P.04-05 Página 04-05 | "MORTE" DO COMUNISMO |

Morto o comunismo?

E o anticomunismo também?

Conversando com o "homem da rua"

Plinio Corrêa de Oliveira

O "homem da rua" - que fez curso secundário completo, ou até obteve um diploma universitário - constitui um ponderável fator da opinião pública, tendo a preciosa função natural de equilibrar, com seu bom senso arejado, a influência, aliás a tantos títulos valiosa, dos intelectuais "puros", dos tecnocratas, ou dos burocratas.

O "homem da rua" mais característico não é única, nem principalmente, o analfabeto. O arquétipo dele é um homem – ou uma senhora – que fez curso secundário completo, ou até obteve um diploma universitário.

Esse gênero de "homem da rua" tem certa cultura geral: ele lê os jornais (excetuados os pesados suplementos semanais especializados, ou quase tanto, ao alcance só de especialistas ou de pessoa apaixonada pela matéria tratada, da qual faz para si uma espécie de hobby).

Mas sua experiência da vida (pessoal, familiar, social, profissional etc.) e o exercício de atividades comportando responsabilidades que preocupam ou fazem pensar, lhe conferiram certa capacidade intelectual e lhe proporcionaram, em consequência, inegável influência nos ambientes em que vive. Em outros termos, ele constitui um ponderável fator da opinião pública.

De tudo isso lhe vem a preciosa função natural de equilibrar, com seu bom senso arejado, a influência, aliás a tantos títulos valiosa, dos intelectuais "puros", dos tecnocratas, ou dos burocratas. Estes tendem, por seus excessos, a uma espécie de totalitarismo tecnocrático, burocrático e livresco, cujo exclusivismo produz com frequência planos e soluções engendrados numa atmosfera de irrealidade, de utopia, de ar confinado.

Em tal atmosfera, a vitalidade se extingue, a realidade, em muito do que ela tem de mais subtil, foge e se esvanece, e as ideologias unilaterais e disparatadas assaltam e conquistam a opinião pública. Esta pode ser lançada assim num caos todo feito de confusão, de contradições e de dramas, nos quais podem estertorar pelas décadas, quando não pelos séculos afora, nações inteiras.

É bem este o caso da Rússia atual. Estão sendo ali rotina os dramalhões políticos, que giram em torno de interpretações livrescas de textos de Marx, Engels, Trotsky e outros teorizadores da primeira era comunista. Vêm depois as disputas utópico-político-ideológicas sobre as reais ou supostas infidelidades de Lênin ao pensamento de Marx. Idem de Stalin com referência a Lênin. Em seguida (e para só mencionar os elos principais) de Kruchev, e depois Brejnev, sucessivamente questionados sobre o mesmo tema.

E agora, por fim, o drama pega fogo em todo o império soviético. Comunistas radicais e mantenedores intransigentes do capitalismo de Estado, de um lado, e, do outro lado, autogestionários ávidos de atingir o desmantelamento desse mesmo capitalismo (como também do capitalismo privado no Ocidente), discutem se é o caso de substituir um e outro capitalismo pelo socialismo autogestionário. Este último, preconizado como arejado e salutar, é concebido por seus propugnadores como um tecido de grupos humanos de dimensões celulares. Tal tecido constituiria a organização social ideal para o homem de hoje. Cada grupelho celular se autogeriria em uma harmonia interna utópica e imperturbável, na qual tudo seria comum: bens, trabalhos, frutos, como até – dizem ou insinuam alguns, com alta verossimilhança – "esposas" e filhos.

Qual seria a explicação desta harmonia interna, bem como da esperada harmonia dos grupelhos entre si? Intelectuais utopistas "poros" não se detêm excessivamente em problemas desses. Tais grupelhos, formando imensos magmas pacificos, pastorilmente simples e primitivos, constituem a meta desses utopistas. Seu "wishful thinking" (*). E, porque desejam ardentemente esse ideal, ipso facto passam a sonhar como seria a realização dele.

(*) Em idioma inglês, um desejo ardente que leva o homem a pensar e agir como se a coisa desejada já fosse uma realidade.

É nestas águas turvas da Rússia nova que, segundo querem uns – influenciados talvez pela meta consignada no Preambulo da Constituição soviética (*) – Gorbachev vai emigrando para a autogestão, navegando penosamente em frágeis embarcações como a perestroika ou a glasnost. E assim vai dando curso ao obscuro dramalhão soviético. Não espanta que ele tenha de enfrentar eventualmente uma perigosa reação anti-autogestionária e favorável à manutenção do capitalismo de Estado, segundo querem os "conservadores" soviéticos.

(*) "O objetivo supremo do Estado soviético é edificar a sociedade comunista sem classes, na qual se desenvolvera a autogestão social comunista" (Constitución – Ley Fundamental – de la Unión de Repúblicas Socialistas Soviéticas, de 7 de outubro de 1977, Editorial Progreso, Moscou, 1980, p. 5) Apontando as falhas do atual sistema soviético, Gorbachev afirma, em seu livro "Perestroika – New Thinking for Our Country and the World": "Deixou-se pouco espaço para a idéia de Lênin de autogestão do povo trabalhador. A propriedade pública foi gradualmente excluída de seu verdadeiro proprietário – o trabalhador Esta foi a principal causa do que aconteceu: no novo estágio, o velho sistema de gestão econômica começou a transformar-se, de fator de desenvolvimento, em freio que retardava o avanço do socialismo... "Um povo educado e dotado para concretizar o socialismo não pôde fazer uso pleno das potencialidades inerentes ao socialismo, de seu direito de tomar parte efetiva na administração dos negócios do Estado..... "Nestas condições, é supérfluo dizer que as valiosas idéias de Lênin sobre gestão e autogestão, controle de ganhos e perdas, e vincularão dos interesses público e pessoal deixaram de ser aplicadas e de se desenvolverem adequadamente" (op. cit., Harper & Row, Nova York, 1987, pp. 47-48). Segundo Gorbachev explana largamente em seu livro, a perestroika consiste na retomada dessas idéias de Lênin. E, por isso, o plano de reforma econômica que apresentou ao plenário da Comissão Central do Partido, em junho de 1987, "prevê a criação de novas estruturas organizacionais de gestão, para o desenvolvimento, em todos os seus aspectos, das bases democráticas da gestão, e para a ampla introdução dos princípios da autogestão" (op. cit., p. 84). A perestroika, portanto, não significa um recuo do comunismo – como muitos pensam – mas um passo avante na tentativa de realização da meta última da utopia marxista-leninista. E Gorbachev não perde ocasião, em seu livro, de dizer, alto e bom som, que os ocidentais não se iludam a esse respeito (cfr. op. cit., p. 36 ss.). Sobre este tema, ver Plinio Corrêa de Oliveira, "O socialismo autogestionario: em vista do comunismo, barreira ou cabeça-de-ponte? – Mensagem das TFPs", "Catolicismo", nº 373-374, janeiro-fevereiro de 1982.

Enquanto isto se passa no interior do território russo, o império soviético se vai descosturando em várias de suas mais longínquas partes. Movimentos separatistas sacodem "repúblicas unidas" distantes entre si como a Estônia e a Armênia, e da Ucrânia se estendem até o Kazaquistão, para atingirem em seguida os confins da Sibéria. Ao mesmo tempo, repúblicas comunistas "soberanas", como a Hungria, a Romênia, a Bulgária, e principalmente a Polônia corcoveiam ao influxo de impetuosas tendências centrifugas.

No que dará tudo isso?

Ninguém o sabe. E nem o pode saber, pois todo este quadro constitui um imenso bruaá de incógnitas que se agitam, se entrechocam ou se entreajudam convulsivamente, em uma penumbra de informações que a cada instante se torna mais sombria.

Porém, há alguém que "o" sabe.

Reside ele no Ocidente. Não é um homem, mas uma legião de homens, cuja imensa maioria é constituída de "homens da rua" como acima os descrevi. E abrange até figuras de relevo em alguns ambientes de especialistas vivendo exclusivamente no ar confinado de bibliotecas ou de laboratórios, das macro burocracias, ou ainda nos escritórios das grandes empresas.

* * *

É precipitado pensar que as manifestações de descontentamento de várias etnias na Rússia, como esta realizada em Verevan, conduzam o povo soviético a um processo de desmembramentos, à maneira de um leproso, cujas carnes putrefatas vão caindo.

Toda essa gente que "sabe" onde dará tudo isso se recruta nas vastas áreas de opinião pública constituídas pelos otimistas do Ocidente.

Tomando seus sonhos utópicos por pressentimentos "proféticos", interpretam a realidade presente como se a autogestão fosse realizar no mundo, afinal liberado das grandes estruturas, a era da concórdia perfeita e da paz eterna. Para alcançarem uma e outra, muitos são os utopistas que aspiram a que se fundam todas as nações, todos os sistemas filosóficos e religiosos, todas as ideologias, por mais opostas que sejam. Seria um fruto da "queda das barreiras ideológicas", seguida presentemente pela era do consenso universal, na qual não haveria mais polêmicas nem dissídios. E, portanto, deixaria de ser temerário e passaria até a ser desejável o desarmamento total. Seria a era ecumênica do diálogo que tudo resolve na concórdia. O comunismo, tornando-se autogestionário, se evanesceria como perigo para o Ocidente. E o Ocidente deixaria de ser um perigo para o mundo comunista. A humanidade inteira entoaria por fim o hino da convergência total.

Por sua vez, a morte do comunismo traria – oh suprema ventura para os otimistas! – a morte do anticomunismo.

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