A TEOLOGIA
NÃO-EUCLIDIANA
E O POVO ÓRFÃO
Pelo noticiário dos jornais percebe-se que nas duas primeiras fases deste Sínodo universal conhecido como Vaticano II, surgiram referências à existência de várias correntes de opinião na Santa Igreja. Entre algumas delas nota-se um nexo curioso consistente nisto que são professadas pelas mesmas pessoas. Assim, aqueles que acusam a Igreja atual de um "triunfalismo" oriundo da pompa e convicção com que se apresentam os seus atos oficiais, são os mesmos que pleiteiam uma "Igreja dos pobres", ou seja, ausente de tudo quanto possa parecer supérfluo e precioso, e igualmente são os mesmos que se mostram partidários de uma liberdade religiosa que não passa de uma ratificação do laicismo dos Estados.
A propósito das consequências de semelhantes atitudes, o Revmo. Cônego V. A. Berto, do Clero da Bretanha, teceu oportunas considerações em bem lançado artigo do número de abril da revista "Itinéraires", editada em Paris.
Desse artigo, com a devida venha, aqui apresentamos aos nossos leitores os tópicos que nos parecem essenciais. Seu título é "A teologia não-euclidiana e o povo órfão". Os subtítulos são desta redação.
Depois de considerar que a teologia é uma ciência eminentemente real, que não pode perder contato com a realidade viva, e que por isso deverá ser substancialmente a mesma, resumida popularmente no catecismo dos humildes ou exposta nos grandes tratados, o Autor critica o surgimento de uma teologia nova, rebuscada e inovadora, que seria como a geometria não-euclidiana, criada nos espaços mas incapaz de orientar a fabricação de uma charrua, com que o campônio produz o alimento até mesmo dos geômetras não-euclidianos.
QUE SABEM ELES DOS POBRES?
Sobre o "triunfalismo" apresentado pelos arautos dessa teologia "não-euclidiana" como característica da teologia tradicional romana, e que seria contrário à "Igreja dos pobres", o artigo diz o seguinte:
"Eles nos censuram nosso "triunfalismo", expressão por eles inventada. E dizem que querem fazer "a Igreja dos pobres"! Que sabem eles dos pobres? Sabem se os pobres têm ou não necessidade do que eles chamam nosso "triunfalismo", esses homens de gabinete e de universidade, de livros e de revistas, de conferencias e congressos?"
E mais adiante:
"Eles decidiram que a Igreja será "a Igreja dos pobres" quando o Papa não aparecer mais sobre a sedia gestatória, quando os Bispos não assumirem mais ornamentos preciosos, quando a Missa for celebrada em língua vulgar, quando o canto gregoriano for relegado ao museu-discoteca, e coisas deste teor: isto é, quando os pobres ficarem privados da única beleza que lhes é gratuitamente acessível, que sabe ser-lhes acessível, que sabe ser-lhes amiga sem nada perder de sua transcendência, e que é a beleza litúrgica; quando as cerimônias da Igreja, tornadas vulgares, triviais, não lhes evocarem mais nada da gloria do Céu, não mais os transportarem a um mundo mais alto, não mais os elevarem acima deles mesmos; quando a Igreja, enfim, não tiver mais do que pão para dar-lhes, — e Jesus disse que o homem não vive somente de pão.
Quem lhes disse que os pobres não se importam com a beleza? Quem lhes disse que o respeito devido aos pobres não pede que se lhes proponha uma Religião bela, como se lhes propõe uma Religião verdadeira? Quem os faz tão insolentes para com os pobres, que chegam a lhes recusar o senso do sagrado? Quem lhes disse que os pobres não gostam de ver um Bispo presidir a uma procissão com o báculo na mão e a mitra na cabeça, e aproximar-se deles para abençoar-lhes os filhos? Foram acaso os pobres que clamaram contra o desperdício quando Maria Madalena derramou o nardo precioso sobre a cabeça de Jesus, até quebrar o vaso para nada poupar do perfume? Quem, sobretudo, lhes disse que, despojados os Bispos dos sinais litúrgicos de sua autoridade, tornar-se-ão os Padres mais evangelicamente devotados aos pobres? Quem lhes disse que as honras externas prestadas aos Bispos não são uma garantia sem a qual a evangelização dos pobres não teria, aos olhos dos próprios pobres, nenhuma característica de autenticidade, sem a qual a evangelização dos humildes não seria ela mesma suficientemente humilde, porquanto, uma vez destituída do caráter de missão recebida de uma autoridade visivelmente superior, ela se apresenta com todos os sinais externos de uma pregação particular?
Destroi-se, saqueia-se, devasta-se, sem o menor cuidado para com estas realidades secularmente provadas; preocupar-se com elas seria "triunfalismo", e eles decidiram que o "triunfalismo" é o pior dos crimes, indiscernível que é do "constantinismo", o qual consiste em reclamar para a Igreja, diante do poder secular, um certo reconhecimento de seus direitos. Como aquilo que era um dever perfeitamente claro, incansavelmente inculcado, se tornou um crime? Acusai o espírito de sistema, e dizei que esse é um sistema perfeitamente ligado em si, coerente como uma geometria, ao qual só falta ser real, mas que é no momento, especialmente na França, o único que tem direito de ser ouvido, o único publicamente exposto.
Nós vimos seus começos, há uns trinta anos, quando, por uma derrubada de valores sem precedente, procurou-se, primeiro quase secretamente, depois com uma audácia ruidosa, tornar para os cristãos um dever "apostólico" a frequência de bailes e espetáculos que toda a tradição da Igreja, absolutamente unânime, tinha até então considerado como manifestações do espírito do mundo, ao qual o espírito do Evangelho deveria inspirar aversão. Tal foi o primeiro murmúrio dos clamores que hoje proclamam na Igreja a "revolução de outubro".
CONSEQUÊNCIAS DA "LAICIDADE"
Nisso, que ganharão os pobres? Infelizes! Eles nisso perderão tudo. Se há nisso tudo uma evidencia cruel, é a do pouco que poderemos fazer por eles num regime de "laicidade". Quando as leis, as instituições, os costumes públicos perderem toda referência à Igreja, quando tudo se fizer no Estado sob a condição preliminar de uma ignorância voluntaria e universal do Cristianismo, quando a Igreja ficar reduzida à condição de uma associação privada, a primeira consequência será que os pobres não serão mais evangelizados. Nenhuma necessidade, para tanto, de que o Estado seja de um laicismo hostil e agressivo. As classes melhor providas podem fugir, em parte ao menos, e notadamente na educação dos filhos, à formidável pressão social que resultará da simples descristianização do Estado: os pobres não o poderão. Eles têm necessidade de assistência, e esta será "leiga"; precisam de hospitais, e estes serão "leigos"; precisam de escolas para seus filhos, e estas serão "leigas"; se eles são pobres a ponto de não terem com que enterrar os seus mortos, obterão exéquias gratuitas, mas "leigas", porque o Estado que pagará o caixão e o coveiro, não pagará a espórtula de uma encomendação. Os pobres, e somente eles, ficarão aprisionados sem remédio na "laicidade" do Estado; somente eles ficarão condenados sem remédio a respirar exclusivamente um clima de indiferença religiosa gerada pela "laicidade" do Estado. Arrancaremos uma criança a esta asfixia da alma; deixaremos cem que não serão nunca evangelizadas, que passarão de uma escola "leiga" a um centro de aprendizagem profissional "leigo", de um centro de aprendizagem "leigo" a um movimento de juventude "leigo", cuja vida, enfim, será pelo Estado "leigo" mantida inexoravelmente à parte de toda influência cristã, de maneira que será um milagre da graça se uma ou outra, forçando as grades da jaula, abrir as azas de seu Batismo para reencontrar o clima de seu segundo nascimento e chegar até à Igreja, sua Mãe, que lhe estenderá os braços.
QUE SERIA COM O LAICISMO OFICIALIZADO?
Já há muito tempo que tal é a sorte dos pobres em regime "leigo", mas, até agora, a teologia católica ensinava que isso era um mal, uma iniquidade, uma desordem atroz da qual os pequenos deste mundo eram a vítima sem defesa, uma desordem cuja substituição por uma ordem cristã deveria ser objeto de um trabalho indefesso, sem tréguas. Agora ela ensina, ao menos a que tem o privilégio exclusivo da palavra, que esta desordem é ordem. Se a evangelização dos pobres se tornar por isso ainda mais difícil, pior para eles: o sistema não o reconhecerá, porque o sistema não pode errar.
A este mesmo espírito de sistema levado ao cúmulo é imputável o que vemos, o que não seriamos capazes de crer, isto é, o que teologia alguma jamais teria ousado empreender e que a teologia não-euclidiana empreendeu: afogar a ideia simples, rica, popular, da maternidade universal da Santíssima Virgem na noção difícil, inacessível, glacial, de seu caráter eclesiotípico; afogar a ideia simples, rica, popular, da universal paternidade pontifícia na noção alambicada, quinta-essenciada, de "chefe do colégio pontifício".
Assim, esta teologia tão irrealmente pastoral trabalha para tornar o povo cristão órfão de sua Mãe, a Santíssima Virgem, de seu Pai, o Papa. Ela não passa de uma impostura que faz uma e outro ausentes do coração desse povo".
VERBA TUA MANENT IN AETERNUM
• Despertar o senso do pecado, que a mentalidade moderna está em vias de perder
PAULO VI: Será este o favor mais precioso que pediremos por vós ao Senhor: que sejais cristãos vivos, que vivem da graça de Deus, isto é, santos e capazes de fazer de cada experiência da vida temporal, a alegria e a dor, a fadiga e o amor, a reflexão interior da consciência e o dialogo exterior com o próximo, de fazer de tudo uma ocasião, um estimulante que impele a mais bondade, a uma santidade maior.
Para consegui-lo será conveniente despertar em nós o senso moral, o senso do bem e do mal, isto é, o senso do pecado, que a mentalidade moderna, privada da fé em Deus, está em vias de perder lamentavelmente.
(Exortação aos fiéis, na Audiência Geral de 30 de outubro de 1963).
• Destacar-se do passado, causa de inquietação, ansiedade e instabilidade
PAULO VI: Temos o hábito de olhar para adiante de nós, desprezando muitas vezes os méritos de ontem; somos pouco inclinados à gratidão, ao recordar, à coesão com nosso passado, ao respeito, à fidelidade devida à história, às ações que se sucedem de uma geração para outra. É muito frequente verificar que o comum das pessoas se destaca do tempo passado, o que é causa de inquietação, ansiedade e instabilidade.
Um povo sadio, um povo cristão adere muito mais aos que nos precederam. Ele visa à lógica dos acontecimentos dos quais deve extrair sua própria experiência, ao mesmo tempo que não hesita em face do tributo necessário de reconhecimento e de justa avaliação.
(Alocução por ocasião da Missa de Finados na Basílica Patriarcal de São Lourenço, em 2 de novembro de 1963 — conforme resumo do "Osservatore Romano").
• Profundo pessimismo entristece o mundo que perdeu a visão confortadora da Virgem
PAULO VI: Enquanto os homens não tinham a Virgem, teriam podido desesperar, pois nunca por si mesmos, sozinhos, teriam chegado a alcançar a virtude, a seguir o caminho do bem. A Virgem, pelo contrário, gratia plena, isto é, rica de misericórdia, cumulada com a ação de Deus sobre nós, prova-nos que para nós também há esperança, para nós também possibilidades, e que, se quisermos, podemos. O profundo pessimismo que entristece a consciência do mundo, precisamente porque a fé tornou-se tíbia e o mundo perdeu a visão tonificante e confortadora da Virgem, não deve implantar-se em nós. Jamais devemos deixar de crer na possibilidade de ser bons, de tornar-nos melhores, de estar, mesmo em meio a este mundo tão deteriorado pelo vício e pela corrupção, ao abrigo das faltas e das quedas. É possível ser puro, virtuoso, fiel; numa palavra, é possível imitar a Virgem.
(Discurso na Basílica dos Santos Apóstolos, em 7 de dezembro de 1963 — conforme resumo do "Osservatore Romano").
• Os bons costumes tornam mais viva a inteligência do homem
LEÃO XIII: O enfraquecimento da fé nas verdades divinas não é obra unicamente do orgulho de que falamos mais acima; ele se deve também à depravação do coração. Pois, se é verdade, como se pode verificar pela experiência, que tanto melhores são os costumes de um homem, tanto mais viva é a sua inteligência, pelo contrário os prazeres carnais tiram ao espírito o seu gume: a prudência pagã o reconheceu e a Sabedoria divina o predisse (Sab. 1, 4). Mas é sobretudo na ordem das coisas divinas que as volúpias carnais obscurecem a luz da fé, e mesmo, por uma justa reprovação de Deus, a extinguem. Em nossos dias, o desejo insaciável de prazeres carnais arde em todos os homens que, mesmo desde a mais tenra juventude, sentem os efeitos deste contagio mórbido. O remédio maravilhoso para um mal tão terrível se encontra na Eucaristia. Seu primeiro efeito consiste em reprimir a paixão, aumentando a caridade. Santo Agostinho disse com efeito: "O alimento desta (da caridade) é o esmorecimento das paixões, e sua perfeição é a ausência de paixão" ("De diversis quaestionibus" LXXXIII, quaest. XXXVI).
(Encíclica "Mirae Caritatis", de 28 de maio de 1902).
• Em vão espera salvar-se aquele que não tem fé
LEÃO XIII: A força criadora e conservadora das virtudes salvíficas se esvai, portanto, se a regra dos costumes for separada da Fé divina; e é verdadeiramente despojar o homem de sua mais alta dignidade, e fazê-lo cair perniciosamente da vida sobrenatural para a vida natural, querer dirigir os costumes para o honesto pelo só magistério da razão.
Não que o homem não possa, pela reta razão, perceber e observar certo número de preceitos naturais; mas, ainda que os percebesse e observasse inviolavelmente durante toda a sua vida — o que é impossível sem a graça do Redentor — em vão, entretanto, esperaria sua salvação se não tivesse fé. "Se alguém não permanecer em Mim, será atirado fora como um sarmento; murchará, será colhido e atirado ao fogo, e queimará" (Jo. 15, 6). "O que não crer será condenado" (Marc. 16, 16).
(Encíclica "Tametsi futura prospicientibus", de 1.° de novembro de 1900).
• As controvérsias de fé e costumes não podem ser resolvidas de modo irrefragável por um Concílio nacional
PIO VI: A proposição (do Sínodo de Pistoia) que enuncia que basta ter qualquer conhecimento da história eclesiástica para que cada qual deva confessar que a convocação do Concilio nacional é uma das vias canônicas para pôr fim, nas Igrejas das respectivas nações, às controvérsias que se referem à Religião, entendida no sentido de que as controvérsias em matéria de fé e de costumes, surgidas numa Igreja qualquer, podem terminar com juízo irrefragável por meio de um Concilio nacional — como se a entrância em matéria de fé e costumes competisse ao Concílio nacional — é cismática e herética.
(Constituição "Auctorem Fidei", de 28 agosto de 1794).
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
Que reacionário!...
Plinio Corrêa de Oliveira
Um dos vezos do chamado esquerdismo católico consiste em tratar da questão social, da justiça social, do serviço social como se fossem unicamente coisas de nossos dias. Os séculos que nos precederam teriam, pois, desconhecido por inteiro os deveres de justiça e de caridade em relação aos pobres, etc., etc.
Esta concepção é totalmente desacreditada pelos estudos históricos sérios, de nossa época como de qualquer outra. Mas as mentiras têm vida dura. E em consequência esta impostura revolucionária continua a circular.
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Correm tranquilas as águas do Regnitz, na nobre cidade de Bamberg, antiga residência de Soberanos e Bispos. Nelas se refletem as fachadas a um tempo sérias e risonhas, destas velhas casas, quase todas com quatro pavimentos.
Primorosamente bem cuidadas, adornadas com alegre vegetação, elas deixam transparecer um teor de vida sem pretensões, mas estável e farto, uma vida de família intensa, íntima e tranquila. Em suma, tudo aí se apresenta de modo a atrair vivamente o trabalhador contemporâneo. E pudera, à vista de um tão apetecível conforto burguês!
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Entretanto, não se trata de habitações de magistrados, professores, ou funcionários. Trata-se de... velhas residências de pescadores!
Que diferença entre esta graça, esta placidez, esta harmonia, e a vulgaridade, a sordície, os mil ruídos de tanto subúrbio de babilônias modernas.
E assim, quantos outros exemplos poderíamos mencionar.
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Mas de pouco adiantaria fazê-lo. Vista a foto, lidos os comentários, nosso "esquerdista católico" não argumentaria. Ele se limitaria ao seu desabafo habitual: que reacionário é o homem que escreveu isto!
E depois continuaria a repetir a mesma cantilena contra o passado.