P.06-07 | REPORTAGEM ESPECIAL |(continuação)

com o nome de Revisão Agrária. Mas elas continuaram ocupadas por posseiros, enquanto ações movidas pelo Estado se arrastavam na Justiça.

Em 1973, nova tentativa governamental de regularizar a posse da terra levou as autoridades a prometerem escritura para quem assinasse um compromisso de compra e venda com prazo de cinco anos. O ato governamental limitava a aquisição a 40 alqueires por família.

Muitas cláusulas contratuais não foram cumpridas, sobretudo da parte do Estado. Em vista do caos criado pelas circunstâncias e por denúncias de corrupção, as autoridades competentes chegaram, em 1978, a instaurar um inquérito administrativo, o qual não logrou sanar a confusão reinante. Com efeito, os promitentes compradores - inclusive muitos que saldaram regularmente seus compromissos - até hoje não receberam títulos definitivos.

Nas terras do assentamento, só o mato cresce...
Ao lado das terras improdutivas da Reforma Agrária, pujantes lavouras de particulares evidenciam o dinamismo e o progresso da iniciativa privada.


Um insensato sistema de crédito comunitário

No Assentamento Pirituba, os assentados têm o uso da terra, mas a propriedade do imóvel é do Estado. Sem títulos de propriedade, os assentados não têm acesso ao crédito agrícola, uma vez que a terra não pode ser oferecida como garantia para constituição de hipoteca. Sem crédito, o assentado recebe o chão, porém não tem meios de tornar a terra produtiva.
Como sair do impasse?
O meio excogitado pelos executores da Reforma Agrária foi
o de fornecer crédito não aos assentados individualmente, mas à associação deles. Esse mecanismo, aparentemente eficiente, produz consequências estranhas e adversas.
a) O financiamento recebido pelo assentado, acarreta-lhe um ônus a título individual, mas o dinheiro é creditado na conta da associação. O assentado é forçado a aceitar esse procedimento que lhe é apresentado como o único meio viável de acesso ao crédito.
b) A diretoria da associação fica investida como administradora do dinheiro dos assentados, mas não responde por eventuais prejuízos e danos ocorridos em caso de má administração.
c) Os assentados respondem individualmente pelas suas próprias dívidas, mas como o crédito é concedido ao conjunto dos associados, eles ficam prejudicados na hipótese de um de seus colegas não honrar seu compromisso. Alguém que fique doente ou deserte do assentamento transfere a dívida para os demais.
Assim, estamos diante de um sistema de crédito e gestão comunitários, que regra geral desfecha no autoritarismo arbitrário ou mergulha na corrupção. E o empreendimento assim constituído logo cai no descrédito geral. Foi o que ocorreu no Assentamento Pirituba.


Nas entradas de algumas estações do metrô Paulistano, propagandísticos sacos plásticos de 2 quilos do "Feijão da Reforma Agrária" foram oferecidos aos transeuntes...


Começam as invasões articuladas

A falta de titulação foi o fator propício que inspirou a articulação de um movimento de sem terras que desejava ocupar a área. Liderava-o um engenheiro agrônomo da própria Secretaria da Agricultura, Zeke Beze Jr., que em julho de 1983 foi incumbido pelo Governo Montoro de resolver o problema da Fazenda Pirituba. Diplomado em 1982, portanto sem experiência profissional, atribuía a "tranquilidade com que enfrentava os problemas" à sua militância de cinco anos no movimento estudantil.(2)

Para o advogado Jairo Amorim, esse agrônomo "barbudo, petista, que deve ter vindo do inferno", só veio agravar os problemas já existentes.

Em dia e hora marcados - madrugada de 13 de maio de 1984 - 250 famílias, totalizando 1200 pessoas, com apoio dos Sindicatos dos Trabalhadores Rurais de Itararé e Itaberá, do Vigário de Itararé, Padre Narciso, de políticos como os deputados Sérgio Santos (PT) e Valdir Trigo (PMDB), chegaram em caminhões e ocuparam parte das terras da antiga Fazenda Pirituba. A Secretaria da Justiça, com o auxílio do Instituto de Assuntos Fundiários - IAF, entrou com pedido de sequestro, isto é, apreensão judicial das terras invadidas, consideradas litigiosas. O juiz de Itapeva transferiu, então, a guarda das terras para a Secretaria da Agricultura. A decisão judicial complementou a vitória do movimento dos invasores, permitindo que cerca de 160 das 250 famílias fossem assentadas na área sequestrada.

Constituiu-se assim o Assentamento de Reforma Agrária da Fazenda Pirituba, composto de 3850 hectares e dividido em área I e área II, ambas sob a mesma direção, correspondendo a cada família o cultivo de lotes de sete alqueires. Posteriormente, uma terceira área foi incorporada ao projeto.

Assentamento modelo

"Fazenda Pirituba é exemplo para Nova República"; "Em Pirituba, um exemplo de assentamento que está dando certo"; "Reforma Agrária: dois bons exemplos dados por São Paulo"; "Pirituba, exemplo vitorioso e sem mistérios" - eis alguns títulos de notícias de jornais e revistas que focalizaram o projeto de Reforma Agrária, quando este ainda estava no início (3).

O governador Montoro, em fevereiro de 1985, em apoteótica visita ao local, onde desceu de helicóptero, chegou a declarar que "o assentamento na Fazenda Pirituba é exemplo a ser seguido pela Nova República", mostrando-se impressionado com a "experiência comunitária ali implantada" (4).

Posteriormente, a propaganda em favor do Assentamento Pirituba utilizou o recurso de organizar até a venda direta ao consumidor, nas entradas de várias estações do metrô paulistano, de feijão produzido na área da Reforma Agrária. Propagandísticos sacos plásticos de 2 quilos ofereciam "Feijão da Reforma Agrária", nos quais se anunciava a colaboração da Caixa Econômica do Estado de São Paulo, do Banespa e do Governo Quércia.

A TV Globo compareceu ao assentamento e filmou a lavoura de feijão, que apresentou como fruto da Reforma Agrária. A filmagem, aliás, gerou protestos, pois focalizou pujantes lavouras de produtores particulares na região, em vez das plantações dos assentados. "Até filmaram o meu feijão, em vez do deles", queixou-se contrariado Hendrick Loman, agricultor vizinho do assentamento e diretor da Copasul - Cooperativa Agropecuária Sul Paulista Ltda.

"Belíssimo, com resultados 100% positivos" - declarou uma visitante do assentamento, procuradora geral do Estado, Norma Kyriakos, que considerou isso possível graças à "boa organização dos assentados e ao seu espírito comunitário" (5).

O "modelo" Pirituba

No Assentamento Pirituba, encontram-se realmente muitos traços de um assentamento modelo, não no sentido de exemplo de sucesso, mas de realização de um figurino pré-estabelecido para ser implantado pela Reforma Agrária em todo o Brasil.

E de tal maneira foi aplicado esse figurino, que se pode sustentar ter sido esta a razão profunda do fracasso. Em outros termos, o Assentamento Pirituba foi modelo de assentamento coletivista, muito semelhante às fazendas coletivas adotadas em países comunistas, chinesas e cubanas, não concedendo nada ou quase nada à doutrina e aos hábitos da propriedade privada.

Tudo no assentamento foi coerente a partir desse erro inicial. E dentro de uma coerência stalianiana, tentou realizar o sonho utópico do coletivismo socialista, que nem a Rússia foi capaz de implantar, e cujos amargos frutos até Gorbachev hoje lamenta...

Por isso, o estudo do "modelo" Pirituba tem particular importância, sendo oportuno aqui lembrar as características principais desse projeto coletivista.

a) Os assentados não recebem títulos de propriedade individual. Recebem, quando muito, uma precária concessão de uso, ficando em geral com uma promessa de outorga de títulos num futuro incerto. "O governo não vai mais dar títulos de posse aos agricultores que forem assentados dentro do programa de Reforma Agrária" (6), afirmou sem rodeios Dante de Oliveira, então ministro da Reforma Agrária.

b) O domínio da terra fica com o Estado ou com uma associação de assentados. O Estado não distribui terras a ninguém individualmente, retendo o domínio delas em seu nome ou, quando muito, no de uma associação de assentados que em tudo depende do Estado. "Só o associativismo garante o sucesso do empreendimento .... só o trabalho em comum, no solo sem dono, livre de cobiças mesquinhas e interesses antissociais", recomenda, numa linguagem pesadamente socialista, um documento do ex-MIRAD, ao traçar diretrizes para os assentamentos de Reforma Agrária (7).

c) Coletivismo na organização da produção. A semelhança dos "kolkhozes" russos, das comunas chinesas, das "granjas dei pueblo" cubanas, e das agrovilas polonesas, a produção é coletivizada, por intermédio de cooperativas integrais de participação obrigatória, nas quais o cultivo da terra, o uso de máquinas e a comercialização da safra são comunitários. O próprio Presidente Sarney, em declaração à imprensa,

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