P.04-05

OS ÍNDIOS SE ADMIRAVAM VENDO O PODEROSO CORTÉS DE JOELHOS ANTE OS FRADES

(continuação)

energia, não soube defender seu trono, nem lutar; só foi intransigente em seu apego ao erro. Morreu sem gloria e impenitente.

O Conquistador atendeu fielmente ao último pedido do vencido: recomendou seus filhos a Carlos V. Um filho e uma filha do asteca se converteram, foram ricamente dotados e deram origem a duas famílias da nobreza espanhola: as dos condes de Tula e Moctezuma.

400 espanhóis mortos na retirada

A luta devia continuar, posto que o último recurso para fazê-la cessar desaparecera com a morte do imperador. O grande "teocali", graças à sua posição e altura, mantinha sob constante ameaça o quartel dos cristãos e estes resolveram atacá-lo. Os índios defenderam tenazmente cada degrau; por fim, derrotados, lançavam-se do alto em busca da morte. Dois deles tentaram arrastar consigo Cortés, que atirou um para baixo e prendeu o outro.

Apesar de toda sua valentia, os espanhóis viam seu número diminuir, enquanto que as fileiras do inimigo pareciam nunca rarear. Percebendo que a disciplina se relaxava e muitos desesperavam, Cortés decidiu retirar-se à noite.

Preparou-se um passadiço de madeira, portátil, para substituir os trechos da ponte que os astecas haviam destruído. A retirada se fez no maior silencio possível e a chuva que caía ajudou os cristãos.

A primeira brecha da ponte foi atravessada sem dificuldade. Logo, porém, os sitiantes foram despertados e os grandes tambores deram o alarme. O lago ficou cheio de canoas, e flechas voavam de toda parte. Quando se tentou transportar a ponte de madeira para a segunda brecha, não foi possível tirá-la do lugar: o peso a encravara na pedra. A confusão tornou-se medonha. Os que estavam na retaguarda eram atacados pelos índios e empurravam os seus companheiros para fugir. Uns caiam nas mãos do inimigo, outros se afogavam, poucos conseguiam passar. Cortés, depois de ter vencido a passagem perigosa, percebendo alguns soldados ainda em risco de vida voltou para libertá-los. A terceira brecha foi atravessada já à luz do dia, e nela não morreram tantos homens quanto nas anteriores. Ao verem que os brancos haviam logrado passar para terra firme, os índios deixaram de persegui-los. Estavam satisfeitos com a vitoria: 4.000 tlascaltecas e 400 espanhóis haviam perecido na retirada. Cortés perdera todos os tesouros, todos os canhões e ficara com apenas 23 cavalos.

Exaustos, os sobreviventes derrotam um exército

A tropa extenuada pela luta marchava havia cinco dias, alimentando-se de ervas e raízes, quando chegou às alturas montanhosas de Otumba. Aí aguardava um imenso exército asteca para dar-lhe o golpe final. Cortés, valentemente, não esperou o ataque. A pequena cavalaria logo avançou aos gritos de "Santiago". Os espanhóis lutaram com animo sobre-humano, mesmo porque não tinham outra saída senão a vitória. Estavam cercados por todos os lados e sua habilidade no manejo das armas compensava até certo ponto seu número reduzido.

O Conquistador, no meio da luta, percebeu o general asteca carregado num trono com a bandeira do império na mão. Furiosamente, junto com alguns companheiros, arremeteu contra ele, derrubou-o com um golpe de lança e tomou-lhe o estandarte. Os nativos, vendo morto seu general, debandaram, e os espanhóis ainda tiveram forças para persegui-los.

Cerca de 20.000 pagãos inimigos morreram em Otumba, que foi um dos maiores feitos de armas de Cortés.

Em Tlascala e no litoral, ele procurou reorganizar sua tropa para a desforra. Não havia pólvora, e para fabricá-la, um espanhol, Francisco Montado, desceu pela cratera do Popocateptl abaixo para buscar enxofre. O comandante espanhol não desanimava, certo do auxílio divino. Descrevendo a Carlos V a gravidade da situação em que se achava, acrescentava: "Ao mesmo tempo lembrei-me de que somos cristãos, e estava cheio de confiança na infinita bondade e misericórdia de Deus, o qual não pode querer que nos arruinemos inteiramente, e que um império tão grande e nobre, que conquistamos para o Imperador, o percamos de todo".

Graças aos reforços que recebeu de seus compatriotas e de tribos indígenas a que se aliou, Cortés pôde organizar nova expedição contra Tenochtitlan, com cerca de seiscentos soldados a pé, sessenta cavaleiros, nove canhões e duzentos mil índios. Este último número, tão elevado, indica como o jugo asteca sobre os outros nativos era tirânico e odiado. Cortés fez construir treze bergantins a fim de dominar o lago que cercava a cidade do México.

Todos os soldados se confessaram e comungaram

Depois de sujeitar as povoações que existiam nos arredores, os espanhóis estabeleceram o cerco da capital. No primeiro dia do sitio, todos os cristãos se confessaram e comungaram. O comandante incitou-os à luta dizendo-lhes: "Vamos combater por nossa fé, por nossa honra, pela riqueza e vingança. Coloquei-vos diante de nossos inimigos; agora pertence-vos a resto".

O lago foi imediatamente dominado pelos bergantins, que afundaram as canoas dos astecas. Durante meses lutou-se sem tréguas pela posse das pontes e da cidade. O novo imperador, Guatemozim, era jovem e valente e inspirou a seu povo o desejo de morrer mas não se entregar. Quanto aos europeus, o que mais temiam não era a morte no campo de batalha: era que os índios os aprisionassem para sacrificá-los aos ídolos. Ao malograr um ataque geral dos católicos, quarenta deles, que caíram vivos nas mãos do inimigo, foram imolados aos deuses, no alto dos "teocalis", diante do exército de Cortés.

Várias vezes Guatemozim repeliu propostas de paz, apesar de a fome dizimar seus súditos.

"Sei estimar o valor até nos inimigos"

Os sacerdotes haviam profetizado que os astecas exterminariam os estrangeiros até certa data. À medida que esta se aproximava, os índios aliados de Cortés ficavam mais temerosos e o número de desertores crescia. O comandante ordenou então a suspensão da luta a fim de esperar o dia profetizado e convencer de falsidade os magos.

Durante esta trégua, um asteca, armado com a espada e o escudo de um espanhol sacrificado, veio desafiar os guerreiros cristãos para um combate singular. Cortés respondeu-lhe que, se ele voltasse com dez companheiros, permitiria que seu pajem, rapaz de dezesseis anos, os matasse a todos. Enfureceu-se o índio, e insistiu no desafio. Tomando rapidamente de uma espada, o pajem correu para o atrevido, sem que ninguém o pudesse deter, e o matou. O exercito entusiasmado aclamou sua façanha, enquanto ele vinha humildemente colocar aos pés de seu senhor as armas do vencido. Cortés abraçou-o e cingiu-lhe a espada que tão valentemente conquistara.

A 13 de agosto de 1521, após quatro meses de sitio, foi dado um ataque geral à cidade. Durante a refrega, Guatemozim tentou fugir pelo lago, numa canoa, mas foi aprisionado e levado à presença do Conquistador, a quem tranquilamente disse: "Fiz tudo o que podia para defender a mim e a meu povo; agora estou neste estado. Malinche, faze comigo o que quiseres". E pegando o punhal de seu adversário, acrescentou: "Mata-me logo e livra-me da vida". "Nada temas, retrucou-lhe Cortés, serás tratado com toda a honra; defendeste tua capital como um valoroso guerreiro: um espanhol sabe estimar o valor até nos inimigos".

O vencedor de Guatemozim descreve assim a tomada da cidade: "De tal modo estava rodeado e apertado o adversário, que não podia dar um passo sem pisar montes de cadáveres dos seus... A matança feita nesse dia, por água e por terra, foi tão violenta, que foram mortos ou aprisionados 40.000 homens. Os gritos e gemidos das crianças e mulheres eram horrendos: não havia entre nós quem não sentisse o coração partido. Tínhamos enorme trabalho para conter os nossos amigos índios, a fim de que não matassem a todos e não praticassem as maiores barbaridades contra inimigos incapazes de lutar. Nunca se viu crueldade mais repugnante noutra linhagem de homens, nem mais fora de toda a ordem da natureza do que nos índios destas terras.

"Nossos amigos fizeram grande pilhagem nesse dia, o que de modo algum se pôde evitar, porque éramos somente novecentos espanhóis para mais de 150.000 índios, e nenhuma vigilância ou cuidado era suficiente para afastá-los do saque, embora por nosso lado tivéssemos feito todo o possível" (Weiss — Hist. Univers. — vol. IX, pp. 64 e 65).

Na cidade não foram encontrados os grandes tesouros esperados. Alguns acusaram Cortés de tê-los roubado; outros exigiram que Guatemozim e um dos principais caciques fossem torturados para revelar onde haviam escondido as riquezas dos astecas.

Ambos foram deitados sobre um leito de brasas; vencido pelo sofrimento, o cacique voltou-se para seu senhor, suplicando-lhe com o olhar que lhe desse licença para falar. O imperador chamou-o ao dever com esta resposta animosa: "E eu por acaso estou num leito de rosas?"

Vendo que os índios não confessavam, Cortés libertou-os, mas o cacique veio a falecer em conseqüência das queimaduras. Guatemozim viveu ainda alguns anos. Em 1524, envolveu-se numa conspiração para matar seu antigo adversário, que mandou então enforcá-lo.

O Conquistador foi nomeado Vice-Rei da Nova Espanha, e se revelou tão ativo administrador quanto valente guerreiro. O México logo teve 2.000 famílias brancas e 30.000 indígenas.

"Cortés pediu ao Imperador Carlos V missionários doutos e virtuosos, pois se os eclesiásticos não vivessem de modo honroso e casto, sua pregação seria inútil para os perspicazes mexicanos. Em 1524 vieram doze Frades franciscanos virtuosos e doutos.

Como se assombravam os índios quando viam que o poderoso Cortés dobrava os joelhos diante deles!” (Weiss — op. cit. — vol. IX, pp. 67-68).

Em vinte anos converteram-se, ao que se julga, nove milhões de índios.

De volta à Espanha, Cortés teve um acolhimento triunfal. Recebeu o titulo de Marquês do Vale de Oaxaca e certa vez, estando doente, mereceu a honra excepcional de ser visitado pelo próprio Carlos V. Mais tarde caiu em desgraça, e morreu em 1547 numa situação que não correspondia a seus merecimentos.

Assim foi a conquista do México. Hernán Cortés não foi homem sem mancha. Ele mesmo disse aos astecas que sofria de uma doença do coração que só se curava com ouro. Porém, no centro desse coração, estava solidamente implantada a fé e o zelo pela causa da Igreja. Muitas vezes arriscou ele vida e tesouros para extinguir o culto dos ídolos, e o fruto de sua conquista foram milhões de convertidos e riquezas que, tornando a Espanha a primeira potência do mundo de então, permitiram a Carlos V e Filipe II barrar os progressos dos protestantes na Europa e dos turcos no Levante.

A figura do herói espanhol é geralmente apresentada de modo parcial: acentuam-se suas falhas, somente se fala dos seus defeitos. Mas que importa que alguns historiadores não lhe prestem toda a homenagem que ele merece? Cortés recebeu uma recompensa infinitamente maior. Do alto do "teocali" que dominava a capital asteca, derrotando o demônio que ali estabelecera seu trono, a imagem da Virgem Maria abençoou aquele pequeno exército de bravos. E mais que aos outros, os olhos misericordiosos da Mãe de Deus contemplaram com gratidão aquele que com seu sangue e sua coragem tão alto A tinha colocado: Hernán Cortés, gloria da Espanha, herói católico.


UMA CARTA ABERTA AO ABBÉ PIERRE

Recebemos do Almirante Carlos Penna Botto a carta aberta que S. Excia. dirigiu, em francês, ao Revmo. Pe: Pierre, a propósito das conferências pronunciadas por aquele sacerdote quando de sua passagem pelo Rio de Janeiro, em julho último.

O Abbé Pierre, como é do conhecimento geral, iniciou há anos uma campanha contra a miséria e a fome que se manifestaram em grandes cidades da França, em consequência da guerra passada. Para esse fim fundou uma associação denominada Trapeiros de Emaus, cujos membros se dedicam a socorrer os necessitados, e particularmente a construir moradias para os desabrigados. Posteriormente essa campanha estendeu-se a outros países, inclusive da América do Sul.

Certos pronunciamentos de S. Revma. causaram espécie junto ao público brasileiro, e constituem objeto de oportunas observações feitas pelo Almirante Penna Botto.

Esse ilustre oficial general é um dos brasileiros que mais se têm distinguido na luta desassombrada contra o perigo marxista. Dirige há vários anos a Cruzada Brasileira Anticomunista, é Presidente da Confederação Interamericana para a Defesa do Continente, e um dos principais organizadores do futuro Primeiro Congresso Mundial Anticomunista.

Está, portanto, o Almirante Penna Botto altamente credenciado para opinar sobre o assunto, mesmo porque, na esclarecida luta que desenvolve contra a infiltração bolchevista no mundo ocidental, não tem negligenciado a influência dos fatores secundários dessa penetração, entre os quais se acham, por vezes, justamente a miséria e a fome.

Referindo-se à primeira conferência do Pe. Pierre, observa a carta que S. Revma. afirmou que entre os miseráveis das grandes cidades notara um desespero causado não tanto por não terem de que viver, mas por falta de razão de viver. Pondera a carta aberta: "Em seguida fazeis menção do outro lado, onde se procuraria dar às pessoas uma razão de viver... Não vos referistes uma só vez explicitamente à Rússia; preferistes empregar a expressão o outro lado. Mas, qual será a razão de viver para os que estão sob o jugo comunista? — A de uma utópica e problemática sociedade sem classes que se formaria num futuro muito remoto, como objetivo final da espiral socialista; uma sociedade em que autômatos, verdadeiros robots mecânicos, ateus e materialistas, trabalhariam como meras peças de máquina, sem que se lhes reconheça a menor parcela de dignidade pessoal?"

E mais adiante: "Assim, em síntese, a razão de viver para as populações colocadas sob o regime comunista é falsa e sem fundamento; pior do que isto, é um embuste e uma farsa! Pelo contrário, o mundo democrático, chamado mundo ocidental, que é igualmente o mundo cristão, oferece uma verdadeira, nobre e legítima razão de viver que se traduz pelo aperfeiçoamento da pessoa humana, tendo como fim uma vida sobrenatural, extraterrestre; este aperfeiçoamento se consegue pela prática do bem, pela aceitação dos princípios eternos da moral cristã, pela prática da Religião, pelo sofrimento e o sacrifício".

Um segundo reparo se relaciona com a afirmação do Abbé Pierre de que as massas sofredoras e miseráveis, sob a pressão da pobreza, haviam tomado consciência de que não existia justiça social no mundo, e estavam convencidas da necessidade de mudar, pela violência ou não, o estado de coisas atual. Observa o Almirante Penna Botto: "Ora, não são as massas acuadas pela pobreza que, através da violência, modificam uma ordem social determinada. São os lideres dessas massas (sejam eles bons ou maus, bem intencionados ou não) que as lançam cegamente numa direção ou noutra.

"As massas humanas são dirigidas; elas obedecem à vontade dos chefes, dos condutores. De onde o conselho de Stalin — Esmagai os chefes e depois podereis fazer o que quiserdes com as massas.

"No que concerne ao comunismo, por exemplo, pode-se constatar que a miséria, a fome, a pobreza, nem sempre constituem um ambiente que lhe seja favorável. Nos Estados Unidos acha-se o maior número de comunistas nos Estados ricos (Nova York, Califórnia, Illinois) e o menor no Estado mais pobre (Mississipi).

"Muito frequentemente a infiltração comunista se faz de modo mais intenso na burguesia, entre os ricos e mais aquinhoados (até entre os milionários), nos setores intelectuais, etc., do que nas classes pobres da sociedade. E, a meu ver, trata-se do aspecto mais inquietante da propaganda marxista atual.

"A pobreza desempenha um duplo papel. Ou serve para conduzir os miseráveis ao comunismo, ou se presta como instrumento eficaz aos tiranos para manter dóceis e servis populações já dominadas pelo comunismo. O terror e a fome (ou a ameaça de fome) são os dois meios mais seguros para escravizar os homens! Cumpre dizer, todavia, que a pobreza impele os miseráveis ao comunismo em desespero de causa e pela ignorância em que estão do que seja o comunismo".

Ao analisar a segunda conferencia, a carta chama a atenção para o fato de que o Revmo. Pe. Pierre foi "apresentado ao público pelo Deputado Josué de Castro, cujas tendências marxistas são bem conhecidas e declaradas", e que o mesmo se aproveitou indevidamente da ocasião para fazer proselitismo em favor de suas idéias.

Entre os conceitos então expendidos pelo Abbé Pierre, um causou particular perplexidade. Foi o relativo aos métodos para resolver o problema da fome no mundo. Assim se exprime a respeito o autor da carta aberta: "Dizeis que há dois métodos para resolver o problema da fome: o método totalitário e o método da liberdade.

"Falando do primeiro, aplicado do outro lado (na Rússia e países satélites, evidentemente), dizeis: — Quem teria ousado pensar, há quarenta anos, que um país que havia permanecido atrasado e retrogrado durante séculos, poderia igualar o país mais desenvolvido do mundo e até ultrapassá-lo? Ressaltais em seguida: — Diz-se deste lado (nos países não comunistas, evidentemente) que foi preciso matar sessenta milhões de pessoas. E também: — Mas os pobres, deste mesmo lado, respondem: sim, mas será que as pessoas que morreram de fome, de miséria, de sofrimentos, de doenças e de epidemias, abandonadas pelos poderes públicos e pelos ricos, maltratadas, não terão atingido, elas também, a cifra de sessenta milhões em quarenta anos?

"Em conclusão declarais: — A liberdade, quando não serve senão para fazer morrer de fome, é uma caricatura de liberdade. E também: — É necessário que haja a liberdade com a tirania do amor. Bem como: - Há ao menos uma esperança do outro lado.

"Permito-me perguntar, Muito respeitosamente, caro Padre, se já estivestes na Rússia Soviética, ou se conheceis o que se passa hoje no interior daquele país e de seus satélites...

"Tenho quase certeza de que não estais perfeitamente a par da situação interna atual da Rússia, pois do contrário creio que não diríeis que o problema da miséria e da fome foi resolvido lá.

"O problema da fome não foi resolvido pelo regime comunista, nem mesmo ao preço da escravidão; as massas subjugadas continuam subalimentadas e têm fome! O russo de hoje, a menos que pertença às altas esferas do Partido Comunista, é um escravo mal nutrido, mal calçado e mal alojado, que vive sob a ameaça da prisão e das penalidades.

"Ademais, malgrado o brutal preceito de Feuerbach: — o homem é o que ele come — eu digo: nem só de pão vive o homem..."

O Almirante Penna Botto termina sua carta aberta pedindo ao Abbé Pierre que reze a Deus pela humanidade nesta hora de confusão e sofrimento.


OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX

PREPARA-SE A INGLATERRA PARA O CONCÍLIO

Fernando Furquim de Almeida

A 26 de junho de 1867, falando aos bispos presentes em Roma para as festas do XVIII centenário da morte de São Pedro, Pio IX anunciou que convocaria em breve um Concílio Ecumênico. No mundo todo se compreendeu que nessa oportunidade seriam julgados os erros do liberalismo.

Procurando preparar o terreno para a batalha que se daria no futuro Concílio, os liberais entraram em violentas polêmicas com os ultramontanos. A infalibilidade do Papa era a tese mais discutida, e é sabido como se pronunciaram os católicos a respeito. Os ultramontanos defenderam-na intransigentemente. Os liberais dividiram-se: alguns, como Doellinger, declararam-na falsa, invocando argumentos históricos; outros, mais prudentes, reconheciam que o Pontífice não podia errar, mas julgavam inoportuno proclamá-lo como dogma. Louis Veuillot, com sua verve habitual, passou a chamar estes últimos de oportunistas, e é sob essa denominação que eles são conhecidos até hoje.

Na Inglaterra, graças a Mons. Manning, praticamente todos os católicos eram ultramontanos. Só alguns remanescentes do grupo de “The Rambler” quebravam a unanimidade, adotando as posições liberais mais extremadas.

Através da “Dublin Review”, William Ward punha em evidência o ridículo dessas opiniões, e ao mesmo tempo, com sua costumeira franqueza, advertia os católicos ingleses contra os oportunistas que começavam a se reunir em volta de Newman. Como Veuillot na França, Ward sofria uma campanha sistemática por parte dos liberais, que o acusavam de não ter caridade e de ser de um natal violento, ao que ele respondia: “Muitos julgam-me uma espécie de gladiador teológico que se deleita na luta. Eles não sabem que poltrão eu sou e como odeio a batalha”.

A obrigação de combater Newman e impedir que sua influência sobre os ingleses aumentasse era para o fogoso jornalista um dos maiores sacrifícios impostos por sua consciência. Em carta a Monsell, amigo de ambos, escrevia ele: “Crede, peço-vos, que vos respeito verdadeiramente, a vós e a muitos outros que considero como sendo, inconscientemente, os mais nocivos inimigos da Igreja; e, em particular, acreditai que são imortais minha gratidão e minha afeição para com o ilustre líder desse formidável e funesto bando”.

O próprio Newman, que não poupava censuras e queixas — aliás injustas — contra Mons. Manning, Mons. Wiseman, o Padre Faber e tantos outros, assim se expressa com relação a Ward: “Não tenho nenhuma palavra a dizer contra ele. Sempre teve por mim melhores sentimentos do que eu por ele. É absolutamente honesto. Diz alto tudo o que pensa, e seria da maneira mais afetuosa e doce que me chamaria de herege declarado”. Essa opinião não era, no entanto, conhecida do público, e não tendo argumentos para combater a "Dublin Review", os poucos oportunistas insistiam sobre a violência do seu diretor.

Newman era realmente favorável à tese da inoportunidade, embora, com a sua costumeira prudência, não se manifestasse abertamente. Em cartas do célebre oratoriano a amigos, encontram-se inúmeros pronunciamentos nesse sentido. Em uma delas, confessava: "Sempre pensei que essa tese (a infalibilidade) era provavelmente verdadeira, mas não certa". Em fevereiro do 1866, escrevendo a Ward, dizia: "Penso também que sua definição seria inoportuna, e que há pouca probabilidade de que seja feita. Se o for, no entanto, não terei nenhuma dificuldade em aceitá-la".

Em 1867, um outro padre do Oratório, Ryder, publicou uma crítica dos artigos de Ward. Newman mandou a seu confrade uma carta em que, depois de declarar-se de perfeito acordo com ele, concluiu: “Agora que meu tempo se aproxima do fim, alegro-me vendo a nova geração não esquecer a velha máxima em que sempre quis inspirar-me nos meus escritos e atos: In necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus charitas”.

Ao receber tais cartas de seu antigo líder, Ward exclamava: "Bom, esta noite vou ser obrigado a tomar uma dose dupla de calmante, se quiser dormir". E continuava a combater, como se nada tivesse acontecido.

Nas vésperas do Concílio, o Padre Newman enviou a Mons. Ullathorne, Bispo de Birmingham, diocese da qual dependia, uma completa exposição de seu ponto de vista: "Quanto a mim pessoalmente, graças a Deus, não temo que me venha alguma provação. Não posso, porém, me impedir de sofrer com tantas almas que sofrem, e considero com ansiedade a perspectiva de ter que defender decisões que podem não apresentar dificuldades a meu próprio julgamento, mas que são, talvez, difíceis de sustentar logicamente em presença de fatos históricos. Se é vontade de Deus que a infalibilidade do Papa seja definida, então a vontade de Deus é adiar para mais tarde o tempo e o momento desse triunfo que Ele destinou a seu reinado, e só me cabe curvar a cabeça diante da sua adorável e insondável Providência".

Essa carta, “uma das mais confidenciais que escrevera”, foi revelada aos católicos ingleses. Seu autor, que até então nunca se pronunciara publicamente sobre o assunto, ficou conhecido como oportunista confesso, justificando plenamente a campanha de William Ward. Em carta ao Duque de Norfolk, Newman afirmou que "retirava essas declarações tanto quanto o podia fazer, protestando que nunca as destinara aos olhos do público".

Os liberais tinham feito correr que o Papa convidaria o antigo líder do Movimento de Oxford para consultor do Concílio. Como o convite não chegava, e os bispos ingleses, solidários com Mons. Manning, não manifestavam desejo de tê-lo em suas comitivas, Mons. Dupanloup propôs levá-lo como seu teólogo. Newman recusou, por sentir que sua presença desagradaria ao Santo Padre.

Obrigado ao silêncio, não lhe foi possível formar uma oposição oportunista na Inglaterra, e o grupo de "The Rambler", por seus excessos, não teve nenhuma repercussão. Mons. Manning pôde assim levar ao Concílio do Vaticano uma Inglaterra completamente ultramontana, que defendeu vigorosamente a infalibilidade contra os assaltos dos liberais.


NOVA ET VETERA

PRIVILEGIOS OU FAVORITISMO?

J. de Azeredo Santos

Segundo os adeptos da infalibilidade do sufrágio universal e da doutrina revolucionaria do povo soberano, o que principalmente distingue a democracia dos demais regimes políticos vem a ser a perfeita igualdade de todos os cidadãos perante a lei e a consequente ausência de qualquer privilégio: não há outorga de graças e honrarias pelo Estado, reduzido este, portanto, ao papel de nivelador da sociedade humana. Isto, porém, em teoria, e em falsa teoria. Na prática vemos coisa bem diferente.

Ainda recentemente caíram sob nossos olhos os iracundos comentários de certo articulista da imprensa diária, que reconhecia não terem os setenta anos de república logrado extirpar da mente dos homens públicos de nossa terra o hábito dos privilégios. Por todos os lados campeia desbragado favoritismo. Insculpida a igualdade na fachada das instituições republicanas pelo texto frio das constituições escritas, a cornucópia das mercês e das benesses passa a ter uma atividade subterrânea e clandestina, e em vez de premiar méritos, com deplorável frequência alimenta inconfessáveis traficâncias.

Nas chamadas democracias ocidentais, bem como entre os povos subjugados pelo regime soviético, o que vemos por toda parte é a substituição da antiga classe dirigente por uma nova classe privilegiada. A sociedade apenas trocou de senhores, com a desvantagem de que os novos, salvo honrosas exceções, nem sequer possuem as boas maneiras e a compostura moral dos antigos.

AS CONTRADIÇÕES DA IGUALDADE DEMOCRÁTICA

Em vez, porém, de se reconhecer que a causa profunda desse fenômeno reside, em primeiro lugar, na própria falsidade dos pressupostos em que se apoia esse igualitarismo democrático, a atitude mais comum vem a ser o apelo a uma desculpa: os povos ainda não estariam maduros para esse estado ideal de perfeita igualdade e de geométrica justiça social. O defeito estaria nos homens, e não nas instituições geradas pela Revolução universal.

Ora, o mais elementar bom senso nos leva a afirmar que o mal se acha nos dois lados, isto é, na viciosa estrutura político-social do mundo moderno e nos homens que a servem. Como primeiro erro ou contradição desse democratismo inviável, temos o absurdo de sustentar-se que a igualdade decorre de uma cada vez maior sede de liberdade. A Revolução teria vindo para destruir a tirania dos Reis e a consequente desigualdade ou regime de privilégios próprio de uma sociedade aristocrática.

Acontece que não é impunemente que se contraria um princípio inseparável da natureza humana, como é o da desigualdade. Do ponto de vista social, ou de suas relações mútuas, os homens são desiguais. Desiguais na herança de seus caracteres físicos e intelectuais. Uns são fracos, outros são fortes, uns são inteligentes, outros são verdadeiros indigentes mentais. Uns são dinâmicos, outros apáticos, uns têm vontade férrea, outros se deixam dominar pela preguiça. E aqui tocamos nas desigualdades de fundo moral. Há modelos vivos de virtudes, enquanto que outros se afundam no lodaçal dos vícios e dos crimes em escala acentuadamente variável. Há diferenças que vêm sobre os homens como dons de Deus, há outras que se implantam na sociedade por culpa dos próprios homens, pelo modo como correspondem ou deixam de corresponder a esses mesmos dons. Essa variedade de méritos e de deméritos é um dos elementos constitutivos da chamada sociedade orgânica.

O TRAMBOLHO DA LIBERDADE

E se os indivíduos são desiguais entre si, também desiguais são os variados grupos que compõem a sociedade humana. Dada essa desigualdade de condições, de atribuições, de vocações, de funções, de méritos, o princípio da igualdade de todos perante a lei é pior que um disparate, se considerado geometricamente, pois representa uma clamorosa injustiça. Somos todos irmãos, porque filhos de Deus, mas a igualdade que nos une é uma igualdade de proporção. Que interessa a um calceteiro ter os mesmos direitos de um próspero industrial?

Diante desta contundente realidade, os agentes da Revolução desenvolveram um raciocínio muito simples: se usando da liberdade dos filhos de Deus uns homens se tornam calceteiros e outros se transformam em prósperos industriais, uns escrevem Sumas Teológicas e outros carregam fardos, então, para sustentar o dogma revolucionário mais dissolvente, que é o igualitarismo, a solução será eliminar da face da terra esse trambolho que é a liberdade. Na primeira fase de suas conquistas, a Revolução se contentou com uma simples escamoteação: substituiu a liberdade pelo liberalismo. O sufrágio universal — essa «mentira universal», segundo Pio IX (alocução aos peregrinos franceses de 5 de maio de 1874) — implantou no mundo a ditadura das assembléias legislativas, que gradualmente haveriam de substituir o direito natural pelo «direito novo», arbitrário, sectário, subversivo, precursor da segunda fase, a fase socialista, a fase das democracias populares. A coerção do igualitarismo político, haveria de suceder o mais deslavado e franco despotismo do igualitarismo econômico. O primeiro prepara as veredas para o segundo, até no que se refere ao arcabouço jurídico-social.

O legislativo e o executivo dos chamados regimes democráticos, agindo como absolutos tutores da sociedade, despejam sobre os povos uma catadupa de leis, de decretos, de instruções, de regulamentos, que dizem respeito às molas íntimas que propulsionam o organismo social. O Estado, soberano absoluto, dita normas sobre política educacional, fazendo tabula rasa dos direitos da Igreja e da família. Legifera sobre a política de preços, de mercados, de salários, de investimentos, de previdência, espalhando por todos os lados as mais clamorosas injustiças. E é tamanho o intervencionismo do Estado dito democrático nos variados setores da vida social, com a consequente e gradativa destruição da liberdade legítima, que se torna muito imprecisa a linha divisória que o separa do Estado totalitário do tipo comunista ou nazista.

E através desse despotismo a que a Revolução submete a humanidade, atando-lhe as mãos e os pés com cadeias cada vez mais pesadas, vão sendo negados e destruídos os autênticos e legítimos privilégios que decorrem da organicidade de uma sociedade livre e baseada na ordem natural, na tradição, no mérito, vão sendo trituradas essas graças e honrarias que nada mais são do que a consagração de uma superioridade reconhecida por todo o corpo social e pelo próprio Estado.

PRIVILÉGIOS LEGÍTIMOS E PRIVILÉGIOS ILEGÍTIMOS

Mas assim como as desigualdades justas são inseparáveis de uma sociedade fundada sobre a lei natural, sobre a observância do Decálogo, do mesmo modo as desigualdades injustas são a consequência incoercível da insensata violação dessa mesma lei natural, como se dá com a estrutura político-social totalitária.

Negados os privilégios legítimos, proclamados à luz do dia e aprovados pelos espíritos retos, infiltram-se no corpo social os privilégios odiosos, os privilégios espúrios, prêmios colhidos na seara da hipocrisia e à sombra de contubérnios tenebrosos, com que os construtores da Babel totalitária galardoam seus sequazes, benesses que custam ao resto da humanidade suores, lágrimas e sangue.

Voltaremos ao assunto.