P.06-07

Conclusão da página 2

A Vendéia de 1793

uma terna e verdadeira devoção à Santíssima Virgem" (n° 203).

Estamos em uma época em que infelizmente não faltam, como ao tempo do Padre de Montfort, filhos da Igreja que sustentam ser a devoção à Santíssima Virgem, e o recurso à sua mediação como onipotência suplicante, um entrave à conversão de nossos irmãos separados. O que equivale a dizer que a devoção a Nossa Senhora afasta de seu Divino Filho. "Ninguém imagine, como certos falsos iluminados, que Maria, por ser criatura, é impedimento para a união com o Criador. Não é já Maria quem vive; é Jesus Cristo só, é Deus somente quem vive nEla", diz o Santo em O segredo de Maria (no 21), lembrando expressão usada por São Paulo. Repetindo a lição dos Santos Padres, mostra ele que "Maria é a Senhora da Divina Sabedoria: não que seja superior a esta Divina Sabedoria, verdadeiro Deus, nem que seja igual a Ela — fora blasfêmia pensá-lo e dizê-lo — senão que Deus Filho, a Sabedoria Eterna, tendo-Se submetido de modo perfeito a Maria como a sua Mãe, Lhe deu sobre Ele mesmo um poder materno e natural de todo incompreensível, não só durante sua vida mortal, senão também no Céu, já que a glória não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa" (O amor da Sabedoria Eterna, n° 205).

Previu São Luís Maria Grignion de Montfort que um extraordinário incremento da devoção à Santa Mãe de Deus seria um sinal característico dos últimos tempos, do mesmo modo que por obra do demônio haveria de recrudescer então o combate dos filhos das trevas contra essa mesma devoção. Não se cansava de rogar a Deus nesta intenção, como o fez na Oração abrasada: "Senhor Jesus, (...) lembrai-Vos de dar à vossa Mãe uma nova companhia, a fim de por Ela renovar todas as coisas, e a fim de terminar por Maria os anos da graça, tal como Por Ela "os começastes". Eis os votos que também nós fazemos neste 250° aniversário da entrada do servo bom e fiel no Paraíso, ao evocarmos alguns aspectos marcantes de sua passagem pela terra e alguns traços das verdades pelas quais tanto lutou e sofreu. Apóstolo da Contra-Revolução, cantor eloquente das glórias da Mãe de Deus, invoquemos sua proteção junto ao Trono do Altíssimo na fase tormentosa da história da humanidade que se desenrola aos nossos olhos.


Conclusão da página 8

REFORMA AGRARIA DO PRESIDENTE FREI É SOCIALISTA E CONFISCATÓRIA

socialista e confiscatória; amanhã teremos a "reforma urbana".

Percebe-se, assim, que "é a mística ideológica da igualdade completa, e com ela, em última análise, de modo mais ou menos consciente e explícito, a mística do próprio comunismo que sopra hoje sobre o Chile".

Neste ponto, o documento cita o trabalho do Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, "Baldeação ideológica inadvertida e diálogo", publicado por esta folha no n° 178-179, de outubro-novembro do ano passado, e que "Fiducia" reproduziu, em tradução castelhana, no n° 21-22, de janeiro deste ano. O manifesto mostra que o emprego de palavras-talismã tais como "igualdade", "revolução social", "reforma", etc., provocou em muitos chilenos uma baldeação ideológica inadvertida em sentido favorável a uma reforma agrária socialista, segundo o processo lucidamente descrito pelo professor brasileiro.

A posição assumida por "Fiducia”

Por isso é que "Fiducia" "decidiu dirigir-se de público à nação, tomando sobre si a responsabilidade de apontar, com a absoluta franqueza e clareza que o momento exige, alguns dos últimos e reais efeitos do projeto de "reforma agrária" que o Sr. Frei está promovendo".

"Faz já alguns meses — prossegue o manifesto —, quando nenhuma voz se levantava ainda no país, "Fiducia" levantou a sua para solicitar um esclarecimento público ao Presidente ante a iniciativa por ele promovida de reformar a Constituição no tocante ao direito de propriedade, reforma que tão assinalado serviço presta aos fins do comunismo internacional [ver "Catolicismo", n° 175, de junho de 1965]. O significativo silêncio observado pelo Sr. Frei nessa ocasião — em que pesem as amplas repercussões daquela interpelação — veio a ser, para quem soube ouvi-lo, um eloquente brado de alarme em face do rumo adotado pelo governo que ele preside, rumo esse que agora é possível apreciar melhor. Hoje a situação se agravou, e é por isso que "Fiducia" considera impostergável a necessidade de abordar, sem mais vacilações e distinções, uma questão de fundo posta pela "reforma agrária", que é antes de tudo uma questão moral e de princípios".

Propriedade, e santificação das almas

Após afirmar que o direito de propriedade é um atributo tão característico do homem que, em face dos bens materiais, é ele que o distingue dos brutos, como se depreende do que ensina Leão XIII na "Rerum Novarum", "Fiducia" prossegue: "A mitigação ou abolição da propriedade privada acarretaria a negação gradual de valores do mais alto significado na vida humana, quais sejam os valores religiosos". Em abono deste ponto de sua argumentação, cita mais uma vez o Prof. Plinio Corrêa de Oliveira, cujo célebre estudo, "A liberdade da Igreja no Estado comunista", mostra precisamente que a abolição da propriedade privada conduz a uma deformação do conhecimento do próprio Deus, e prejudica, assim, a santificação das almas.

"Fiducia" propõe então ao povo chileno uma campanha de esclarecimento ideológico que "é tanto mais necessária quanto o projeto de "reforma agrária" está redigido com tal habilidade, que muito do que ele tem de injusto ou de funesto pode passar inadvertido, inclusive a espíritos lúcidos e bem intencionados, desde que não disponham de todo o tempo necessário para estudá-lo em seus últimos detalhes".

O direito de propriedade no projeto

Passando à análise da propositura governamental, o manifesto recorda que, por ser a propriedade privada um direito inerente à natureza humana, participa ela, por sua vez, dos atributos desta, quais sejam, os de ser individual e de ter uma função social. "Porém, pretender estabelecer que a propriedade privada é uma pura função social, constitui um engano e uma violação desse direito".

Ora, o art. 2° do projeto em apreço declara de utilidade pública e permite desapropriar total ou parcialmente "as propriedades rurais que se encontrem em qualquer das situações expressas nos arts. 3° a 10° inclusive, da presente lei".

Os arts. 3° a 10°, por sua vez, estabelecem que ficam sujeitos a expropriação os imóveis rurais com mais de 80 hectares de área de irrigação básicos; os localizados em determinadas províncias onde se verificaram litígios relativos ao domínio da terra; os localizados em regiões onde o Estado esteja realizando ou venha a realizar obras de irrigação; os que pertençam a comunheiros que não procedam à divisão no prazo de dois anos; os que pertençam a pessoas jurídicas; os que estiverem arrendados ou cedidos a terceiros sem observância das disposições legais sobre a matéria; os abandonados ou mal explorados (a critério do Poder Público). É fácil verificar que toda propriedade agrícola, ainda que cultivada, fica, assim, sujeita ao arbítrio expropriatório do Estado.

Quanto à forma de pagamento das terras desapropriadas, o princípio fixado pelo projeto constitui uma injustiça flagrante. O montante da indenização será de terminado pelo valor fiscal e não pelo valor real do imóvel. Além disto, a parte a ser paga à vista é ínfima, sendo o resto pagável em 25 anos, em bônus praticamente não negociáveis, com reajuste irrisório.

Ainda não pára aí a tendência draconiana e socializante da propositura. As terras desapropriadas serão cedidas aos camponeses com tais restrições e tão ampla sujeição aos organismos estatais, que o domínio de cada qual sobre o imóvel que lhe couber será ilusório.

Ressalta o manifesto que dessa maneira "se vão destruindo todos aqueles direitos do indivíduo que guardam íntima correlação com a propriedade, na qual encontram garantia e estímulo. Assim, por exemplo, o direito de herança, a independência da vida familiar ante as intromissões do poder civil, a afirmação da própria liberdade e da iniciativa pessoal, etc. Aspectos estes que, entre outros, a doutrina católica apresenta como ligados ao instituto da propriedade privada".

Acresce que, em vez de dividir as terras expropriadas em "unidades agrícolas familiares", o que constitui a primeira hipótese prevista no projeto, poder-se-á, a juízo da CORA (Corporação de Reforma Agrária), entregá-las a "cooperativas camponesas" ou distribuí-las em "copropriedade aos camponeses".

Como se vê, o projeto tende a "estabelecer um estado de coisas que facilita a implantação sub-reptícia do coletivismo marxista em nosso país. O que não ocultaram altos dirigentes do marxismo nacional, amplamente satisfeitos com o projeto e ardorosos partidários dele".

O projeto e o dirigismo estatal

Quebrantando, por um lado, o princípio da propriedade privada, o projeto não deixa intacto, tampouco, outro princípio fundamental da ordem social, que é o da livre iniciativa.

Em primeiro lugar estabelece ele como obrigação a "exploração pessoal" da terra, admitindo o regime do salariado apenas em caráter ocasional e limitado.

Outro grave aspecto dirigista da propositura é o que se refere ao regime de águas. O título V assegura ao Executivo um controle praticamente irrestrito das águas de irrigação, estatuindo o confisco automático de todos os direitos atualmente existentes sobre essas águas. Considerando-se que a agricultura chilena depende em grande parte do regime de irrigação, pode-se ver o alcance desta medida. A qual é tanto mais injusta quanto é certo que 80% da irrigação existente é integralmente obra de particulares, permitindo a incorporação de 1.200.000 hectares à exploração agrícola.

O caráter dirigista do projeto se manifesta ainda pela instituição de um cooperativismo de cunho socialista a que o indivíduo, convertido em pseudo-proprietário, fica submetido. Este último receberá tudo do Estado: assistência técnica, financiamento, educação, sementes para o plantio, etc. Além do mais, deverá inscrever-se numa cooperativa, a qual, por sua vez, estará sujeita a um controle técnico, econômico e político do Poder Público (art. 67, letra "c").

Os títulos de domínio que forem entregues aos beneficiários da "reforma agrária" estarão, por fim, vinculados a restrições cujo figurino é bem conhecido: impossibilidade de alienação das terras, de parcelamento, de cessão a terceiros para exploração, de hipoteca, etc. Nestas condições, os beneficiários não poderão, de fato, dispor de "suas" terras. E, desta maneira, "a sociedade doméstica, célula fundamental da sociedade, e cuja vitalidade é a vitalidade da própria sociedade, constituirá, como nos países comunistas, esses simulacros de família nos quais não há intimidade nem atividade imune à interferência e à fiscalização do Poder Público".

Consequências de ordem moral

Em face de tudo isso, pergunta o manifesto: "Não passará a agricultura chilena a ser um imenso conjunto de "kolkhozes", nos quais trabalharão rebanhos humanos submissos e dóceis à vontade estatal?" Quanto aos assalariados, que será deles, deslocados da vida rural por esse projeto hostil ao regime em que trabalham? Os que ainda permanecerem no campo não serão porventura sindicalizados em organismos manipulados pelo Estado, simples joguetes nas mãos deste? Todas estas perguntas, de si muito importantes, não devem fazer esquecer outro aspecto da maior relevância: o aspecto moral. "Com efeito, levando-se em conta que as terras assim repartidas terão sido antes confiscatoriamente subtraídas de seus legítimos proprietários, e que essa mesma legislação estará pesando sobre a consciência desses novos pseudo-proprietários, teremos uma ideia do clima moral em que essas caricaturas de proprietários viverão. E do clima moral em que a sociedade em geral viverá. Compreender-se-á, então, o que disse Pio XI: "A supressão da propriedade privada, longe de redundar em benefício da classe trabalhadora, constituiria sua mais completa ruína" (Enc. "Quadragesimo Anno")".

A propósito de uma Carta do Cardeal Cicognani

O manifesto de "Fiducia" conclui com as seguintes observações:

"Citados neste trabalho tantos documentos pontifícios, queremos consagrar, por fim, filial e particular atenção à Carta recentemente enviada pelo Cardeal Cicognani, Secretário de Estado da Santa Sé, à III Semana Social Nacional do Chile.

"Interpretou-se tal documento como uma aprovação do projeto de reforma agrária do Presidente Frei. Nada nos leva a entendê-lo assim.

"Afirma o documento, primeiramente, que o direito de propriedade é um instituto essencial à ordem normal de todos os povos, em todos os tempos, e que, por isto, não pode nunca ser abolido.

"Descreve também a dura situação de extrema penúria perante a qual se torna particularmente amplo o exercício da função social da propriedade, resultando necessária uma redistribuição desta última, nunca porém sua supressão.

"Indica-se, além disso, um meio para a redistribuição, qual seja, a desapropriação.

"Isto posto, é evidente que o ilustre Secretário de Estado da Santa Sé quis recordar aos chilenos os princípios doutrinários segundo os quais devem tomar uma atitude diante do projeto de reforma agrária do Presidente Frei.

"Cabe, agora, perguntar de modo mais preciso: quis Sua Eminência o Cardeal Cicognani ir além desta posição doutrinária, intervindo diretamente na vida civil do Chile, para impor a todos os católicos a aceitação unânime deste projeto? Não passa isso de uma conjectura, pois em nenhum lugar se afirma tal coisa formalmente. Mais ainda, esta conjectura é infundada.

"Em primeiro lugar, porque é evidente que o quadro da situação de miséria pintado pelo documento como existente em toda parte (inclusive no que toca aos trabalhadores urbanos), apresentando embora um traço impressionante da realidade — como é o observado pelo documento da Santa Sé — não descreve tal realidade inteiramente. Esta situação se mescla com aspectos positivos também muito importantes. Cabe a este respeito recordar o ensinamento de Sua Santidade o Papa Pio XII ao "Katholikentag" de Viena: "Se os sinais dos tempos não enganam, na segunda fase das controvérsias sociais em que já entramos têm precedência [com relação à questão operária que dominou a primeira fase] outras questões e problemas: Citemos aqui dois deles. A superação da luta de classes por uma recíproca e orgânica ordenação entre o patrão e o empregado. Pois a luta de classes nunca poderá ser um objetivo da ética social católica. A Igreja sabe que é sempre responsável por todas as classes e camadas do povo. Ademais, a proteção do indivíduo e da família, diante da corrente que ameaça arrastar a uma socialização total, em cujo fins se tornaria pavorosa realidade a imagem terrificante do "Leviatan". A Igreja travará essa luta até o extremo, pois aqui se trata de valores supremos: a dignidade do homem e a salvação da alma" ("Discorsi e Radiomessaggi", vol. XIV, p. 314).

"Até que ponto, no Chile, se mesclam estes dois aspectos da situação? Não há uma palavra do venerando Cardeal Cicognani que entre neste pormenor. Há apenas uma recomendação de estudar detidamente a realidade: "A experiência ensina, além disso, que toda reforma há de ser estudada previamente e com toda a ponderação, à luz da sabedoria e prudência política, e deve ser acompanhada por aquelas medidas indispensáveis que assegurem um bom resultado e eficácia".

"O projeto do Presidente Frei foi proposto ao Congresso de forma precipitada e pouco refletida. Além disso, ainda que tivesse sido apresentado com todo o estudo conveniente ao caso, os católicos conservariam absoluta liberdade para opinar a respeito. Pois em matérias desta espécie a Santa Sé não costuma incluir, como objeto de seu Magistério, considerações descritivas de fatos concretos de natureza econômica, os quais, pela sua própria índole, situam-se num plano técnico, distinto do que toca ao Magistério eclesiástico.

"Como, por sua vez, a amplitude das eventuais restrições a serem feitas ao direito de propriedade está condicionada à apreciação de situações de fato, deduz-se daí que uma apreciação doutrinária sobre a reforma do Presidente Frei subordina-se à diversidade de apreciações que cada qual possa fazer sobre a situação concreta. É por isso absurdo imaginar que a referida Carta tenha pretendido ser um passaporte para a citada reforma.

"Ademais, segundo toda a evidência, o documento, encarecendo embora a importância e a legitimidade de eventuais distribuições de terras, não quis afirmar que o fraccionamento da propriedade seja sempre, em todo lugar e por toda parte, indicado como meio para melhorar a situação dos trabalhadores rurais. É este outro problema que cabe à prudência resolver, à luz dos dados econômicos e sociais, sobre os quais, em sua realidade concreta, a Carta nada diz. Por fim, admitindo a legitimidade de eventuais desapropriações, a Carta não se pronuncia sobre o modo como tais desapropriações são propostas no projeto.

"Em suma, por tudo isto, "Fiducia", manifestando seu respeitoso acatamento aos princípios e às normas da Carta, considera que dela nenhuma objeção pode tirar-se contra as críticas aqui feitas ao projeto do Presidente Frei"


O texto do comunicado

É o seguinte o texto do comunicado dado a lume por "Fiducia", no dia imediato ao da publicação do manifesto:

Patricio Larrain Bustamante

Diretor de "Fiducia"

"Houve quem, diante das declarações feitas por Sua Eminência o Cardeal Arcebispo à revista "Ercilla", do dia 5 de janeiro de 1966 (p. 3), tenha querido ver nas palavras atribuídas a Sua Eminência um pronunciamento magisterial oficial sobre o projeto de reforma agrária do Presidente Frei, obrigando em consciência os fiéis a apoiar este último, senão in totum, pelo menos em sua substância.

Encarar dessa forma aquelas declarações implica em assimilá-las inteiramente a um documento oficial, emanado da Chancelaria da Cúria Metropolitana e revestido de todas as garantias de fidelidade, seja quanto ao fundo, seja quanto à forma. Tal assimilação nos parece ir muito além das intenções do ilustre e venerando Prelado. Se Sua Eminência quisesse falar de modo tão assertório e com tanta autoridade, ter-lhe-ia sido fácil publicar esse documento oficial. Se não o fez, e escolheu uma forma de pronunciamento tão diversa, parece-nos um abuso fazer tal assimilação. Tanto mais que quem recebeu as declarações de Sua Eminência foi a jornalista Erika Vexler, cuja posição ideológica esquerdista é bem conhecida.

Por outro lado, justiça seja feita àquela jornalista num ponto importante: há um matiz nas palavras do ilustre entrevistado que ela soube reproduzir com fidelidade. Esse matiz consiste em que, de modo geral, Sua Eminência enuncia suas impressões sobre o projeto Frei em forma dubitativa. Por exemplo, não afirma taxativamente que o projeto coincide com a doutrina da Igreja, senão, simplesmente, "crê que tal coincidência exista". A luta de classes —tão característica do comunismo — Sua Eminência não afirma nem nega que esteja no projeto. Diz simplesmente que o projeto talvez seja pouco claro a respeito. Sua Eminência não afirma peremptoriamente se o projeto é estatista ou não. Deixa transparecer, apenas, uma viva apreensão a este propósito. E cabe aqui uma ponderação sobre o que Sua Eminência conceitua como "linhas gerais".

Poder-se-ia dizer, em certo sentido, que o cunho estatista do projeto parece formar parte, necessariamente, das grandes linhas dele. Se — segundo Sua Eminência — as "grandes linhas" do projeto parecem coincidir com a doutrina da igreja, o estatismo não estaria incluído nelas. Assim, parece provável que a expressão "grandes linhas" tenha sido empregada por Sua Eminência num sentido muito elevado e imponderável, significando apenas, por exemplo, algo como a aspiração básica de justiça social e caridade cristã, em favor das classes oprimidas, que é alegada pelo Presidente Frei como um dos traços dominantes de seu programa de governo.

Para excluir a ideia de que Sua Eminência haja querido traçar para todos os católicos uma linha de conduta favorável ao projeto governamental, bastaria outra consideração. Tratar-se-ia, nesse caso, de aplicação de princípios a uma situação concreta, cuja realidade — em larga medida — somente a técnica pode revelar e analisar. A liceidade das medidas contidas no projeto não depende só da legitimidade dos princípios esgrimidos por seus defensores, como também da veracidade da situação de fato que eles descrevem. Ora, dado que nosso Arcebispo se abstém cuidadosamente de tomar posição em matéria puramente técnica (e quanto o louvamos por isso), não terá querido emitir um juízo sobre a moralidade dos numerosos artigos que se encontram no projeto.

Um Arcebispo não é apenas Mestre; é também Pastor. Seus pronunciamentos se revestem, conforme as circunstâncias, seja da clareza lapidar inerente ao Magistério, seja de formas menos incisivas e mais modeladas por preocupações prudenciais inerentes às necessidades de sua ação de Pastor. Estas últimas, para o próprio bem das almas, podem ter matizes que os atos do Magistério não comportam. Não confundamos os documentos de um tipo com os do outro. Não procuremos forçar as palavras de nosso Prelado, atribuindo-lhes uma intenção e um alcance que, a nosso ver, manifestamente não tiveram.


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Utopia e catástrofe

Plinio Corrêa de Oliveira

Todos os homens são iguais. Logo, todos os povos o são também. Logo, todos têm o mesmo direito à independência. Logo, toda e qualquer forma de colonialismo é intrinsecamente injusta. E é também nociva, pois se nenhum homem vela melhor pelos seus interesses do que ele próprio, é igualmente verdade que qualquer nação jamais é tão bem dirigida como quando se governa a si mesma.

Em consequência, convém fazer cessar já, e por toda parte, qualquer forma de dependência de uma nação em relação a outra.

Foi com generalidades brilhantes, enternecedoras e falaciosas como essas que a política norte-americana, conjugada para este efeito com a da URSS, impôs indiscriminadamente, depois da segunda guerra mundial, a supressão do regime de protetorado ou de dependência colonial em que as várias nações europeias mantinham povos e territórios na África, Ásia na Oceania. Pouco resta do Império Britânico. E o que resta é tão frouxo, que se reduz a quase nada. A França, a Bélgica, a Holanda, a Itália já não são potências colonialistas. Das colônias espanholas, a bem dizer nada resta. E só Portugal ainda conserva intactos os seus domínios de além-mar, exceção feita de Goa.

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Em tese, nas regiões de onde se retirasse a influência europeia, deveria surgir radiosa, autêntica, pujante, a cultura local, como fonte inspiradora de novas instituições, novos estilos de viver e de produzir.

Mas, do mito só pode nascer a catástrofe. Do erro só pode sair o caos. E o resultado foi o que se viu. Em grau maior ou menor, por toda parte, e especialmente na África, o vácuo deixado pelos europeus em todos os domínios não foi preenchido tanto pelos nativos quanto principalmente pelos comunistas. Moscou e Pequim estão dividindo entre si os despojos que o Kremlin e a Casa Branca arrancaram à Europa. E não raras vezes, quando se deixou o campo livre às influências autóctones, o que apareceu não foi senão imaturidade e ferocidade pagã, a produzir convulsões trágicas e copioso derramamento de sangue.

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O recente caso de Ghana está vivo na memória de todos. Nosso primeiro clichê mostra o redentor caricato que os revolucionários ghanenses se deram a si próprios. Vemo-lo aqui representado em uma estátua que Kwame N’Krumah erigiu em honra de si mesmo, em frente ao edifício do Parlamento em Accra. Em trajes proletários e atitude messiânica, essa figura de opereta — que se deixava intitular "Redentor" por seus partidários — empunha com firmeza um bastão que evoca fortemente a ideia de pancadaria.

Para que a blasfêmia fosse completa, liam-se no pedestal estas palavras: "Procurai primeiro o reinado do político, e todas as coisas vos serão dadas por acréscimo". Parece que esse minúsculo anticristo se sentia por vezes pequeno em suas funções de redentor. Provavelmente por isso, deu à estátua proporções gigantescas. Como é bem de se ver, esse fantoche hilariante era manobrado pelos russos.

Tal era a república de Ghana que, nascida da antiga colônia inglesa da Costa do Ouro, quase todas as nações membros da ONU tomavam sério...

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Como puderam fazê-lo? É o que a História terá de explicar algum dia. Como puderam os governantes de tantos países admitir que fosse capaz de tornar-se independente e de criar um estado inteiramente definido, estruturado e normal em seu funcionamento, um povo que ainda há pouco estava inteiramente no estado de barbárie, um povo que, por exemplo, ainda adorava ídolos estranhos e extravagantes como o que ilustra esta página, cultuado pelos Fantis da região de Wassaw... Um povo do qual sem dúvida não desapareceram de todo nem os restos nem o ambiente da antiga selvageria?

Seja como for, o edifício baseado sobre a utopia igualitária, filantrópica e naturalista não poderia durar. N’Krumah caiu e seus patrícios, que até há pouco o acatavam como chefe de Estado, se apressaram a derrubar o ídolo erguido em praça pública, cantando e dançando de alegria por sua queda. Sobre ele, como mostra nosso clichê, brincaram de modo pitoresco e simpático os meninos das ruas, ao passo que o pedestal foi quebrado em muitos fragmentos, distribuídos entre a multidão.

Mas quem é de opereta faz opereta a vida inteira. N’Krumah foi nomeado presidente da Guiné pelo próprio chefe de Estado guinéu, Sekou Touré. Depois, este último esclareceu que não renunciara ao poder em favor de N’Krumah, mas simplesmente o condividira com ele. Esse condividir, entretanto, parece que era muito sui generis, pois Touré deixou entrever que Kwame N’Krumah tinha apenas algumas honras de chefe de Estado. Esperam-se novos lances hilariantes.

Noticia-se, ao mesmo tempo, que a república bicefálica da Guiné prepara uma guerra contra Ghana. E tem-se a obrigação de recear que correrá ainda mais sangue na África.

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Se algum progressista ler estes comentários, pouco faltará talvez para que também aqui corra um pouco de sangue. Pois estaremos a dois dedos de sermos agredidos. O progressismo, com efeito, é uma forma de histeria freneticamente favorável à liberdade de pensamento e opinião de todos, desde que sejam progressistas. Mas se se é antiprogressista não se tem o direito de dizer o que se pensa, porque o progressismo espouca então em objeções ácidas, interpretações temerárias e conclusões enfaticamente injuriosas.

Digamos, pois, para prevenir chufas e doestos, que bem sabemos que, in abstracto, cada povo tem direito à sua independência. Bem sabemos, ainda, que a generosidade de espírito própria ao católico leva a desejar a independência de todos os povos. Mas tudo isso nos modos, tempos e lugares indicados.

Em princípio também, é possível que certas circunstâncias tornem legítima a dominação de uma nação sobre outra. É possível que certas nações não estejam em condições de prover por si mesmas a seu destino. Nessas hipóteses, não é legítimo fazer cessar a todo preço e de qualquer maneira as relações de proteção ou dominação colonial eventualmente estabelecidas entre dois povos.

Mas, dirá o progressista, teria cabimento suportar os abusos existentes em tantos protetorados e colônias? Talvez sim, em vários casos. Porque nem sempre é sábio e útil extirpar certos abusos... Assim, movidos constantemente pela maior simpatia para com os povos africanos e asiáticos, foi com preces que acompanhamos o alvorecer de sua independência. Com preces nas quais ia, além de um entranhado amor cristão, também uma profunda apreensão. Tanto utopismo não iria tornar várias dessas nações vítimas de desgraças ainda maiores?

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Utopistas, eis no caso de Ghana uma expressão aguda e extrema do desacerto de vossa política em tantos países. Quando vos convencereis de que a inconformidade com o real, com o concreto, com o positivo, faz de vós verdadeiros verdugos das nações que imaginais beneficiar?

Quando compreendereis que com isso só lucra o lobo comunista?