da realidade. Sendo desiguais os homens, existem naturalmente entre eles, diferenças de talentos, saúde, idade, aptidões naturais etc., com reflexos no rendimento do trabalho de cada um. Isso sem mencionar as tendências que todo homem tem para o vício, a bebida, a vadiagem, a preguiça. Contra estas tendências, os homens de boa formação moral reagem; os outros não.
Tal realidade não poderia estar ausente do assentamento, pois onde está o homem, as desigualdades aparecem. E o trabalho comunitário e planificado, que supõe a igualdade completa, acaba sendo interminável fonte de injustiças, desavenças, desânimo nos melhores, exploração dos mais fracos pelos mais fortes, corrupção por parte dos oportunistas. Esse é o quadro real traçado pelos depoimentos dos assentados no projeto Pirituba.
"Na hora em que eu colhia, vinha a associação em cima e a diretoria falava: você vai ter que ajudar a pagar uma parte daquele outro que não deu porque ele descuidou da lavoura. Então, não é um trabalho honesto, porque se o outro não trabalhou é porque não quis fazer como eu", exclama Waldemar de Lara. Adenito Vaz Martins, 25 anos, por sua vez protesta:
"Do jeito que estão trabalhando aqui, é pior do que ser empregado em fazenda. Mistura tudo, uns iam trabalhar, outros não iam. O que trabalhava mais saía tomando no nariz. Morria de trabalhar e nunca sobrava dinheiro".
Benedito Domingues de Lacerda conta fatos de sua amarga experiência no curto período em que esteve no cargo de tesoureiro da associação: "Comecei a ver coisas que não podiam ter acontecido". E dá um exemplo: "Eu dava requisição para o Pedro Ferreira de Araújo pegar gasolina no posto, em Itararé. Ele trazia nota de 100 litros de gasolina, para fazer um trajeto de 30 km! E eu falava: não se pode fazer isso". Benedito foi logo excluído da diretoria e explica que um dos motivos foi que "a gente estava vendo aquelas coisas erradas".
Segundo depõe Manoel Duarte, vulgo Maneco, 59 anos, o dinheiro dos assentados era muitas vezes desviado misteriosamente. E explica que "pelo esquema que foi feito", de grupo de trabalho comunitário, "se um não pagar, a conta fica devedora. Desse jeito, como é que pode?"
Revoltado com as injustiças que sofreu, Otacílio de Almeida, conhecido como Pingo, 57 anos, afirma que o assentamento só está bom para os dirigentes. E acusa destemidamente o presidente da associação, Delwek Matheus:
"É bom para ele, porque ele está roubando. É ladrão. Roubou de nós, roubou cheque. Tenho meio caminhão de provas, de testemunhas. Só do nosso grupo, são dez. E tem testemunhas dos outros grupos. Roubou cheque nominal. Esse aí eu acho que o diabo está no couro dele. Acredito que Deus não funciona no esqueleto de um homem desses".
Otacílio prossegue: "O que tem a melhor casa no assentamento é o Dico [Aristeu Pereira da Silva]. É um malandro da diretoria. Ele ganhou porque roubou. Do chão ele tira muito pouco, ele tem uma roça perdida no meio do mato".
Muitas críticas também tem o mineiro José Soares Ramos, 56 anos, 13 filhos. Declarando que a "pior traição para nós" foi a associação, assevera que na formação dos estatutos "todo mundo assinou em branco", pensando que estava "pedindo luz, água, escola, posto de saúde". Para ele, os assentados foram enganados também porque queriam "um documento individual para cada um", pois "no bolo nós não queremos não". E, indignado, põe a culpa nos dirigentes: "Esses tais diretores sujos aí não querem isso. Eles querem sombra e água fresca, ir a São Paulo, passar na TV e fazer campanha suja lá".
Por denunciar irregularidades na administração do assentamento, Waldemar de Lara acabou sendo expulso da associação e do lote que ocupava. Sua filha Simone ficou naquela ocasião traumatizada pela arbitrariedade violenta sofrida pela família, despejada sem indenização.
O fracasso econômico do assentamento repercutiu inevitavelmente na situação socioeconômica dos assentados.
Penalizado com as dificuldades dos assentados, o vereador Lineu Ferreira de Melo, de Itararé, responsabiliza o Sindicato dos Trabalhadores Rurais e o Padre Narciso, também de Itararé, "por ter levado esse povo para lá". Pois, "hoje os assentados se acham numa situação difícil, e passando até, a bem dizer, fome".
"Eles prometeram coisa melhor, que iam conseguir luz, água, uma casa melhor para todo mundo morar. Mas até agora nada. Não tem água, nem luz, a gente vai pegar água no poço, ali no banhado", queixa-se decepcionado Elias Ramos, 24 anos, filho de um assentado na área I. E prossegue: "A gente trabalha o tempo inteiro, e tem que dormir no colchão de palha. Pois não sobra dinheiro, vai tudo para poder pagar a dívida. Colhemos feijão podre, que mal dá para comer..."
A situação habitacional, segundo o plano governamental para este assentamento de Reforma Agrária, seria resolvida com a construção de uma agrovila em cada área, que albergasse as famílias, em casas dotadas de saneamento básico, luz, escola e posto médico. A exceção das casas de alguns dirigentes e raros assentados, as agrovilas estão em precário estado, com os mesmos barracos de plástico, lata e papelão que foram armados no início do assentamento.
As escolas estão funcionando graças à presença de professoras mantidas pelas prefeituras de Itaberá e Itapeva. Os postos de saúde, construídos pelas administrações municipais, entretanto não têm médico nem remédios, pois dependem do governo estadual, que é o responsável pelo projeto.
Nada faz crer que este quadro se modifique. O emperramento burocrático do Estado provoca interminável e desgastante jogo de empurra-empurra, no qual quem perde é o assentado. A propósito, Waldemar de Lara conta que o coordenador do projeto, Zeke Beze Jr., solicitado a conceder ajuda para levar um doente à cidade, declarou: "Conosco é aparte técnica, financiamento; negócio de saúde tem que ser com a Secretaria da Saúde".
A experiência da Reforma Agrária lança o assentado em doloroso desamparo. O assentado não é proprietário nem empregado. À mercê de superfuncionários do Estado, o assentado não se beneficia dos direitos que empregados do campo e da cidade hoje desfrutam, tais como férias remuneradas, INPS, Fundo de Garantia, 13º salário, pagamento de horas extras e aposentadoria.
Com poderes quase ilimitados e despóticos, esses superfuncionários podem muito facilmente cometer abusos, sem que sejam controlados e punidos. O fruto dessa inédita e ambígua situação jurídica é que os assentados acabam sendo funcionários de empresas estatalizadas, sem direitos sociais e trabalhistas, e portanto vítimas indefesas de arbitrariedades dos executores da Reforma Agrária.
No mencionado documento de vinte e nove descontentes, encontra-se a denúncia de dois casos de injusta expulsão do assentamento "por motivos banais", expulsão planejada e executada por técnicos do Estado e membros da diretoria da associação. A denúncia salienta que os excluídos da associação "tiveram suas terras tomadas sob ameaça de morte, inclusive com a lavoura de milho e arroz que estava plantada na terra". Isso, que ocorreu em janeiro de 86 com os assentados Waldemar de Lara e Benedito Domingues de Lacerda, agora ameaça nove famílias que já foram excluídas da associação e têm prazo marcado para se retirarem da terra.