A Novíssima Arma da Estratégia Soviética
Plinio Corrêa de Oliveira
Na saída de um jantar na embaixada soviética em Washington, K. conta uma piada. A Sra. Eisenhower ri deliciada. As outras pessoas (camarada Krucheva, Presidente Eisenhower, Sra. e Sr. John Eisenhower, nora e filho do Presidente) sorriem embevecidas. Essa fotografia exprime o ambiente de distensão e cordialidade que o ator soviético soube difundir em torno de si na visita aos EE UU. Pouco depois, em Pequim, impressionava e encantava pelo sério profundo e fria impassibilidade, tão de agrado dos chineses. — Ainda duas outras observações sobre a foto. A ostentação de plebeísmo do par Kruchev tem quase algo de provocador. Mas o vestido da Sra. K., adepta do amor livre, cria uma certa confusão nos espíritos, pois cobre muito melhor do que tantos outros correntemente usados no Ocidente.
A visita de Kruchev aos Estados Unidos pode ser considerada de dois pontos de vista: as conversações com os dirigentes norte-americanos e os contactos com o público.
Sobre as conversações, não há grande coisa a dizer. Ninguém pode duvidar de sua legitimidade. O fato de que um governo comunista domina a Rússia é inegável. Daí a existência de múltiplos problemas que, ou são tratados por via diplomática, ou conduzem à guerra. Claro está que em tese é preferível chegar a determinado resultado por via pacífica do que por via cruenta. De onde ninguém pode censurar o Presidente Eisenhower por ter aceito a visita do primeiro-ministro soviético.
Todo contacto diplomático supõe correção de trato. Assim, também não seria de censurar uma nota de lhaneza nos encontros entre o Sr. Eisenhower e Kruchev.
Quanto ao conteúdo das negociações, nada de sólido se pode dizer, pois elas foram mantidas sob severo sigilo. Estranhamos este sigilo. Acrescentamos mesmo que ele nos causa certa apreensão, pois a atitude do governo norte-americano nos aspectos sociais da visita foi muito além de uma correta lhaneza, e nos infunde algum temor de que tenhamos uma Munique ou uma Yalta em perspectiva. Mas trata-se de uma simples suspeita. E, em resumo, é prematuro afirmar qualquer coisa a este respeito.
Terminemos esta primeira parte do artigo dizendo, simplesmente, que desejamos terem chegado a bom termo os entendimentos entre o Presidente Eisenhower e Kruchev. O que, com nosso costumeiro amor à precisão, não queremos formular sem ao mesmo tempo dizer o que entendemos por "bom termo": todo resultado que afaste a guerra sem que o preço desta paz seja a conquista, pelo comunismo, de um só homem, uma só polegada de território, ou um grau a mais de influência em qualquer parte da terra.
Com efeito, se a paz só se puder conseguir adormentando-se a hidra comunista com o holocausto de povos, culturas e tesouros, e à custa desse paulatino deglutir o monstro se for tornando sempre mais forte, então estaremos aceitando o suicídio, com o que nenhum espírito reto e cristão pode concordar.
A paz é por certo um bem imenso. Mas não é o bem supremo. E se o preço da paz fosse a aceitação resignada do jugo comunista, deveríamos preferir mil vezes a luta, e quiçá o martírio.
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Tudo isto dito, desejamos analisar os aspectos sociais da visita de Kruchev. Calvo, atarracado, carnudo, borbulhante de vida, o físico de K. se presta a todos os papéis. Pendurado ao estribo de um bonde, pode ele representar o tipo ideal do homem comum das ruas. Num uniforme adequado, tem o "physique du rôle" de um porteiro de hotel solerte, atencioso e prestativo. Num clube de bairro, pode ser o centro de atração pela conversa viva, pela expansividade comunicativa, pelo trato chão e pelo talento de piadista. Mas de seus olhos podem sair chispas terríveis, seu dedo em riste pode fulminar ameaças sinistras, e metido em altas botas de couro, em um blusão de tecido grosseiro e feitio standard, de chicote em punho, pode ser o tirano truculento de um campo de concentração. Em suma, K. tem uma excelente vocação para ator.
Por isto, representou ele muito eficientemente dois papéis opostos, com poucos dias de intervalo. Nos Estados Unidos, foi o pai de família extrovertido, irrefletido, engraçado, bonachão e encantador ( para o gosto ianque ) que todos presenciamos. Na China, onde milênios de alta cultura ainda perduram sob a forma de um vivo gosto pela reflexão e, pois, pelo silêncio, pela discrição e pela distinção, foi ele o diplomata profundo, silencioso, reservado, que o público chinês esperava encontrar.
Isto prova que Kruchev é um bom ator. E que, como tal, sabe escolher seus papéis. A pergunta que naturalmente se impõe é esta: para que escolheu ele nos Estados Unidos tal papel?
Mas, antes de responder à pergunta, é de boa lei descrever e analisar o papel escolhido.
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Em duas palavras, pode-se dizer que toda a conduta de K. parece uma defluência natural da idéia um pouco vaga, complexa e infantil que o público ocidental tem do bárbaro e, pois, do seu congênere um tanto diluído, o semibárbaro:
1° ) antes de tudo, um ser espontâneo, que age por impulsos muito mais que por reflexão;
2° ) um ser capaz de terríveis cóleras, de crueldades sem nome, e, portanto, muito temível se se tem a inabilidade de contrariá-lo;
3° ) mas um ser primário e inconsequente, que pode também facilmente ser guiado por agrados, por concessões inteligentes que produzem nele, como contragolpe, gestos superlativos de gratidão e generosidade, uma espécie de crianção que, tratado com doces, sorrisos, presentes, se entrega de bom grado à influência de um pedagogo hábil.
A postura de espírito que daí decorre, resultante de um misto de temor, simpatia e pouco caso, é a de um pacifismo radical:
1° ) brigar com o bárbaro é particularmente perigoso;
2° ) de outro lado, é fácil evitar a briga com manejos e inteligentes concessões;
3° ) em suma, quer o que o bárbaro tem de mau, quer o que ele tem de bom, aconselha o repúdio dos meios violentos e a aceitação dos meios pacíficos.
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O lado "ferocidade" era um fundo de quadro muito visível na idéia que os americanos, e em geral os ocidentais, faziam de K. É ele o senhor onipotente dessa Rússia brumosa e desconhecida, toda cercada de arame farpado no qual circula uma corrente elétrica mortífera. Um pesado silêncio paira nessas brumas, entrecortado por alguns prantos abafados, que mais se adivinham do que se ouvem. Percebe-se que uma polícia onipresente tira qualquer espontaneidade à vida social. Que nas igrejas semicerradas se mantém uma vida religiosa borbulhante mas vigiada, comprimida, brutalizada. Que as vozes da imprensa estão todas a serviço da mais artificial propaganda. Que, enfim, Kruchev é o feitor da maior das senzalas que a história conhece. Certas reminiscências terríficas, umas próximas e outras remotas, acentuam as cores do quadro. O público ainda não se esqueceu de todo de Nicolau II e sua família, tragicamente mortos por espancamento e fuzilaria em Ekaterinenburg, dos Grão-Duques atirados em fossos cheios de petróleo ao qual depois se ateou fogo, das chacinas de Arcebispos, Bispos e Clérigos, do massacre sistemático de nobres, de burgueses e de plebeus "brancos" em toda a Rússia. O martírio da Polônia, da Tcheco-Eslováquia e mais recentemente o esmagamento da gloriosa e indomável Hungria, o cativeiro injusto e degradante da. Alemanha Oriental, a atmosfera de turbulência que os partidos comunistas disseminam no mundo inteiro, tudo enfim concorria para dar uma idéia bem viva da ferocidade desse bárbaro.
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Se um bárbaro com um tacape pode dar medo... pelo menos à gente medrosa, o bárbaro armado de bombas atômicas, que medo pode causar até aos mais corajosos? E se esse bárbaro fabrica instrumentos de propulsão capazes de atingir, certeiros e pontuais, a própria lua, que engenhos superprecisos e superpontuais terá ele para jogar a bomba atômica nesta ou naquela cidade do globo, em Nova York, em Chicago, em São Francisco, por exemplo, ou em Boston?
No momento em que o foguete russo atingiu a lua, era esta a pergunta que, explícita ou implícita, consciente ou subconscientemente, se faziam todos os norte-americanos, para não dizer todos os homens. Foi este o momento que Nikita Kruchev escolheu para chegar aos Estados Unidos.
Confessemos que como "mise en scène" do fator "terror" não é nada mau.
Seria preciso um alto grau de idealismo, uma fé profunda, para não estremecer. Como veremos, foi precisamente dessa atmosfera de idealismo, de mística, de metafísica ( perdoe-nos o leitor o emprego destes termos em seu sentido corrente ) que K. quis insistentemente arrancar a polêmica entre Ocidente e Oriente.
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O culto da força não tem por objeto apenas a força bruta, mas também a riqueza e o poder, que são sem dúvida expressões indiretas e mais elevadas do prestígio da matéria. Entendemos aqui por "poder", não o direito de mandar, mas o fato do mando cinicamente exercido com inteira indiferença para com o direito.
Uma vez que, nas atuais condições, o poder se exerce sobretudo com base na propaganda, nas armas e na espionagem, e como esses três fatores só podem chegar à plenitude de sua eficácia com o emprego na mais larga medida de meios técnicos custosíssimos e ultrapotentes, em última análise o papel da técnica e da matéria de tal maneira avulta nos vários aspectos do poder, que o público fica facilmente propenso a ver neste um valor preponderantemente material.
Quanto à riqueza, ao ouro, é também matéria.
Assim, pode um bárbaro ou um semibárbaro, carente dos verdadeiros valores do espírito e da cultura, e todo imerso no mundo da matéria, ser, entretanto, um potentado nas esferas da técnica e da economia.
Foi como se apresentou K. Vulgar como o mais primitivo dos homens de rua. Mas dispondo a seu talante dos recursos do ouro e da técnica, manipulando milhões de rublos, dominando milhões de homens, e falando singelamente em liquefazer os gelos de toda a Sibéria com energia atômica.
Não é difícil perceber quanto com isto podem ficar fascinadas as massas mesmo quando nitidamente hostis.
Fascinadas... e amedrontadas, pois o medo e o fascínio são fatores que facilmente se associam para hipnotizar e subjugar as multidões...
Enquanto, pois, todos estes fatores conjugados, próximos e remotos, cercavam de um halo escuro e prestigioso esse terrível senhor do ouro, da técnica e das massas, alguns vagos lampejos de esperança pareciam quebrar, de modo tênue e indeciso embora, o que o quadro representava de excessivamente severo.
Os leitores da grande imprensa ocidental vinham absorvendo, de há anos, notícias que criavam no seu espírito certas duvidas anestesiantes.
Em primeiro lugar, insinuou-se que nem todos os comunistas eram necessariamente tiranos espoliadores da propriedade alheia. Tito, comunista declarado presidindo um Estado também comunista, foi tratado pela diplomacia do Ocidente como se
(continua)