Foi mostrado a Santa Teresa o lugar que lhe estava reservado no inferno. Na gravura, retrato autêntico da Santa, por Frei Juan de la Miseria.
UM DOGMA ESQUECIDO
Paulo Corrêa de Brito Filho
Uma tendência frequente em certo tipo de católicos atuais é a de esquecer o dogma da existência e da eternidade do inferno. Essa atitude se explica, quando se trata de fiéis penetrados de mentalidade naturalista e apegados às coisas do século, e que por isso realizam acrobacias arrojadas para conciliar a doutrina da Igreja com todos os postulados da época em que vivem. Pois, dentre os numerosos dogmas católicos, o das penas infernais é, na verdade, um dos que mais irritam o mundo moderno.
O inferno passou a figurar, assim, no rol dos assuntos desagradáveis, como, por exemplo, a morte recente de um amigo ou parente, cuja menção se deve cuidadosamente evitar. Ou então, quando se aborda o tema, é para minimalizá-lo, assegurando que Deus, em sua misericórdia, não condenaria ninguém ao fogo eterno. Em sua obra "Il diavolo", um escritor que se afirmava como católico — Giovanni Papini — não defendeu a tese de que os demônios e condenados serão afinal perdoados por Deus, e que, portanto, as penas infligidas a eles são temporárias? Outros chegam mesmo a afirmar que o inferno não passa de simbolismo ou alegoria, uma vez que seria ridículo admitir, segundo nossos conceitos atuais, um lugar de suplícios terríveis, tal como imaginava a mentalidade obscurantista da Idade Média...
O TESTEMUNHO DA ESCRITURA
Em que pese aos que usam tais subterfúgios e têm tais relutâncias, esse dogma é um dos mais mencionados na Sagrada Escritura. Sem falar nas inúmeras passagens do Antigo Testamento que proclamam essa verdade, convém lembrar que Nosso Senhor, de modo explícito e impressionante, assinalou-a quinze vezes nos Evangelhos. Naquele lugar terrível, assegurou o Redentor, haverá "choro e ranger de dentes" (Mt. 8, 12); ali é a "geena do fogo inextinguível, onde o verme que os rói (aos danados) não morre, nem o fogo se apaga" (Marc. 9, 42-43).
Assim também quando o Salvador predisse as palavras que pronunciará no Juízo Final: "Apartai-vos de Mim, malditos, para o fogo eterno, que está preparado para o demônio e seus anjos" (Mt. 25, 41). E a exegese bíblica demonstra cabalmente ser impossível interpretar qualquer desses inumeráveis textos que abordam o castigo "eterno", no sentido de que este seja apenas "longo".
Na parábola do rico avarento e do pobre Lazaro (Lc. 16, 19-31), Nosso Senhor descreveu o inferno como um abismo onde os condenados são atormentados pelo fogo. Por outro lado, os réprobos, como o rico avarento, jamais poderão sair desse tártaro ou experimentar alguma mitigação em suas penas, mesmo que seja insignificante como a gota de água para refrescar a língua, implorada a Abraão...
A MEDITAÇÃO DO INFERNO E A ESPIRITUALIDADE INACIANA
Bem diversa da atitude desses católicos mornos e naturalistas é a posição dos Santos. Estavam eles profundamente convencidos da utilidade de se meditar sobre os novíssimos do homem, e especialmente sobre o horror das penas eternas. Santo Inácio insere na primeira semana dos seus Exercícios Espirituais — dedicada à consideração do nosso último fim e dos empecilhos levantados à sua consecução — uma substanciosa meditação sobre aqueles tormentos sem fim.
De acordo com seu método, o Santo propõe no primeiro prelúdio a composição do lugar, isto é, ver com a "vista da imaginação o comprimento, a largura e a profundidade do inferno". No segundo prelúdio dever-se-á pedir a graça desejada: no caso presente, o interno sentimento das penas que padecem os condenados, a fim de fugir ao pecado. Os cinco pontos da meditação correspondem às considerações sobre os castigos infligidos aos cinco sentidos dos réprobos. Assim, deve-se procurar ver, com a imaginação, "os grandes fogos, e as almas como em corpos ígneos"; ouvir "os prantos, alaridos, vozes, blasfêmias contra Cristo Nosso Senhor e contra todos os seus Santos"; sentir, "com o olfato humano, o odor de enxofre, sentina e coisas pútridas”; experimentar o gosto de "coisas amargas, como lágrimas, tristezas e o verme da consciência"; por fim, sentir com o tacto, de algum modo, como "aqueles fogos tocam e abrasam a alma".
Poderá haver uma meditação mais concreta sobre o inferno e que desperte no homem horror mais profundo, do que esta? Por isso mesmo, porque a espiritualidade inaciana insiste na meditação sobre o pecado e suas consequências — a morte, o juízo e o inferno — os adeptos de uma certa ascese "humanista" julgam-na "negativista" e impregnada de "antropocentrismo", "virtutocentrismo", "moralismo" e, talvez, mais alguns "ismos"...
Não pensavam assim os Pontífices que aprovaram e recomendaram os Exercícios Espirituais do fundador da Companhia de Jesus, especialmente Pio XI, que na Constituição Apostólica "Summorum Pontificum", confirmada mais tarde pela Encíclica "Mens Nostra", declarou Santo Inácio "padroeiro celeste de todos os Exercícios Espirituais e, por conseguinte, dos institutos, congregações e associações de qualquer gênero que se dedicam aos exercitantes e por eles trabalham".
Tampouco pensava como esses novos doutores e mestres da vida espiritual Aquele que disse: "Lembra-te dos teus novíssimos e não pecarás" (Ecli. 7, 40).
O LOCAL DESTINADO A SANTA TERESA NO INFERNO
Deus, por vezes, tem permitido a alguns Santos e pessoas piedosas ver ou sentir em vida os suplícios infernais. Tal foi, em todos os casos, a impressão deixada nessas almas, que desde então elas redobraram seus esforços para alcançar a salvação própria e do próximo.
Para Santa Teresa de Jesus, colocada no lugar do inferno que lhe estaria destinado se não se houvesse convertido, a experiência constituiu graça, insigne. A entrada do reino infernal pareceu-lhe um beco muito comprido e estreito, semelhante a um forno baixo e escuro. Em sua extremidade, havia uma concavidade na parede, onde a Santa foi metida. Deixemo-la descrever o que experimentou: "O que ali senti, porém, parece que não pode haver nem sequer princípio de encarecimento em dizer como era, nem se pode entendê-lo; mas senti um fogo tal na alma, que não posso entender como exprimir a maneira por que ele é..." Após referir-se às acerbas dores corporais que já havia sofrido nesta vida, acrescenta: "Não é ainda, pois, nada isto, comparado com o agonizar da alma, um aperto, uma sufocação, uma aflição tão sensível e um desgosto tão desesperado e aflitivo, que não sei como encarecê-lo... Estando em lugar tão pestilencial, tão sem se poder esperar consolação, não se pode sentar nem deitar, nem há lugar, porque, conquanto me tenham posto nesse como que buraco feito na parede, essas paredes, espantosas à vista, elas mesmas apertam, e tudo asfixia; não há luz e sim tudo são trevas densíssimas: não posso compreender como, não havendo luz, se vê tudo quanto há de dar pena à vista" (Autobiografia, cap. XXII).
A grande mística aproveitou bem a experiência, que lhe serviu imensamente no sentido de perder o "medo às tribulações e contradições desta vida", como também para padecê-las com resignação. Ao mesmo tempo, foi ocasião propicia para ela render graças ao Senhor, que a livraria de "males tão perpétuos e terríveis".
"ERAM COMO FAGULHAS DE UM GRANDE BRASEIRO"
Uma Religiosa espanhola da Sociedade do Sagrado Coração de Jesus, falecida em odor de santidade em 1923, foi a mensageira de um apelo do Sagrado Coração ao mundo atual. As impressionantes revelações de Sóror Josefa Menéndez acham-se reunidas num volume intitulado "Apelo ao Amor — Mensagem do Coração de Jesus ao Mundo".
Essa alma heroica e expiatória foi arrastada ao inferno não apenas uma vez, como aconteceu com Santa Teresa, mas em inúmeras ocasiões. Acentua a vidente que ali o maior sofrimento é o de não poder amar. Ouviu ela um condenado exclamar: "O pior tormento aqui é não poder amar Aquele que devemos odiar. A fome de amor nos consome, mas é tarde demais... Tu também sentirás esta mesma fome: odiar, abominar e desejar a perdição das almas... é este o nosso único desejo".
Alguns réprobos nem pelo que sofrem nas mãos, em virtude de roubos que praticaram. Gritam eles: "Onde está o que tirastes?... Malditas mãos!... Porque aquela ambição de ter o que não era meu, e que não poderia guardar... senão alguns dias?..." Outros increpam a própria língua, os próprios olhos... cada um, aquilo que lhe foi instrumento de pecado: "Bem pagas estão agora aquelas delícias que tomavas, meu corpo! ... e foste tu que quiseste! ..."
A Religiosa afirma que as almas se acusam principalmente de pecados contra a pureza, de roubos e negócios injustos. Vi muita gente do mundo cair naquele abismo — acrescenta ela — e não se pode explicar nem compreender o grito que lançavam e como rugiam assustadoramente: “Eterna maldição!... enganei-me, perdi-me... estou aqui para sempre... não há mais remédio... maldito sejas!”. Alguns culpavam tal pessoa, outros tal circunstância, cada qual amaldiçoava a ocasião da sua própria queda.
Outra descrição impressionante e recente do inferno nos é dada pela Irmã Lucia, a vidente de Fátima. Por ocasião da terceira aparição de Nossa Senhora, em 13 de julho de 1917, foi apresentado aos olhos dos terrificados pastorezinhos o abismo infernal. Escreve a Irmã Lucia, num relato composto em 1941: "Era um mar de fogo. Mergulhados nele, estavam as almas condenadas e os demônios, como se fossem carvões incandescentes, transparentes, pretos ou cor de bronze, formas humanas a esvoaçar nas chamas desse imenso incêndio, arrastadas pelas labaredas, a espalhar nuvens de fumaça, tombando de todos os lados como fagulhas de um grande braseiro. Não tinham peso nem equilíbrio, e soltavam uivos de desespero, gemidos de dor, tão horrendos que arrepiavam de medo. Os demônios se distinguiam por formas asquerosas de animais medonhos e desconhecidos, mas transparentes como carvões acesos".
A Virgem Santíssima, mostrando o pavoroso espetáculo, disse às três crianças: "Estais vendo o inferno, aonde vão as almas dos pobres pecadores. Para salvá-las, Deus deseja estabelecer no mundo a devoção ao meu Coração Imaculado".
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Será que essas revelações tão significativas — graças extraordinárias para nós e verdadeiros avisos do Céu — não são úteis para mover nossa vontade a atender o apelo de Nossa Senhora em Fátima: devoção ao seu Imaculado Coração, penitência e oração para salvar a humanidade desses tremendos castigos? Se não nos fossem úteis, Deus não as teria permitido. E se o são, como justificar a atitude de certos católicos que querem "esquecer" o inferno?
Voltaremos ao assunto.
VERDADES ESQUECIDAS
AMAR O HEREGE NEM SEMPRE É CALAR AS SUAS FALTAS
São Bernardo
De uma carta a Ildefonso, Conde de Saint-Gilles e de Toulouse, a respeito do herege Henrique:
Permiti por um momento que o desmascare e vos faça saber que espécie de individuo encontrareis nele. Trata-se de um apóstata que, depois de largar o hábito (pois havia sido monge), voltou às imundícies do mundo e da carne, como os cães que tornam a fuçar no que antes vomitaram. Como a vergonha de tão triste evento o enchia de confusão e o fazia corar, não ousou permanecer em companhia de seus parentes e nem sequer viver em sua terra, porque talvez não lho consentissem. Meteu-se, pois, a andar pelo mundo afora, sem rumo, inteiramente ao acaso, como quem não tem pátria nem lar. Começou assim a levar vida de mendigo, pedindo o pão necessário para seu sustento; e depois, pouco a pouco, como tinha seus estudos, sendo literato e humanista, pensou que podia ganhar alguma coisinha com o Evangelho. Pôs-se então a vender a palavra de Deus, pregando para encher o estomago. Se desse modo conseguia tirar da gente simples um pouco mais do que lhe bastava para alimentar-se, ou se alguma boa senhora o presenteava com umas tantas moedas, gastava no jogo as sobras, e às vezes em coisas bem mais torpes e desonestas. Porque é certo que frequentemente o insigne pregador, depois de haver conquistado durante o dia o aplauso das multidões, foi encontrado à noite com meretrizes e até com mulheres casadas. Podeis informar-vos, nobre Senhor, se vos apraz, de como teve ele que sair de Lausanne, do Mans, de Poitiers e de Bordeaux.
Pois bem: podeis esperar bons frutos de árvore tão ruim? Não os dará, asseguro-o eu com as próprias palavras do Senhor, porque de árvore assim não se pode colher nada de bom. Já o mau cheiro da infecciosa semeadura que ele fez em vossos Estados se espalha por todo o resto do mundo, pois «a árvore má não pode produzir bons frutos», como nos ensina o Senhor (Mt. 7, 18).
Talvez possamos extirpar do campo do Senhor esta planta venenosa, enquanto ela ainda é nova, — não com a força de minha mão, fraca e débil, mas com a assistência dos santos Bispos que acompanho e com a ajuda de vosso braço poderoso. — («Obras Compl. del Doctor Melifl. San Bernardo, Ab. de Claraval» — trad. Pe. Jaime Pons, S. J. — Rafael Casulleras Librero-Editor, Barcelona, 1929 — vol. V, «Epistolario», p. 503, carta CCXLI).