Senhora da Piedade
Gil Vicente
Alto Deus maravilhoso,
Que o mundo visitaste
Em carne humana,
Neste vale temeroso
E lacrimoso
Tua gloria nos mostraste
Soberana;
E teu Filho delicado,
Mimoso da Divindade
E natureza,
Per todas partes chagado,
E mui sangrado,
Pela nossa enfermidade
E vil fraqueza.
Ó Imperador celeste,
Deus alto mui poderoso
Essencial,
Que polo homem que fizeste,
Ofereceste
O teu estado glorioso
A ser mortal!
E tua filha, madre, esposa,
Horta nobre, frol dos Céus,
Virgem Maria,
Mansa pomba gloriosa;
Ó quão chorosa
Quando o seu Deus padecia!
Ó lagrimas preciosas,
De virginal coração
Estiladas!
Correntes das dores vossas
C'os olhos da perfeição
Derramadas!
Quem uma só poderá haver,
Vira claramente nela
Aquela dor,
Aquela pena e padecer,
Com que choraveis, donzela,
Vosso amor.
E quando Vós amortecida,
Se lagrimas Vos faltavam,
Não faltava
A vosso Filho e vossa vida
Chorar as que Lhe ficavam
De quando orava.
Porque muito mais sentia
Polos seus padecimentos
Ver-vos tal;
Mais que quanto padecia,
Lhe doía,
E dobrava seus tormentos,
Vosso mal.
Se se podesse dizer,
Se se podesse rezar
Tanta dor;
Se se podesse fazer
Podermos ver
Qual estaveis ao cravar
Do Redentor!
Ó fermosa face bela,
Ó resplandor divinal,
Que sentistes,
Quando a cruz se pôs à vela,
E posto nela
O Filho celestial
Que gerastes!
Vendo por cima da gente
Assomar vosso conforto
Tão chagado,
Cravado tão cruelmente,
E Vós presente,
Vendo-Vos ser mãe do morto,
E justiçado!
Ó rainha delicada,
Santidade escurecida,
Quem não chora
Em ver morta debruçada
A avogada,
A força da nossa vida!