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Calice Domini Biberunt

O “SONHO” DE SÃO JERÔNIMO

Fernando Furquim de Almeida

Depois de expiar no deserto os seus pecados, São Jerônimo dedicou-se ao estudo do hebraico para melhor compreender as Sagradas Escrituras, lendo-as no original. Até então, os valores da civilização romana tinham sido os ideais de sua existência, e a cultura pagã do mundo antigo guiara a formação de sua inteligência. Precisava, pois, fazer violência a si mesmo para destruir seus apegos e reformar completamente a sua vida intelectual. De fato, em carta ao monge Rustico, relata as dificuldades que encontrou e confessa como lhe foi penoso acostumar-se com a leitura da Bíblia. O hebraico, sobretudo, o horrorizava: "Abandonando os engenhosos preceitos de Quintiliano, escreve ele, e os rios de eloquência que derrama Cícero, comecei a aprender o alfabeto hebraico e a estudar essa língua de palavras rudes e sibilantes. Quantos esforços tive que fazer, quantas dificuldades enfrentei, quantas vezes interrompi, desesperado, o estudo que um desejo obstinado de saber me fazia, em seguida, reiniciar, só eu posso atestar, eu que tanto sofri, e comigo os que partilharam de minha vida. Dou graças a Deus, no entanto, pois de semente tão amarga recolho agora doces frutos".

ARRASTADO AO TRIBUNAL DE DEUS

Apesar de sua obstinação, apesar de sua força de vontade, o nosso Santo não conseguia se libertar inteiramente do apego à cultura pagã, até que um dia, estando gravemente enfermo, Nosso Senhor fez com que compreendesse melhor o que dele desejava. Na belíssima carta que enviou à virgem Eustoquia para exortá-la a tudo abandonar e se dedicar exclusivamente a Deus, ele revela o que se passou naquele dia: "Vou te contar minha infeliz história".

"Há muito tempo já, tendo abandonado casa, pai e mãe, irmã, parentes e, o que é mais difícil, o hábito da mesa farta, pelo Reino dos Céus, dirigia-me eu para Jerusalém a fim de militar por Cristo. Não conseguira, no entanto, privar-me da biblioteca que formara em Roma com tanta aplicação e sacrifício. Infeliz que era! Antes de ler Cícero, me entregava ao jejum. Velava noites inteiras, derramando lágrimas que a lembrança dos meus antigos pecados me arrancava do fundo das entranhas. Depois, retomava o meu Plauto! Se, caindo em mim, começava a leitura de um Profeta, essa linguagem inculta me horrorizava. Meus olhos cegos impediam-me de ver a luz. E não eram meus olhos que eu culpava, era o sol!

"A antiga serpente se divertia assim comigo, quando, na Quaresma, a febre se insinua até o mais profundo do meu ser, invade o meu corpo extenuado, não lhe dando nenhum repouso e — pormenor inacreditável — meus pobres membros são de tal modo devorados por ela que só os ossos me sustentavam. Os meus funerais estavam sendo preparados, porque, em todo o meu corpo já frio, a vida, a respiração e o calor não palpitavam senão num canto ainda tépido de meu peito. De repente, tive um êxtase espiritual. Eis o tribunal do Juiz. A ele me arrastam! A luz ambiente era tão deslumbrante que, do solo onde jazia, não ousava levantar os olhos para o alto. Pergunta-se qual seja a minha condição: Sou cristão, respondi. Mentes, diz o Julgador, és um ciceroniano e não um cristão, porque onde está o teu tesouro, ai está o teu coração (cf. Luc. 12, 34).

"Emudeci e, tendo sido ordenado que me flagelassem, minha consciência me torturava ainda mais do que as chicotadas. Repetia este versículo (SI. 6, 6): Mas, no inferno, quem Vos louvará? Comecei, então, a me lamentar e a bradar: Piedade para mim, Senhor, piedade para mim! Esse apelo ecoava entre os golpes da chibata. Prostrados aos pés do Presidente, os assistentes lhe suplicavam que perdoasse a minha juventude e permitisse que meus erros fizessem penitencia; sofreria depois o suplício merecido se voltasse algum dia à leitura dos autores pagãos. Quanto a mim, acuado e posto em uma tão crítica situação, estava pronto a prometer muito mais. Comecei a jurar, a tomar seu nome como testemunha: Senhor, dizia, se tornar a possuir obras profanas ou se as ler novamente, será como se Vos renegasse! Tendo pronunciado esse juramento, soltaram-me, e voltei de novo para a terra. Com surpresa geral, abri os olhos. Estavam tão cheio de lágrimas, que atestavam a minha dor mesmo aos mais incrédulos. Não tinha sido sono, nem um desses sonhos que nos iludem muitas vezes. Testemunha o tribunal diante do qual compareci, testemunha o julgamento tão terrível de que fui réu — possa eu nunca mais sofrê-lo — tinha os ombros machucados, e senti as chagas ao acordar. Desde então, li os livros divinos com mais cuidado do que lera outrora as obras dos mortais".

DEZESSEIS SÉCULOS DE LUTA

Este êxtase é o celebre "sonho" de São Jerônimo. Muitos autores têm posto em dúvida sua autenticidade, que, todavia, é inegável, sem prejuízo de uma possível amplificação literária num ou noutro ponto da narração. Outros pretendem que o Santo não se manteve fiel aos seus propósitos, pois nunca renunciou inteiramente às citações dos clássicos. Aliás, São Jerônimo, até hoje combatido, é estudado e analisado com o máximo rigor. Pode-se dizer que ele ainda luta por Nosso Senhor Jesus Cristo, apesar dos dezesseis séculos que se passaram depois de ter abandonado a terra. Os seus defensores lembram aos adversários, a propósito do "sonho", toda a dedicação e o amor com que o antigo ciceroniano se consagrou a traduzir as Sagradas Escrituras, e as inúmeras passagens de suas obras que revelam o cuidado com que usava seu vasto patrimônio de cultura gentílica. Entre elas a mais interessante nos parece a que contém a explicação da parábola do filho pródigo, escrita a pedido do Papa São Damaso. Depois de esclarecer que as bolotas destinadas aos porcos, de que se alimentava o jovem que abandonara a casa paterna, podem ser interpretadas como significando "os cantos dos poetas, a filosofia profana e a pompa verbal dos retóricos", acrescenta: "Essa sabedoria está descrita no Deuteronômio sob a figura da mulher cativa (cf. Deut. 21, 10-13). A voz de Deus ordena que, se um israelita quiser tomá-la por esposa, raspe-lhe a cabeça, corte-lhe as unhas e depile-a completamente. Assim purificada, ela poderá se entregar aos ósculos do vencedor. Se tomarmos essas prescrições no sentido literal, não serão ridículas? E, no entanto, é o que costumamos fazer quando lemos os filósofos, quando temos nas mãos os livros da sabedoria secular. Se neles descobrimos alguma coisa útil, transportamo-la para o nosso dogma; mas o que é supérfluo — os ídolos, o amor, o cuidado das coisas profanas — nós o raspamos, votamos à calvície; como as unhas, cortamo-la com uma lâmina aguçada".

UMA CONVERSÃO SINCERA

Um dos comentadores do grande Doutor pergunta se terão lido esse trecho os que se recusam a reconhecer a fidelidade de São Jerônimo à promessa feita no "sonho". Com esse autor podemos afirmar que "pela violência das expressões se sente que o ciceroniano abjurou de todo as suas antigas inclinações".


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

Ainda dentro da solene atmosfera do I Sínodo de sua Diocese, o Santo Padre João XXIII quis falar, no dia 29 de janeiro, às Religiosas de Roma, reunidas na Igreja de Santo Inácio.

Ressaltamos aqui alguns tópicos do discurso de Sua Santidade:

• Jardim perfumado, pérola escondida, reserva providencial de energias sobrenaturais

"Na venerável cidade de Roma, florescente, em todos os tempos, em almas santas e virginais consagradas a Deus, vós representais o jardim perfumado, a pérola preciosa e escondida, a reserva providencial de energias sobrenaturais; ao ministério sacerdotal ofereceis um auxilio generoso e desinteressado, acima de tudo pela oração, e depois com as várias formas de vossas obras, aprovadas pela Igreja.

... A Santa Igreja do Senhor, com efeito, Se exala e embeleza com a nobre coroa das virgens consagradas à vida de oração e sacrifício e ao exercício das catorze obras de misericórdia.

• As Religiosas de clausura têm o primado do serviço de Deus

... Esta maravilhosa floração de virgens, que oferecem em auxilio à Hierarquia os dotes característicos de que Deus enriqueceu a mulher de modo eminente, é de fato digna de consideração, respeito e honra, por parte de todo o mundo. Não cessamos de repeti-lo.

É nessa luz que se situa esta reunião, muito oportunamente inserida nas manifestações do Sínodo Romano. Daqui Nos é grato, em primeiro lugar, enviar uma saudação particularmente paternal às Nossas filhas diletas que a vida de clausura retém nos diversos conventos de Roma e do mundo. Às Freiras de clausura cabe, realmente, o primado do serviço de Deus, o qual consiste na oração incessante, no desapego absoluto de tudo e de todos, no amor do sacrifício, na expiação pelos pecados do mundo.

A elas, que sentimos presentes convosco nas consoladoras certezas da comunhão dos Santos, vai em primeiro lugar Nosso pensamento de bênçãos e de bons auspícios.

• "Proclamamos, face ao mundo, o altíssimo valor e gloria da virgindade"

... A Imitação de Cristo fala... de um pleno desapego das criaturas, usando uma frase forte e incisiva: "beatus ille homo, qui... omnibus creaturis licentiam abeundi tribuit”: bem-aventurado aquele que — para usar uma expressão moderna — licencia todas as criaturas, apresenta-lhes uma despedida decisiva. Esta é a primeira característica da vocação religiosa: um adeus pronto e cheio de alegria às coisas do mundo, para consagrar-se a Deus na perfeita virgindade do coração.

... Em meio a essas diversas modalidades (de ambientes em que ocorre a vocação para a vida religiosa), há todavia uma nota inconfundível que, através de todas as variedades, constitui a unidade das almas consagradas: é precisamente a virgindade. Desejaríamos nesta ocasião proclamar diante de vós, mas especialmente face ao mundo, o altíssimo valor e a gloria da virgindade.

• Deus concede tudo o que Lhe pede uma alma virginal

... Como são belas as palavras do Cura d'Ars, São João Maria Vianney, sobre a prece da alma virginal! "Deus contempla com amor — diz ele —uma alma pura, e lhe concede tudo o que ela pede. Como poderia resistir a uma alma que vive só para Ele e nEle! Ela O procura, e Deus se lhe mostra; ela O chama, e Deus responde; ela se torna toda identificada com Ele. Ela está junto de Deus como uma criança perto de sua mãe" (A. Monnin, "O Espírito do Cura d'Ars", Roma, 1956, pp. 57-58).

• O amor da Cruz, selo da virgindade

... Seja a Cruz o selo de vossa virgindade, o manancial de vossa fortaleza, a inspiração de vossas orações e o segredo de vossa paz, no antegozo das alegrias do Céu, de que vossa vida na terra é símbolo e lembrança. Vosso amor da Cruz fará, realmente, com que o oferecimento que de vós mesmas e de tudo o que vos era mais caro fizestes ao Senhor, possa espalhar perfume suave e agradável (cf. Fil. 4. 18) na Santa Igreja de Deus".


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

A tradição cristã e a fermentação revolucionária na expressão fisionômica

Plinio Corrêa de Oliveira

Não se pode considerar a figura de nosso primeiro clichê sem sentir um respeito profundo. Trata-se de uma velha mãe de família, com todo o aspecto de quem passou a existência no ambiente digno e santo do lar. A dedicação aos seus, a temperança, um frescor de alma que lhe permite saborear as castas alegrias da vida doméstica, e participar sem tédio nem preguiça dos trabalhos inerentes a esta: tudo enfim, nessa humilde fiandeira da Sardenha, incute acatamento sincero e simpatia cordial.

Quem a considera percebe, aliás, que ela tem o hábito de viver cercada do respeito geral, e que apesar de sua maternal doçura tem bastante consciência de sua dignidade para se impor a quem lhe quiser faltar com a devida consideração.

Entretanto, ela está contente com seu estado: não quer ser, nem parecer, culta, nobre ou rica. É que, aceitando embora a hierarquia social, está cônscia de que tem a dignidade essencial de criatura humana, de filha de Deus remida por Nosso Senhor Jesus Cristo. E com isto se satisfaz sabiamente, segundo a condição em que a Providência a fez nascer.

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No museu de Belas Artes de Lyon se conserva este quadro de David: uma "maraîchère", isto é, uma plantadora de legumes em terras alagadiças. É o tipo clássico das megeras que atuaram na Revolução Francesa.

Enquanto a fiandeira sarda é toda afeto, dignidade, temperança e paz, esta virago é toda ódio, revolta, destempero e agitação. Seu ambiente normal não é o lar, mas a rua. Seu olhar parece crepitante de chamas interiores, seus lábios cheios de amargor acabam de proferir uma injúria. E outra já vai aflorando neles. Não se diria que seus braços foram feitos para embalar crianças, mas para brandir nas arruaças algum sabre velho ou um pé de cadeira.

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Duas mulheres que criam em torno de si ambientes diversos, praticam costumes opostos, representam duas civilizações irreconciliáveis entre si: a civilização cristã e a civilização revolucionária neopagã... na medida em que esta possa ser chamada civilização.

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A criatura humana é o que há de mais típico em matéria de "Ambientes, costumes, civilizações". Entretanto, é por vezes mais difícil interpretar a significação de uma fisionomia do que a de um móvel ou um prédio.

Gostaríamos, pois, que nos escrevessem os leitores que neste ponto tenham particular dificuldade.