Cena gravada por J. Amman no século XVI. Um médico, com uma imponência de profeta, apresenta a uma pobre velha deformada pela doença um remédio que ela fita com ingênuo deslumbramento. Quanta indecisão, quanta ignorância, entretanto, na medicina da época. — Com a mesma simploriedade, os adeptos do socialismo consideram a panacéia que este, em sua pesada ignorância filosófica e social, pretende inculcar.
A PANACÉIA
Plinio Vidigal Xavier da Silveira
De acordo com os mais ortodoxos princípios da liberal-democracia, cabe ao povo, na sua lúcida percepção dos problemas nacionais, orientar-lhes a solução através do uso do sagrado direito do voto.
Na prática, isto dá frequentemente em demagogia. Quem quer impor os seus pontos de vista a respeito desses problemas escolhe alguns slogans que impressionem por sua sonoridade oca; em seguida, difunde-os aos quatro ventos como dogmas contra os quais ninguém poderá argumentar sem ser tachado de retrógrado ou antiquado.
É justamente o que se faz no Brasil em matéria de economia. Exacerbando legítimos sentimentos patrióticos, explorando as ilusões cheias de ingenuidade do "porque-me-ufanismo", jogando com palavras como subdesenvolvimento, capitalismo colonizador, inflação, entreguismo, industrialização, trust e mais expressões que causam comichões emocionais em ouvidos predispostos a se deixarem influenciar por quem fizer mais barulho, difundiu-se entre nós a fabula da descoberta de um antídoto maravilhoso contra o grave desajustamento em que vivemos; em nome das virtudes terapêuticas desse antídoto justifica-se todo e qualquer descalabro que sua utilização possa causar.
Se os ingredientes dessa panacéia fossem inofensivos, não mereceriam mais que um sorriso de mofa. Mas, por estranha coincidência, todos eles levam o mesmo rótulo e neste se lê, com maior ou menor nitidez, a palavra socialismo.. .
ECONOMIA E RELIGIÃO
Uma análise mais profunda dos princípios que norteiam os fabricantes desse emplastro milagroso mostra de início a economia colocada em posição de destaque, como a ciência que salvará a nossa época. Nada de mais falso. Vivemos numa crise generalizada: de gêneros, de eletricidade, de água, de condução, de honestidade, de costumes... Tudo isso não passa de reflexo de uma crise maior, que atinge a toda a civilização cristã — no pouco que dela nos resta — e que é econômica, política e social. Mas se remontarmos às cabeceiras, encontraremos uma crise de religião e de moral; enquanto esta não for resolvida, não haverá solução estável para nenhuma das demais.
O técnico que tem a solução econômica para nossa época muito se parece com o ortopedista que, diante de um caso grave de descalcificação, pretende, encanando braços e pernas do cliente, curá-lo sem tratar da causa última das fraturas; pois crê que sua especialidade é o mais importante ramo da medicina e resolve por si só todos os males. E quanto mais membros ele encana, mais ossos se partem.
INDUSTRIALIZAÇÃO DAS CRISES
Tragicamente, não poderia ser de outro modo. Sem verdadeiro espírito católico, não há moralidade, não há honestidade; o homem não se satisfaz com os ganhos lícitos, com os lucros justos; nunca está saciado. A maioria procura as negociatas, as roubalheiras — mais ou menos escandalosas, de acordo com o conceito de moralidade de que cada qual quer gozar na praça — o enriquecimento fácil. Daí, num regime capitalista se chega a todos os abusos a que ele dá margem, enquanto no socialismo os altos funcionários tomam para si uma larga parcela dos bens da comunidade. Cada crise que se procura resolver fere os interesses de uma numerosa classe que vive à custa dela e tudo faz por mantê-la. Quando a situação se agrava demais, chega-se a uma solução genial que consiste, geralmente, numa portaria que muda em vinte e quatro horas as condições de determinado mercado; e sempre surgem os que "adivinharam" as modificações que seriam introduzidas e ganham o jogo com cartas marcadas.
Vivemos não só numa época de crises, mas numa industrialização de crises, sobremodo rendosa para muitos.
ORGANISMO OU MÁQUINA
Já houve quem dissesse que, assumindo o governo, passaria os seis primeiros meses revogando leis, para permitir que a própria sociedade gerasse organicamente instituições mais naturais. Muito de bom senso existe nisso: os regulamentos nascidos nos gabinetes, das penas inventivas dos técnicos — geralmente inclinados a ver a sociedade como gostariam que ela fosse e não tal como ela é — dão comumente origem a situações anômalas e inviáveis. Por outro lado, a sociedade, pelo seu próprio dinamismo, e desde que submetida ao controle de princípios morais, produz instituições mais de acordo com a realidade. Produz até mesmo os órgãos que deverão fiscalizar a boa aplicação dessas normas de moral.
Assim, uma sociedade que tomasse como regra primeira a obediência aos princípios religiosos, deveria gerar uma estrutura social e econômica cujo funcionamento se assemelhasse mais ao de um organismo que ao de uma máquina. Suas instituições poderiam ser comparadas de certo modo a órgãos humanos, que têm uma vitalidade própria e funções que se completam harmoniosamente. Não deveriam ser como peças de máquina, preestudadas e pré-fabricadas, desprovidas da maleabilidade necessária para se adaptarem às variações imprevisíveis de uma sociedade; pois o funcionamento desta não pode ser prognosticado como o de uma máquina que deve executar sempre a mesma operação.
O desenvolvimento desse princípio de organicidade, que há de estar presente em todas as situações sociais e em todos os sistemas econômicos, impede o bom planejamento nesses campos e faz com que as soluções de gabinete que surgem em nossa época sejam falhas. Esses remédios pré-fabricados, que em circunstâncias muito anômalas talvez possam ser úteis, desde que sejam excepcionais e transitórios, só agravam a situação quando passam a ser norma continua e método duradouro, como acontece nos tempos em que vivemos.
PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE
Quando poucas pessoas se reúnem numa empresa, é fácil o trato dos negócios e dos assuntos administrativos. À medida que aumenta o número de associados, à medida que se multiplicam as atividades, surgem problemas complexos. A existência de muitos sócios obriga a eleger uma diretoria com poderes para representar a todos. As funções sociais tornadas mais numerosas fazem necessária a criação de departamentos que atendam a determinados setores, como órgãos auxiliares da diretoria. Esta deve atuar supletivamente, deve dar a cada setor a autonomia necessária para seu bom funcionamento; somente subsidiariamente deve o órgão superior tratar de cada secção, dando a orientação geral e executando as funções que os órgãos inferiores não podem exercer. Se assim não fosse, se a diretoria se reunisse para resolver como há de agir o funcionário que deseja apontar um lápis ou usar uma borracha, seria mister estabelecer uma enorme burocracia de impressos e requerimentos, com outros tantos processos para dar andamento a essa papelada. Além da perda de tempo dos diretores e do elevado custo administrativo da empresa, resultaria uma eficácia muito inferior à obtida com uma organização que atendesse a esse princípio de subsidiariedade.
O desconhecimento dessas verdades elementares é completo em muitas soluções apresentadas para nossos problemas econômicos. Quando se fala em restrição à iniciativa privada, em monopólio estatal, em intervenção do governo na economia, geralmente está-se desconhecendo tudo isto. Quando se criam novos órgãos controladores ou supervisores de qualquer coisa, quando se inventam autarquias para resolver não sei que calamidade social, quando surge uma nova portaria que finalmente resolverá algum caso intrincado como o do ovo de Colombo, em geral está-se desconhecendo tudo isto.
PROPRIEDADE E DIREITO NATURAL
Mais um erro básico existe na fórmula da panacéia a que aludíamos: o combate à propriedade privada. Em tudo o que dizem e pregam os manipuladores do unguento miraculoso está subjacente a negação do direito natural do homem à propriedade de bens de raiz.
Afirma-se que o bem da coletividade prima sobre o do indivíduo, o que, "servatis servandis", é verdade. Daí se deduz o direito de desapropriação por necessidade social. Depois muda-se só uma palavrinha: "necessidade" é substituída por "interesse" ou por "conveniência". E está tudo pronto para que, em nome do simples interesse social ou da mera conveniência da coletividade, se pratiquem todos os desrespeitos à propriedade privada.
De restrição em restrição, o direito de propriedade vai desaparecendo de nossas instituições. Leis e jurisprudência vão, quase imperceptivelmente, cerceando-o. Em nome do progresso e das exigências de nossos tempos, está ele condenado ao perecimento lento e inevitável.
SEPARAR O JOIO DO TRIGO
Graças aos meios modernos de propaganda, essas novas concepções de economia se vão espalhando. Apresentadas como sabias conclusões científicas, aproveitam todo o prestigio dos progressos técnicos de nossa época para convencer a todos de que são verdadeiras. As noções tradicionais, expressão da doutrina econômica da Igreja, vão parecendo antiquadas e atrasadas, e já se olha com certa zombaria para quem quer defendê-las. Uma verdadeira ditadura de opinião pública se cria no campo econômico.
Para nos mantermos fiéis à boa doutrina e não cedermos diante dessa propaganda bem urdida, não devemos perder de vista as verdades básicas do ensinamento católico nessa matéria. A função secundaria da economia, a organicidade das instituições, a subsidiariedade dos órgãos superiores em relação aos inferiores, e o respeito da propriedade privada são quatro princípios que muito auxiliam a distinguir o joio do trigo. Evidentemente, muitos outros poderiam ser citados; no entanto, esses quatro, por serem dos mais negados modernamente, são excelentes instrumentos de trabalho para o fim que nos propomos. O desrespeito a qualquer deles é índice de caminho errado. A obediência a todos seria sinal de que se estaria voltando à boa trilha. Seria... se se estivesse voltando a ela.
VIRTUDES ESQUECIDAS
PUNIR E EXPULSAR PODE SER ATO DE VIRTUDE
Santo Afonso de Ligorio
Circular à Congregação do SS. Redentor, a propósito da saída do Padre Bernardo Tortora, que, irritado com uma repreensão de seu superior pedira dispensa dos votos:
Meus caros Padres e Irmãos em Jesus Cristo, peço a Deus queira expulsar, o mais depressa possível, da Congregação os espíritos soberbos que não querem suportar nem repreensão nem desprezo. Que Ele me expulse a mim mesmo, antes dos outros, se esse espírito de orgulho se apoderar jamais de mim. É esse maldito amor próprio que acaba de excluir das nossas fileiras o Padre Tortora, e agradeço a Jesus Cristo havê-lo afastado, porque semelhantes congregados são a ruína do Instituto, do qual afastam as bênçãos divinas. — ("Santo Afonso de Ligorio", Pe. Berthe, - C. SS. R. — trad. Pe. Oscar Chagas Azeredo, C. SS. R. — ed. Esc. Prof. Sales, do Liceu Coração de Jesus, São Paulo, 1931).