutos de formação eclesiástica. Considerando, com efeito, as atitudes com que sobretudo da parte do Clero jovem se encaram os problemas da atividade apostólica, espontaneamente surge a pergunta se não se descuidam demasiadamente os princípios tradicionais da formação sacerdotal. Na maior parte dos casos dedicam-se, é verdade, com uma grande generosidade ao sagrado ministério, mas, diminuindo os devidos contactos com a oração não se mortificando nem guardando o coração, bem depressa se esgotam em vãos esforços e se termina na tibieza e no desânimo.
O fato é que sem vida interior não pode haver verdadeiro apostolado e que por maior barulho que se faça, mesmo com a mais prodigiosa técnica e organização externa, os frutos colhidos são pouco duradouros e salutares. O verdadeiro apóstolo, consciente de ser um simples instrumento nas mãos de Deus, sabe que tem à disposição outros meios, não condicionados pelo contingente da técnica; sabe que o edifício espiritual se ergue inteiramente sobre a graça e a oração e que os frutos abundam na medida em que se confia nos meios sobrenaturais, sem presumir substituí-los: "Itaque negue qui plantat est aliquid, negue qui rigat: sed, qui incrementum dat, Deus ... Dei enim sumus adiutores" (1 Cor. 3, 7 a 9).
O Sumo Pontífice Pio XI diz claramente: "Seria um erro gravíssimo se o Sacerdote, levado por um falso zelo, transcurasse a própria santificação para imergir completamente nas obras exteriores, ainda que boas, do ministério sacerdotal... Sem piedade, as mais santas práticas, os mais augustos ritos do Sagrado Ministério serão feitos mecanicamente, por hábito; faltar-lhes-á o espírito, a unção, a vida" (Litt. Enc. "Ad Cathol. Sacerdotii", 20 dec. 1935: A. A. S., vol. 28, pp. 23 e 24).
Mais perto de nós, Pio XII, na "Menti Nostrae", insiste sobre o mesmo conceito com grande vigor: "Um ardente espírito de oração, talvez mais do que noutros tempos, é hoje especialmente necessário, quando o chamado naturalismo invadiu as inteligências e os espíritos, e a virtude se encontra exposta a perigos de todo o gênero, perigos que muitas vezes se encontram no próprio ministério. Que melhor poderá premunir contra estas insídias, que melhor poderá elevar a alma às coisas celestes e mantê-la unida com Deus, do que a oração assídua a invocação do auxilio divino?" (Adhort. Apost. "Menti Nostrae", 23 set. 1950, A. A. S., vol. 42, p. 673).
Mais recentemente, o Santo Padre João XXIII, fel. reinante, que tanto insiste para que o Clero se dê completamente a um profícuo ministério pastoral, no Seu discurso à União Apostólica do Clero (12 de março de 1959), mostrando precisamente a figura do Santo Cura d'Ars, admoesta muito eloquentemente: "Porque é que depois de tantos esforços e sacrifícios, o fruto recolhido é por vezes tão deficiente? Como é que, empregando-se todos os meios de apostolado, não ressuscitam os filhos mortos da Igreja? Talvez porque a intenção nem sempre é pura, talvez porque não se procurou sempre e somente o bem das almas; talvez porque se confia demasiado em meios humanos e por isso mesmo perecíveis, sem se fundarem na oração e no sacrifício".
Insistimos portanto vivamente para que os educadores dos Seminários e sobretudo os Reitores e diretores espirituais instruam, perto das Sagradas Ordens, sobre a natureza do Sacerdócio, os fins da sua missão e os meios de apostolado; façam-no com a bagagem da doutrina mais sã e tradicional, apoiada na Revelação, interpretada pelo pensamento dos Padres e pelo magistério eclesiástico, evitando ser indulgentes com novidades que numa questão tão delicada muitas vezes transformam, ou ao menos desfiguram, o ensino da Igreja. Considere-se isto de grande importância, porque conforme forem as idéias sobre esta matéria ensinadas nos anos de Seminário, assim será a atitude dos alunos uma vez ordenados e introduzidos na vida pastoral".
OBEDIÊNCIA À SANTA IGREJA
A obediência à Igreja, à sua Hierarquia, a suas leis e sua doutrina, foi um dos traços salientes da fisionomia espiritual do Santo:
“... a sua submissão, veneração e amor — prossegue o Sagrado Dicastério — dirigiam-se sobretudo para o vértice, para o Chefe visível, para o Papa. Dos testemunhos dos processos de canonização resulta que procurava todas as ocasiões para testemunhar à autoridade do Sumo Pontífice ilimitado afeto; não escondia a comoção ao ouvir falar, ou ao falar da Igreja, Mãe e Mestra de todas as Igrejas. Ao próprio Bispo testemunhava respeito, amor e obediência, "tanquan Domino". E que obediência! Todos sabem como o Cura d'Ars, dominado por um grande sentido da própria indignidade e esmagado pela responsabilidade que via aumentar todos os dias, pensava em se retirar para um lugar escondido a chorar o que ele chamava a sua pobre vida. Mas a obediência manifestada pelos Superiores queria-o em Ars, e em Ars permaneceu para levar a pesada cruz com quotidiana imolação.
Os educadores dos candidatos ao Sacerdócio têm aqui um assunto para severa meditação, porque a virtude da obediência é um dos fundamentos de toda a formação que devem dar aos alunos do Santuário. Trata-se, na verdade, de criar um hábito profundo que penetre no mais íntimo das convicções dos alunos confiados aos seus cuidados, num tempo como o nosso em que se sente tão fortemente o demônio do orgulho e com incrível presunção se pretende evitar a submissão a qualquer norma, a não ser uma ilimitada independência de juízo e de ação. E infelizmente tais princípios, decantados como uma conquista, insinuaram-se nos métodos de educação, tentando subverter os fundamentos da doutrina católica em matéria pedagógica. Infelizmente, também nos Institutos de formação eclesiástica não é raro o caso — e esta Sagrada Congregação viu-se na obrigação de intervir algumas vezes — de assistir a experiências que concedem demasiado à indiscriminada iniciativa do educando e, quase se esquecendo a condição da enferma natureza humana, se tentam inaugurar, mais ou menos veladamente, os critérios da chamada "auto-educação".
É certamente legitima e necessária a obra daqueles que, solícitos em criar nos jovens robustas e sãs convicções, procuram desenvolver neles, gradualmente, o sentido da responsabilidade, a capacidade do juízo, o espírito de iniciativa quer individual quer coletiva; mas o que se deseja denunciar como deletério é a atitude passiva do educador que, abdicando da sua posição de Superior e subvertendo por isso mesmo o verdadeiro conceito de disciplina, teme que a ordem lese a personalidade do discípulo, como se constituísse uma indevida intervenção no santuário da consciência. Trata-se de uma falsa atitude, pois só através de uma disciplina austera se pode chegar à plena posse de uma forte personalidade, pronta para o sacrifício, e àquele espírito de abnegação que é requisito essencial para quem deseja seguir, sem compromissos e fingimentos, Nosso Senhor Jesus Cristo, até dividir com Ele, se for necessário, o Cálice do Getsemani e a imolação da Cruz. Só com tal disciplina se obtêm os verdadeiros apóstolos, prontos a vencer os próprios gostos e caprichos, para fazer o que Deus nos manda através da autoridade dos Superiores. Seja portanto a disciplina a pedra de toque sobre a qual os Superiores comprovem a vocação dos alunos. Exijam uma obediência não apenas teórica, mas efetiva, límpida, íntegra, sem subterfúgios, como o Regulamento do Seminário todos os dias a vai propondo até nos atos mais pequenos e ordinários. Os Superiores saibam exigi-la, mas saibam também propô-la, apelando para os motivos sobrenaturais que a justificam, derivando-a sobretudo do modelo perfeito que na terra teve um só programa : "Fazer, ó Deus, a vossa Vontade" (Hebr. 10, 7). Recordem em todas as circunstancias como a obediência implica essencialmente o "Obsequium", isto é, a oferta da inteligência e da vontade, que é exatamente o que torna agradável as nossas ações junto de Deus. Se os Superiores obtiverem tudo isto, podem estar seguros do pleno bom êxito dos seus jovens, mesmo no que diz respeito à aquisição das outras virtudes sacerdotais, especialmente daquelas que, como a castidade, exigem uma vontade robusta e um perfeito domínio de si mesmo.
Para todos os pios Institutos deve por isso valer o princípio de que o Regulamento é a vontade significativa de Deus, e portanto obrigatória como meio necessário para a formação do Sacerdote. A presença e a obra do Superior não deve ser considerada como tendente a diminuir a personalidade, mas a ajudar o seu desenvolvimento em tudo o que de bom e útil pode oferecer para alcançar aquela plenitude espiritual, que é requisito e gloria da vocação eclesiástica: "Omnia vestra sunt: vos autem Christi: Christus autem Dei" (1 Cor. 3, 22-23).
ALTOS OBJETIVOS
Conclui nestes termos o sapientíssimo documento:
"Exmo. Revmo. Senhor,
Muitas coisas se poderiam ainda dizer, seguindo os rastos luminosos do Santo Cura d'Ars, em ordem à formação dos candidatos ao Sacerdócio e por conseguinte ao melhor andamento dos Seminários. Mas limitamo-nos somente a sublinhar alguns pontos, que devem ser considerados da máxima importância sobretudo no nosso tempo e que por dever de oficio nos têm sido mencionados, especialmente por ocasião das Visitas Apostólicas. Trata-se portanto de revigorar o sentido da responsabilidade diante da graça da vocação divina, de sustentar o primado da vida interior como condição essencial do futuro ministério pastoral, de valorizar o escopo formativo da disciplina tomada conscienciosa e voluntariamente, de defender deste modo e desenvolver cada vez mais a vida verdadeiramente sacerdotal, que sabe e deve prudentemente adaptar-se às exigências dos tempos e das circunstancias em que se deve inserir a obra apostólica, mas que não pode esquecer as fontes eternas de onde recebe toda a nobreza e fecundidade sobrenaturais".
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Como se vê, o leitor brasileiro, habitualmente vivaz e ágil, não terá dificuldade em fazer as necessárias adaptações desses altíssimos conceitos ao que lhe convém meditar corno apostolo leigo, dócil colaborador da Sagrada Hierarquia.
VIRTUDES ESQUECIDAS
ARROSTAR A IMPOPULARIDADE
São João Evangelista
Não vos admireis, irmãos, de que o mundo vos tenha ódio. — (1 Jo. 3, 12)