CONFERÊNCIA DO EXMO. SR. BISPO
A CONCEPÇÃO DE VIDA NASCIDA DO ESTADO LEIGO OPÕE À CATEQUESE BARRERAS QUASE INTRANSPONIVEIS
(continuação)
indiretamente, na consecução do fim último, razão de ser da existência humana. Nada mais racional, quando se considera a vida temporal no seu justo valor, isto é, como passagem para a Eternidade.
Ora, o que a Revolução liberal veio fazer foi precisamente negar esse princípio. Segundo o liberalismo, o homem de fato está dissociado em duas vidas. Uma terrestre, com sua finalidade própria, que é o bem, o gozo dos anos que passam: desta e só desta cuida o Estado. Só desta, e sem poder cuidar da outra, uma vez que ele é autônomo, soberano e perfeito, ordenando-se incondicionalmente ao seu fim próprio, o bem na terra. A outra, a vida eterna, porque transcende os limites do tempo, escapa à sua alçada, reduz-se a uma questão individual da consciência intima de cada qual.
Como consequência inelutável de semelhante concepção, criou o Estado, para seu uso, um ideal de cultura e bem-estar que se situa fora e, em certo sentido, acima das religiões. Melhor diríamos, fora e abaixo da Religião, pois que esta transcende a ordem temporal, e o ideal cultural do Estado agnóstico forçosamente se circunscreve aos limites desta ordem, tem as janelas cerradas para o eterno. A primeira aplicação dessa noção de cultura é a escola oficialmente laica, neutra em matéria de fé, substancialmente agnóstica ainda quando tolera, para uso privado, alguns minutos semanais de ensino religioso.
Outra consequência do agnosticismo oficial, mais geral e mais profunda, é que o Estado laico cai forçosamente no relativismo moral. Em sua peregrinação a Roma por motivo do décimo oitavo centenário do glorioso martírio dos Apóstolos São Pedro e São Paulo, Veuillot registrou a diferença entre a Florença, capital do Grão-Ducado católico da Toscana, e a Florença, capital provisória da Itália anticlerical de Vitor Emanuel II. Diz ele: "Não via Florença desde 1838. Uma das coisas que notei então foi a castidade das paredes. Hoje a política ali se alia à obscenidade... A polícia arranca cuidadosamente tais figuras irreverentes e inconstitucionais. Elas reaparecem sempre". — Porque reaparecem? Porque, sem Deus, as leis perdem a consistência, a substância que lhes outorgava o Legislador supremo, e que não lhes pode dar um governo à mercê do arbítrio humano, versátil e propenso ao servilismo às paixões.
Como substitutivo da vida honesta, bem terreno que prepara o bem eterno, o Estado liberal e laico criou o mito da bem-aventurança pelo progresso cientifico e técnico, que daria ao homem todas as comodidades da existência, a satisfação de todos os seus desejos e a ausência de todos os males. Daí o endeusamento da ciência e da técnica, a adoração entusiasta do progresso material, saudado como o redentor da humanidade.
Esse mito da bem-aventurança na terra aliciou os homens a buscarem a felicidade na satisfação plena de seus desejos sensuais, e orientou nesse sentido as atividades dos organismos sociais, que, a exemplo do Estado, também passaram a se professar leigos e agnósticos. Assim, o agnosticismo oficial criou a indústria arreligiosa, isto é, que se tornou desumana, procurando apenas o fruto econômico, gerador de bem-estar no mundo; instituiu o sindicato neutro, que se fez, à falta da sanção religiosa, fomentador de ódio, de egoísmo e de revolta na nobre classe operaria; fomentou a arte leiga, fim em si, que desconhece as normas da moralidade; favoreceu o esporte leigo, absorvente, que embrutece, e amesquinha os valores espirituais.
Compreende-se, em tais condições, o extravasamento das paixões infrenes, o anseio de sensações fortes, a dissolução, enfim, da civilização cristã, através da ação deletéria e ininterrupta de rádios, cinemas, televisões, bailes, e uma multidão de outras diversões que fomentam a desordem dos sentidos.
Não é preciso mostrar as barreiras quase intransponíveis que tal concepção da vida opõe à formação católica seria, segundo a qual a existência terrena não passa de meio austero para a vitória final na Eternidade.
Há, porém, pior. O Estado leigo amoleceu as vontades, amorteceu nos homens o desejo de lutar por amor a princípios, e obscureceu nas consciências os contornos que separam o bem do mal, o verdadeiro do falso, em virtude do relativismo em que ele necessariamente descamba. Levou assim os indivíduos a almejar acima de tudo a tranquilidade da vida, a serem partidários da paz a qualquer preço.
Tais idéias penetraram também os meios católicos. Um inquérito entre os discípulos de Cristo, os fiéis da Igreja de Deus, não causaria surpresa se verificasse alta porcentagem de asseclas dos ideais acima referidos. Daí as tentativas de conciliação entre a intransigência dos princípios católicos, firmes e eternos como a verdade, e a nova hierarquia de valores criada pelo liberalismo. Não fora estranho, diríamos que ao lado da profissão leiga, da cultura leiga, do esporte leigo, o Estado leigo favoreceu também o aparecimento da religião leiga, isto é, de uma concepção religiosa alheia inteiramente à vida pública, procurando na vida social, exatamente como as demais manifestações da atividade humana, a arte, a diversão, etc., apenas não perturbar a paz e a tranquilidade no convívio de muitas famílias no mesmo lugar.
A concretização mais apreciada, porque se apresenta com aparato histórico-científico, dessa concepção vem a ser o Estado vitalmente cristão, que se impõe, em virtude da consciência que tomou de sua função própria, a obrigação de não patrocinar religião nenhuma, deixando que as várias mensagens cristãs, por seu dinamismo intrínseco, consigam converter a sociedade pagã de hoje numa sociedade de fundo cristão. Ainda que contrário a toda a tradição firmada no "Syllabus", semelhante ideal conseguiu adeptos em altas esferas, de maneira que se tornou mais um, e grave, empecilho para a formação de uma consciência cristã reta, isto é, fundada em princípios sólidos que desafiem as intempéries criadas pelas heresias antigas e modernas.
Em meio a todo o caos criado pela exacerbação das paixões e anarquia das idéias, como retificar a consciência humana, de maneira a torná-la fiel e perseverante discípula de Jesus Cristo? Como formar católicos? Como exercer a catequese?
São os problemas que nossa Semana Catequética deverá estudar, a fim de lhes indicar as soluções. Desde já, no entanto, asseguramos que os estudos não bastam. Estamos numa época em que podemos aplicar à sociedade temporal o que da Santa Igreja dizia Santo Afonso de Ligorio, ao tempo da vacância da Sede Apostólica por morte de Clemente XIV: "Para levantar a Igreja do estado de relaxação em que, de modo geral, estão imersas todas as suas classes, não basta toda a ciência e prudência humana, senão que se requer o braço onipotente do Senhor" (mensagem pedida pelo Cardeal Castelli).
Também nós precisamos desse braço onipotente. E o meio que temos de atrair-lhe a energia benevolente é a pratica das virtudes hoje ignoradas, a penitência, a obediência, ou seja, a modificação da vontade orgulhosa e dos sentidos desordenados. Para tanto, necessitamos da graça divina, que humilde e confiantemente procuramos através do Imaculado Coração de Maria. É esse Coração Imaculado, segundo a Virgem mesma revelou a uma das videntes de Fátima, o meio de salvação que Deus Nosso Senhor oferece à sociedade ulcerada de hoje. Consagremo-nos, pois, a ele com devoção sincera, com vontade firme de tornar nossa vida mais conforme com o espírito de Nosso Senhor Jesus Cristo, e obteremos de Deus a salvação para nossa sociedade, sua conversão de pagã no espírito para cristã na alma, de acordo com o corpo cristão que se orgulha de possuir"
CONCLUSÕES DA SEMANA CATEQUÉTICA DE CAMPOS
1. Devendo a catequese visar à conformação do fiel com o Divino Modelo, o Filho de Deus feito homem, verdade e vida para os homens em demanda da Eternidade, — Jesus Cristo há de ser o centro de interesse de todas as aulas de Religião. Sejam os alunos levados a amá-Lo com todas as veras da alma, de maneira a amar ardentemente sua doutrina e seus preceitos, seus exemplos e sua vida austera e mortificada. Visará, assim, a catequese a combater as paixões desordenadas pelo pecado original, criando hábitos de virtude à imitação de Jesus Cristo, que de todas elas deu exemplo.
2. Sendo certo que toda a base da formação católica é sobrenatural, constituída pela vida da graça, sejam os alunos levados, desde logo, a amar esse dom divino que eleva suas almas e os torna filhos de Deus. Por isso, habitue-se a criança, desde cedo, a apreciar a presença de Deus em seu coração, e a viver com o intuito de agradar-Lhe em todas as suas ações, nada temendo mais do que a desgraça de cair em pecado. Será tanto mais fácil ao catequista obter tão excelente fruto, se ele mesmo for exemplo vivo de católico fervoroso e temente a Deus. A fim de favorecer a vida espiritual dos catequistas, o Conselho da Doutrina Cristã continuará realizando bimensalmente as manhãs de recolhimento.
3. Como há uma relação recíproca entre as faculdades da alma, pois o homem é um só todo, a catequese levará em conta esse fato. Não falará apenas à inteligência, senão que, à in- dispensável e importantíssima base intelectual constituída pela aceitação das verdades revela- das, juntará as exortações e os princípios de ordem moral que movam a vontade a viver de acordo com a Fé professada. Como nada se adquire sem o exercício, os catequistas, dentro das possibilidades, levem seus alunos à pratica dos atos de Religião, conduzindo-os à igreja, rezando com eles, despertando neles o desejo de pequenas mortificações voluntarias.
4. Entre as virtudes o catequista insistirá mais sobre aquelas hoje mais esquecidas e menos praticadas. Acima de todas, cuidará de levar os alunos à pratica da obediência, habituando-os a compreender que a obediência envolve uma submissão da própria vontade à vontade do legítimo superior, à imitação dAquele que não veio fazer a sua, mas a Vontade do Padre Eterno.
5. A este fim encaminhe a disciplina que se há de manter na classe, sem a qual o ensino se torna impossível. Utilize-a para inculcar aos alunos o hábito do recolhimento de espírito e da mortificação da própria vontade, que fortifica esta última contra as paixões e a torna capaz de, com a graça de Deus, perseverar no bem e na fidelidade à Santa Igreja. Como meios para obter uma disciplina real e eficiente, use as armas da oração e do bom exemplo, como a pontualidade, o preparo da aula, a dedicação generosa a tão excelsa obra de apostolado.
6. Com a execução das conclusões acima, consegue-se igualmente a prática de outras virtudes fundamentais na formação católica do aluno: a humildade e a pureza. Não obstante, não deixe o catequista de inculcar às crianças o hábito da oração, não só como meio comum de conversar com Deus, mas também porque a oração lembra a condição enferma de nossa natureza, que sem o auxílio divino é incapaz de qualquer bem ordenado e perseverante. O mesmo motivo servirá para despertar o cuidado em evitar as más companhias e os ambientes pouco favoráveis à pureza de coração.
7. Nos momentos oportunos, não deixe o catequista de exaltar a beleza da virtude que se consagra exclusivamente ao serviço de Deus e das almas, como acontece principalmente, com os Sacerdotes, Religiosos e Religiosas. Fomente assim o amor da castidade perfeita, que favorece a união com Deus e cria um ambiente propício às vocações para o apostolado, quer no século, quer no estado sacerdotal ou religioso.
8. Entre os hábitos de piedade que se hão de inculcar às crianças, além da devoção ao Santo Anjo da Guarda, a quem devem recomendar-se todos os dias, salientem-se como eminentemente formativas as devoções, ao Santíssimo, Sacramento, a Nossa Senhora e ao Santo Padre o Papa. Devem as crianças ter um amor terno e reconhecido ao Divino Prisioneiro do Sacrário, a Quem devem habituar-se a visitar com frequência. A Maria Santíssima votem uma confiança filial e sem limites, pois Ela é a Medianeira de todas as graças. Consagrem-se desde cedo ao seu Coração Imaculado, e alimentem a devoção à Virgem Santíssima com as orações que Lhe são mais agradáveis, especialmente o santo rosário, ou o terço. No Papa, vejam o Vigário de Jesus Cristo na terra, a quem devem obedecer com amor, como ao próprio Jesus Cristo.
9. Habituem-se os alunos a se comportarem como filhos de Deus em todos os atos da vida, mesmo nas diversões. De onde, leve-os o catequista a evitar as distrações que excitam a sensibilidade, dissipam o espírito e amolecem a vontade, como são as que andam muito em voga hoje em dia, o cinema, a televisão e o rádio, pois a assiduidade a estas cria uma desordem interior que dificulta a perseverança na prática da virtude. Proporcione, na medida do possível, aos alunos diversões que elevem o espírito e predisponham a alma para as ações virtuosas, uma vez que essa é a finalidade própria das distrações.
10. Procure o catequista, para sua formação, conhecer os modelos apresentados pela Igreja, ou seja, os Santos protetores dos educadores católicos. Entre eles, São João Bosco, cujo sistema preventivo tem na Igreja uma eficácia comprovada pela experiência.
11. Exortem-se os pais e educadores a manter ou criar nos lares e institutos de educação um ambiente favorável à virtude, pela ordem e seriedade neles dominantes, uma vez que a influência do ambiente é decisiva na formação do indivíduo.
12. A mesma razão obriga gravemente os pais e responsáveis pela educação das crianças a escolher cuidadosamente os colégios para seus filhos e pupilos, jamais, por motivo algum, matriculando-os naqueles que, ou são mantidos pela heresia, ou não dão segurança de uma formação católica sólida.
13. O material catequético empregado tenha por fim facilitar a compreensão das verdades ensinadas. Não deve, porém, substituir a memorização do texto do Catecismo, ao menos nas partes principais. Para que a memorização não se faça mecanicamente, explique-se bem o significado das expressões, de maneira que a criança entenda o que decora.
14. A eficiência do ensino religioso, na parte que depende do homem, se condiciona à maneira como é ele ministrado; por isso, jamais deixe o catequista de preparar sua aula. A história que vai contar seja adequada à lição, e, quanto possível, extraída das Sagradas Escrituras ou da vida dos Santos, bem como proporcionada ao auditório. O quadro que vai expor, observe-o cuidadosamente, para que possa ressaltar o que nele é mais importante e estar apto a satisfazer à curiosidade de seus ouvintes. Nesse mesmo sentido, convém levar os alunos a participar da exposição dos quadros e da preparação do material catequético. Quando se incumbem às crianças tarefas a serem executadas em casa, costumam os pais interessar-se pelo trabalho dos filhos, com aproveitamento próprio.
15. Na formação da consciência católica não perca de vista o catequista a situação atual da sociedade, mergulhada na apostasia oficial e prática com relação à Religião verdadeira, fruto do liberalismo que se implantou no mundo. E isso para que ele mesmo não se deixe contaminar por essa heresia larvada, e possa orientar seus alunos na mesma atitude de reserva para com o ambiente religioso dominante na sociedade em que vivem.
16. Especialmente nos cursos secundários, profissionais e normais, cuide-se de combater o relativismo moral e dogmático bem como o sensualismo, infelizmente muito comuns nas nossas escolas.
17. Evite-se criar nos alunos uma religião sentimental, sem base dogmática, ou a idéia de que é possível agradar a Deus sem a mortificação e o sacrifício.
18. Crie-se nos alunos a noção da verdadeira caridade para com os hereges, cismáticos e pecadores públicos, ou seja, um interesse real pela conversão e salvação dos mesmos; começando, em vista do feitio temperamental do brasileiro, excessivamente propenso à condescendência, por evitar, nas relações com eles, atitudes que, ou os confirmem nos seus erros, ou dêem aos outros a impressão de que se aprova o sentimento, comum atualmente, de que todas as religiões são boas, e de que a caridade não deve distinguir justos e pecadores.
OS CATÓLICOS INGLESES DO SÉCULO XIX
UM DOS LÍDERES DO ULTRAMONTANISMO EM TODO O MUNDO
Fernando Furquim de Almeida
Desde que Pio IX anunciou ao mundo que convocaria um Concílio Ecumênico, tiveram início as polêmicas sobre as grandes questões que nele seriam estudadas. A infalibilidade do Papa, justamente considerada a mais importante delas, passou a ser alvo de ataques cerrados, quer dos que a negavam, quer dos que, em maior número, proclamavam-na inoportuna.
A proximidade de um Concílio como que derrubara as barreiras nacionais, e a opinião pública seguia interessada os debates que opunham uns aos oros os ultramontanos e liberais de todos os países. Via-se o "Correspondent" na França replicar à "Civiltà Cattolica" de Roma, que era apoiada na Inglaterra pela "Dublin Review". "L’Univers" de Veuillot enfrentava os liberais de todo o mundo. Mons. Deschamps, na Bélgica, defendia a oportunidade da proclamação do dogma, que Mons. Dupanloup considerava inoportuna. Enfim, por toda parte não só os católicos, mas todos os homens cultos tinham o que dizer sobre o Concílio, e os assuntos religiosos passaram à primeira plana dos interesses quotidianos.
Não podia faltar à luta o grande Arcebispo de Westminster. Realmente, Mons. Manning, que já preparara o terreno impedindo que os liberais se organizassem na Inglaterra, a ela não se furtou, e entrou na liça ideológica com a publicação de uma pastoral. Nela explicava as razões teológicas que serviam de fundamento à infalibilidade do Papa, refutava os erros históricos dos alemães a respeito do assunto e mostrava a oportunidade da definição do dogma. Foi enorme o êxito desse documento. Algum tempo depois, o Vigário Apostólico de Gibraltar, sentindo a necessidade de esclarecer os seus fiéis, dada a grande confusão criada pelos liberais, reimprimiu a pastoral, limitando-se a acrescentar-lhe um prefácio em que declarava ser essa a melhor resposta aos erros de Mons. Dupanloup, Mons. Maret e Doellinger.
O entranhado amor de Mons. Manning aos princípios católicos, a energia com que os defendia, o zelo pelo bem espiritual de seus compatriotas, e a humildade serena com que pautava as suas ações fizeram com que se reconhecesse logo nele um dos baluartes do ultramontanismo. Essas virtudes estão bem retratadas numa carta que escreveu a Mons. Talbot em outra ocasião, e não podemos deixar de reproduzi-la, embora tenhamos para isso de voltar a uma época anterior à que estamos considerando no momento.
Ao morrer o Cardeal Wiseman, em 1865, o cabido de Westminster devia indicar três eclesiásticos capazes de lhe suceder. Essa lista, depois de aprovada pelos bispos ingleses, seria enviada ao Santo Padre, para servir-lhe de simples orientação para a escolha do novo arcebispo. Reunido o cabido, foram indicados Mons. Errington, antigo Coadjutor de Westminster, que Pio IX obrigara a se demitir; Mons. Clifford, Bispo de Clifton; e Mons. Grant, Bispo de Southwark. Conta-se que o Pontífice, ao receber a lista tríplice, exclamou: "Questo è un insulto al Papa". Chamou ele então a si, pessoalmente, a escolha, e prescreveu um mês de missas e orações para que Deus o inspirasse. Passado o mês, com um ato de autoridade nomeou Mons. Manning para suceder ao Cardeal.
Em Roma, antes da decisão, os adversários do líder ultramontano haviam procurado de todos os modos evitar que ele fosse eleito, e tinham até conseguido que o Cardeal Barnabo, Prefeito da "Propaganda Fide", se declarasse favorável a Mons. Clifford, candidato da aristocracia, ou a Mons. Grant, que a Rainha Vitória apoiava. Mons. Talbot, muito simpático a Mons. Manning, escreveu a um amigo comum, o Cônego Morris, explicando a situação e lamentando a oposição que se fazia à escolha de Manning. Este teve conhecimento da carta e dirigiu a Mons. Talbot as linhas admiráveis que reproduziremos em parte a seguir.
“Meu caro Mons. Talbot, o Cônego Morris me envia vossa carta, e eu agradeço sinceramente vossas boas palavras a meu respeito e vosso receio de me penalizar. Nada disso me causa o menor aborrecimento. Se dissesse que nenhuma vez essa perspectiva se apresentou a meu espírito, não diria a verdade, pois nestes últimos anos muita gente na Inglaterra e fora dela tem levantado essa hipótese em conversas benevolentes, mas inconsideradas. Afirmando, porém, que nem um só momento a julguei provável, razoável ou concebível, diria a estrita verdade.
“Deus sabe que nunca Lhe deixei ver a aparência sequer de um desejo nesse sentido. E, nestes últimos tempos, tenho me mantido tão indiferente quanto se não houvesse qualquer rumor a respeito. Creio poder assegurar que Deus sabe que vivo exclusivamente para a minha obra, e não para receber títulos ou promoções.
“O que pude realizar não depende do favor nem da aprovação de quem quer que seja, exceto de Nosso Senhor e de seu Vigário, e nada pode afetá-lo se nos conservarmos na graça de Deus. Não tenho, portanto, nenhum temor das variações possíveis do Cardeal Barnabo. Ele não pode senão me causar embaraços.
“Se o Santo Padre deseja que nossa obra seja dissolvida, ela já não existirá antes do pôr do sol. Se ele não o deseja, estou convencido de que ninguém no mundo poderá desfazê-la. Eis por que não tenho nenhum temor pelo futuro. Se desejasse minha recompensa neste mundo, não teria dito com tão pouca reserva o que acredito ser a verdade. Conscientemente ataquei protestantes, anglicanos, católicos galicanos, católicos nacionais, católicos mundanos, o governo, e essa opinião pública que, na Inglaterra, combate a Igreja e a Santa Sé todos os dias e por todos os meios. Sabeis que não é esse o melhor caminho para obter a recompensa neste mundo. E espero nele perseverar até o fim.
“Vossa bondade levou-me a dizer-vos tudo isto. Assego-vos que nada desejo para mim, e que, enquanto tiver vida e força, me vereis prosseguir decididamente pelo mesmo caminho.
“Já falamos muito de mim. Estamos realmente numa crise. Estou consternado, não por ignorar quem será o arcebispo de amanhã, mas por ver seis ou oito personagens incompetentes, que se opuseram à grande obra do Cardeal, hoje louvados e apoiados. Acho que isso é indigno, e é uma afronta à memória do Cardeal. Tenho razões para crer que o partido adversário está ocupadíssimo, encorajado pelo silêncio daqui e — devo acrescentar — pela timidez da Propaganda”.
NOVA ET VETERA
Socialismo, coisa de pagãos
J. de Azeredo Santos
O dogma revolucionário da igualdade é uma impostura desmentida não apenas por aqueles a quem incumbe a aplicação prática desses falsos princípios em que se baseia a sociedade política dos dias de hoje. Os próprios doutrinadores do igualitarismo, quando menos hipócritas ou quando mais inteligentes, não deixam de reconhecer o que há de profundamente errado e contraditório nesses pressupostos revolucionários que nos fazem lembrar a verdade do aforismo: «Chassez le naturel, il reviendra au galop».
E o natural, negado pelos sectários da Revolução igualitária, volta como que envergonhado de aparecer à luz do dia, passando a ter, portanto, uma existência clandestina. Confisquem-se os bens das classes abastadas, decrete-se a igualdade de todos os cidadãos, como fez a Revolução Francesa. Daí resultará que as desigualdades justas, negadas pelas leis emanadas das assembléias revolucionarias, serão substituídas pelas desigualdades injustas, nascidas da corrupção, ou da defraudação dessas leis hipócritas e inviáveis.
A CORRUPÇÃO PARLAMENTAR SOB O TERROR
Mais ainda, e tomando o exemplo da Revolução Francesa. Registra a história as vergonhosas negociatas que foram praticadas pelos aventureiros que então se apossaram do poder civil na terra de São Luís. Tribunos dormentes e audaciosos, como Danton, amealharam criminosa fortuna à sombra das violências demagógicas perpetradas em nome da liberdade e da igualdade. Vejam-se os estudos especializados sobre o que foi feito com os bens confiscados do Clero e da nobreza e sobre fatos escandalosos como as traficâncias realizadas pelos revolucionários com a Companhia das Índias. Albert Mathiez em «La Corruption parlamentaire sous la Terreur» (Librairie Armand Colin, Paris, 1927) nos dá a respeito edificantes esclarecimentos, apesar do facciosismo com que analisa a obra sinistra de Robespierre, o mais intransigente dos adeptos da igualdade, e por isso mesmo o mais ferrenho verdugo da liberdade dos filhos de Deus.
O socialista fabiano Bernard Shaw foi um teórico pregador da igualdade, sobretudo da igualdade de rendas. Mas não nos iludamos com a sua fácil dialética. Foi um dos mais inteligentes propagadores da tática fabiana de infiltração do movimento socialista e comunista em ambientes hostis a uma campanha revolucionaria nua e crua, através de sua transformação em «um movimento constitucional no qual os mais respeitáveis cidadãos e famílias possam alistar-se, sem comprometer a mais leve parcela de sua posição social ou espiritual» («Sixty years of Fabianism», p. 207 dos «Fabian Essays», Jubilee Edition, London, 1948).
Ora, para Bernard Shaw, a igualdade de rendas não equivalia a tomar a renda total de um país e dividi-la em partes iguais pela totalidade da população. Dessa renda global dever-se-ia retirar, antes, o suficiente para promover o bem-estar e o ambiente propício ao trabalho dos intelectuais, artistas, inventores, estadistas, sem os quais a cultura desapareceria da face da terra. O socialismo fabiano, segundo própria expressão do autor, se transformaria em uma «aristocracia democrática» (p. 218 da obra cit.).
Dir-se-á, portanto, que a nova classe dirigente do Estado socialista se baseará em privilégios, não porém decorrentes do nascimento ou de herança, mas do mérito adquirido pelo trabalho.
Em primeiro lugar, temos a ponderar que a substituição do mérito resultante de um complexo de valores, como o concebe uma sociedade orgânica, por um suposto mérito social baseado exclusivamente na capacidade, em um momento dado, para desempenhar determinada tarefa, implica em transferir para os institutos psicotécnicos a função de arquitetos artificiosos da pirâmide social, com a eliminação de importantes fatores da formação das elites, tais como a estabilidade, sem a qual a sedimentação social cederá lugar a um conglomerado caótico.
A TIRANIA SOCIALISTA
E ainda aqui nos deparamos com o problema da liberdade. O direito natural assegura aos homens a liberdade não somente de dispor honestamente de seus bens, mas também de abraçar a carreira para a qual se sentem chamados, sem atender a qualquer imposição de órgãos burocráticos criados pelo Estado coletivista.
Eis porque o socialismo é um regime liberticida por definição. «Pensam (os socialistas) que a abundância de bens que cada um há de receber nesse sistema para empregá-la a seu bel-prazer nas comodidades e necessidades da vida, facilmente compensa a diminuição da dignidade humana, à qual se chega no processo socializado da produção. Uma sociedade como a vê o socialismo não pode, por uma parte, existir nem conceber-se sem grande violência e, por outra, entroniza uma falsa licença, visto que nela não há verdadeira autoridade social: esta, com efeito, não pode basear-se nas vantagens materiais e temporais, pois procede de Deus, Criador e último fim de todas as coisas» (Pio XI na Encíclica «Quadragesimo Anno»).
Eis porque se pode afirmar ser o socialismo sinônimo de totalitarismo, e portanto de trabalho escravo, embora o Sr. Tristão de Ataide assegure aos incautos que os atentados contra a liberdade no campo econômico em nada afetam a liberdade no campo religioso e filosófico (p. 136 de «O Problema do Trabalho», Agir, 1947).
Não negamos que com o trabalho escravo se consigam coisas estupendas, inclusive a viagem à lua. Mas achamos que preferi-las à liberdade dos filhos de Deus é próprio de pagãos.
O IDEAL DE SERVIR
O Estado totalitário se substitui à Providencia Divina. Com efeito, diz São Tomás que, «como a vida dos homens não só necessita das coisas corporais, mas principalmente das espirituais, é preciso também que alguns se dediquem a estas últimas em benefício dos demais, devendo estar isentos de cuidados temporais. Mas a Divina Providencia distribui os diversos ofícios entre pessoas diferentes, segundo alguns têm mais inclinação a uns ofícios que aos outros» (Suma contra os Gent., livro 3, cap. 134).
Isto que se diz do trabalho espiritual também podemos atribuir ao trabalho intelectual. Os que se consagram ao trabalho espiritual, ou seja, ao sacerdócio e à vida religiosa, bem como os que se dedicam ao trabalho intelectual, as elites dirigentes, nos variados setores da vida social, têm o privilégio de se utilizar do trabalho manual daqueles que se situam na base da pirâmide social, vale dizer, daqueles que são incapazes desse trabalho de ordem mais elevada e dele são beneficiários, tanto é verdade que em uma sociedade constituída segundo a reta razão a regra é que, quanto mais alta a posição social de determinada pessoa, menos cuida ela de si para se dedicar ao serviço do próximo.
Em resumo, a desigualdade necessariamente existente na sociedade humana é uma fonte perene de privilégios. Onde a desigualdade justa é combatida pela Revolução, o despotismo empregado para implantar artificialmente a igualdade gera a desigualdade injusta.
E se os homens desprezam essa ordem hierárquica estabelecida por Deus para correr atrás de fábulas socialistas, nisto podemos ver o dedo ou o corpo inteiro do demônio, pai da mentira e da anarquia.