P.08-09 | "MORTE" DO COMUNISMO |(continuação)

Desconfiar, sim, que um verdadeiro pânico da derrota dele no interior da Rússia seja, conjuntamente com o otimismo frívolo dos benfeitores, uma das causas das vantagens de que Gorbachev vai sendo cumulado...

Bastará, então, que um estalido súbito denuncie que Gorbachev está fraco, para que deixe de ser econômica e politicamente rentável apoiá-lo. Benesses e mordomias começarão então a retrair-se avaramente. E ai de Gorbachev!


Proposição dos otimistas: 6. O atual estado de miséria da Rússia tem algo de essencialmente instável aos olhos da burguesia e das massas do Ocidente, para as quais tudo quanto é trágico é improvável. E, quando chega a realizar-se, é efêmero. Assim, o natural é que Gorbachev se mantenha estavelmente com as rédeas na mão e que, se seus adversários "duros" alcançarem contra ele alguma vitória, esta seja meramente episódica e de curta duração. Desfechará assim numa catástrofe para os culpados e num happy-end para as vítimas. O "conservantismo" stalinista está fadado, pois, à catástrofe. E a perestroika e a glasnost ao triunfo. É o resultado imperativo da fatalidade histórica. A admitir o contrário, a vida seria insuportável para o otimismo ocidental filantrópico. Logo, a opressão segundo o estilo stalinista terá que acabar de vez.

Resposta da TFP: 6. Causa assombro que o pressuposto otimista sobre o efêmero da situação de miséria e de opressão na Rússia seja tomado como indiscutível por alguém. O Csarismo caiu em 1917. E de então para cá manteve ele toda a assim chamada União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, e inclusive o gigantesco Estado russo, na mais negra miséria. Uma miséria unida a uma pesada escravidão, a qual foi qualificada, a muito justo título, de "vergonha de nosso tempo" em documento da Congregação para a Doutrina da Fé, presidida pelo Cardeal Joseph Ratzinger (Instrução sobre alguns aspectos da "Teologia da Libertação", de 6 de agosto de 1984, XI, 10).

A outra face da miséria no império soviético é na verdade a escravidão. As condenações à morte por motivos políticos, o inferno da Lubianka, as prisões intérminas na Sibéria, os hospitais psiquiátricos abismaticamente lúgubres, a opressão policialesca incessante e omnipresente: quando a Rússia ainda não conseguiu se libertar de todos estes horrores, depois de mais de sete décadas de pesadelo, falar no efêmero de tudo quanto é terrível constitui afrontosa negação da mais evidente realidade histórica.

Quanto a este argumento, é melhor não perder tempo em refutá-lo; basta olhá-lo com desdém e passar adiante: "non ragioniam di 'lor' ma guarda e passa" (A Divina Comédia, Inferno, Canto III, v. 51) aconselhou Virgílio a Dante. E este seguiu o conselho. Façamos o mesmo.


Proposição dos otimistas: 7. Aliás, não é difícil normalizar a situação da Rússia: basta liberalizar tudo, que a ordem e a fartura, irrigadas pela liberdade, renascerão em todas as partes.

Resposta da TFP: 7. A liberdade é um grande bem. Nunca deixou de o ensinar a Santa Igreja. E particularmente o fez Leão XIII na encíclica Libertas Praestantissimum. Mas – e a Igreja o ensina igualmente – essa liberdade só é um bem na medida em que seja circunscrita pelos princípios da moral cristã e da ordem natural. Observar esses princípios, encontrar na aplicação concreta de cada um deles a justa norma, a perfeita medida do proceder humano, dotar a autoridade de todo o poder necessário para o exercício de sua missão, mas evitar que esse poder se exceda, fixar os limites que ele não pode ultrapassar, instituir para isto o complexo e sapientíssimo sistema dos grupos intermediários entre o Estado e os indivíduos, e, por fim, estabelecer ainda as normas de equilíbrio nas relações entre tais corpos intermediários e as liberdades individuais, eis ai uma ciclópica massa de serviço, impossível de ser levada a bom termo sem a ajuda inestimavelmente preciosa da graça de Deus.

Abstrair de tudo isso, imaginar que por um simples "soltar de cães" da liberdade, todas as coisas voltem espontaneamente aos seus eixos, é a utopia de mero primata.


Proposição dos otimistas: 8. Os movimentos autonomistas não ameaçam verdadeiramente Gorbachev. O império soviético é tão imenso que pode perder a maior parte de suas regiões não russas e ainda assim continuar muito grande. E, das repúblicas comunistas não integrantes da chamada URSS, várias delas poderão destacar-se do bloco soviético sem que este deixe de ser considerável.

Resposta da TFP: 8. O assunto está mal focalizado pelos otimistas. Para todos os que se habituaram a ver o império soviético com as dimensões gigantescas a que chegou, não pode deixar de causar uma impressão penosa e profundamente desprestigiante o presenciar que deste moloch se destacam incontenivelmente mais e mais parcelas, como a um leproso vão caindo as carnes putrefatas. E o efeito devastador desse processo paraleproso não pode deixar de abalar o prestigio de Gorbachev, à mesma medida que as "carnes" forem caindo de sua área de mando.


Proposição dos otimistas: 9. O comunismo morreu. Alegria ainda maior para o otimista: morre ipso facto o anticomunismo, no qual o otimista ocidental vê um incomodo profeta de desgraças, um desagradável pregador de austeridade, de ponderação, de coerência, de seriedade de espírito. Assim libertado de seus pesadelos, o burguês ocidental pode entregar-se às delicias da aurora do relativismo absoluto, frívolo e borboleteante, que constituirá para ele o céu na terra.

Resposta da TFP: 9. Realmente, segundo o provérbio clássico, aqueles que Deus quer perder, Ele previamente os torna loucos: "Quos Deus perdere vult, prius dementat".

Assim, o otimista ocidental delirante se compraz de antemão, e precipitadamente, com a vitória do líder russo. Ora, nada garante que Gorbachev não seja um mero camuflador de propósitos que não tem, e construtor de planos que ele mesmo sabe só se poderem realizar no reino da utopia. O ocidental otimista à outrance confia assim no seu inimigo de ontem, que presumivelmente também é seu inimigo hoje e o será amanhã.

Em sentido contrário, ele quer, ao mesmo tempo, ganhar distância dos anticomunistas, os dedicados e desassombrados paladinos da civilização ocidental e cristã. Se os magnatas do Ocidente conservarem esta mentalidade – quer vençam os comunistas, quer os anticomunistas – uma coisa é certa: esses otimistas cairão. Pois são sempre eles os grandes derrotados da História. E, merecidamente, novas elites, suscitadas pela Providência, os substituirão para a reta direção das coisas deste mundo.


Página 08-09 | DISCERNINDO, DISTINGUINDO, CLASSIFICANDO |

Burgueses de ontem, burgueses de hoje

Os seis burgueses de Calais, conjunto escultural de Rodin (1840-1917)

EDUARDO III, rei da Inglaterra, cercara Calais (cidade portuária francesa), em 1347. Após corajosa resistência de onze meses, os sitiados são reduzidos a parlamentar. O rei faz conhecer suas condições ao governador de Calais, Jean de Vianes: ele poupará a cidade se os seis principais burgueses lhe trouxerem as chaves da praça, vestidos apenas com uma espécie de camisola e com uma corda ao pescoço. Tal exigência deixa prever que, não contente com lhes impor essa humilhação, o soberano britânico os fará executar. Jean de Vianes reúne todo o povo na praça do mercado e lhe comunica as condições.

O cronista medieval Jean Froissart (século XIV) relata numa linguagem cheia de pitoresco esse famoso episódio:

* * *

"Um momento depois, o mais rico burguês da cidade, chamado Eustáquio de São Pedro, levantou-se e falou assim diante de todos eles: 'Senhores, seria uma grande dor e uma grande tristeza deixar perecer uma tão numerosa população, pela fome ou de outra maneira, quando a isso se pode encontrar remédio. E, ao contrário, seria uma grande caridade, e de grande mérito diante de Nosso Senhor, se se pudesse preservá-la de semelhante calamidade. De minha parte, eu tenho tão grande esperança de achar graça e perdão junto a Nosso Senhor, se eu morro para salvar esta população, que eu me ofereço em primeiro lugar. E eu me entregarei de boa vontade, vestido somente de uma camisola, a cabeça descoberta, os pés descalços e uma corda ao pescoço, à disposição do nobre rei da Inglaterra".

"Um outro muito honrado burguês, personagem de projeção, que tinha duas belas moças por filhas, levantou-se e falou do mesmo modo, dizendo que ele acompanhava seu compadre Eustáquio de São Pedro; ele se chamava Senhor Jean D'Aire. Após ele, levantou-se o terceiro, chamado Senhor Jacques de Wissant, personagem rico em bens móveis e domínios, dizendo que ele acompanharia os seus dois primos. Assim fizeram Pedro de Wissant seu irmão, depois o quinto e o sexto. E esses seis burgueses se desvestiram lá, no Mercado de Calais, não conservando senão um calção e uma camisola; e eles se puseram a corda ao pescoço, como as condições o exigiam.

"Vendo então homens e mulheres e seus filhos chorar, torcerem-se as mãos e lançar grandes gritos de dor, não há coração tão duro no mundo que não fosse tomado de piedade. Eles avançaram assim até a porta da cidade, escoltados por lamentações, gritos e lágrimas...".

Dirigiram-se então ao local onde estava o rei, o qual vinha seguido da rainha, de nobres e de grande multidão.

"O rei não disse uma palavra, mas lançou sobre eles um olhar cheio de furor, pois ele odiava terrivelmente os habitantes de Calais pelos grandes estragos e contrariedades que, no passado, eles lhe haviam causado no mar. Nossos seis burgueses se colocaram imediatamente de joelhos ante o rei e falaram assim juntando as mãos: "Nobre senhor e nobre rei, eis-nos aqui, todos os seis, de antiga burguesia de Calais e importantes negociantes. Nós nos entregamos, no estado em que vedes, à vossa inteira discrição, para salvar a restante população de Calais".

"O rei fixou sobre eles um olhar muito irritado, e entregue a uma grande cólera, não podia falar; e quando ele falou, foi para ordenar que lhes cortassem as cabeças imediatamente."

Vários dos presentes intercedem pelos seis burgueses sem nada obter, até que a própria rainha pede "pelo amor do Filho de Santa Maria e pelo amor de mim, de ter piedade desses seis homens", ao que o rei, afinal, acabou por aceder, entregando os burgueses à rainha para que os livrasse (in "Moyen Age", de André Lagarde e Laurent Michard, Éditions Bordas, Paris, 1966).

* * *

Compare o leitor a dedicação desses burgueses, que oferecem suas vidas para salvar sua cidade, com a política entreguista que vem sendo levada a cabo por altos setores da burguesia de nossos dias. Correm estes a aplicar grandes capitais e a comunicar know-how nos territórios de além Cortina de Ferro, para que não morra de inanição o inimigo que os quer devorar e a todo o Ocidente. Basta-lhes a promessa de que será lento o desaparecimento da burguesia e do sistema ocidental de vida, e que só se comsumará amanhã ou depois-de-amanhã, para já ficarem contentes.

Se rubor ainda houvesse em vossas faces, ó vós que hoje tendes nas mãos o poder do dinheiro, elas se incendiariam ao contemplardes os seis burgueses de Calais. Mas é próprio dos que se entregam à autodemolição, promoverem-na tendo na mente a frieza de um técnico, no coração a dureza de um ímpio, e nos lábios o sorriso otimista de um tolo.

C.A.


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