Gregório Lopes
SE A REVOLUÇÃO FRANCESA foi tão maléfica - e certamente ela o foi (ver nossas edições de maio a setembro/89) - quem aplainou seus caminhos?
Dentre os vários homens que se entregaram à inglória tarefa de preparar a formidável explosão anti-social e anti-religiosa de 1789, destaca-se o escritor François Marie Arouet, cognominado Voltaire (1694-1778). Quem foi ele?
Sem pretender, num simples artigo, apresentar uma biografia de Voltaire, esboçamos aqui - a propósito do bicentenário da Revolução Francesa - alguns rápidos traços de sua personalidade e de sua ação.
Voltaire. Sua figura era grotesca, como a de um hippie moderno (estátua em mármore de Houdon - 1778, Berlim, Academia de BiJfnfshaften)
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HOUVE TEMPO em que os homens eram designados pelo traço de sua psicologia, de sua virtude, ou mesmo de seu físico que mais os caracterizava. Assim tivemos Fernando, o Santo; Isabel, a Católica; Carlos, o Temerário; Henrique, o Navegador; Carlos, o Calvo; e tantos outros. Voltaire foi o Ímpio, como Judas fora o Traidor.
"Esmagai a Infame", era seu dito constantemente repetido contra a Santa Igreja Católica. Sua figura e suas atitudes eram grotescas, tinha algo já de um moderno hippie.
A biografia desse homem, que dedicou à impiedade os 84 anos de sua vida, é-nos relatada por um seu admirador e grande escritor, Jean Orieux ("Voltaire ou la Royauté de l'Esprit", Flammmarion, Paris, 1966,827 páginas). Nesse autor, inteiramente insuspeito, colhemos os traços da vida de Voltaire que seguem.
Nascido na burguesia, Voltaire era filho de um notário, e sua mãe uma senhora digna. Revoltado contra sua própria condição - tinha despeito de não ser nobre - não achou nada melhor para alimentar sua revolta do que denegrir infamemente sua própria mãe:
"Ele dá a entender muito claramente que sua mãe teria tido amantes e que ele seria filho de um deles. É o padre Chateauneuf - um libertino - que segundo ele seria seu pai. Em outra ocasião, penderá mais para M. Rochebrune, um nobre de Auvergne".
Aos 13 anos de idade tomou emprestado de uma mulher uma considerável quantia em dinheiro, assinando promissórias em troca. Quando a dívida foi cobrada, provou que, ao assinar as letras faltava-lhe ainda um mês para adquirir a maioridade, não sendo pois juridicamente responsável pelo pagamento ...
Apesar de ser "rico como um próspero banqueiro", aos 56 anos, morando na Prússia, "ele se acumpliciou com um traficante berlinense, um" judeu, Hirsch, para montar um negócio de especulação ilegal. Nada era mais suspeito que seu associado e sua associação". Tratava-se do seguinte: Frederico II, rei da Prússia, após uma guerra vitoriosa, tinha obrigado o Saxe a reembolsar todos os prussianos portadores de um título de empréstimo do Estado saxão, pelo valor nominal. Ora, esses títulos haviam caído muito abaixo de seu valor originário. Foi aí que Voltaire passou a Hirsch uma grande quantia de dinheiro para que ele fosse ao Saxe comprar esses títulos que ali se vendiam a um preço baixíssimo, a fim de exigir depois, a partir da Prússia, seu reembolso pelo valor nominal. Os dois "sócios" desentenderam-se e o escândalo veio a público.
Sabia-se na Europa que Catarina II assassinara seu marido para ascender ao trono da Rússia. Voltaire conhecia o fato, como todo mundo, mas era-lhe prestigioso manter a amizade da imperatriz, por isso limitou-se a brincar:
"Eu sei bem que lhe censuram algumas bagatelas a respeito de seu marido; mas são negócios de família, nos quais eu não me meto". A esse propósito, o escritor Horácio Walpole comenta: "Voltaire me faz horror com sua Catarina. Que belo tema para brincadeira é o assassinato de um marido!"
Catarina II, da Rússia. Para poder prestigiar-se com o seu apoio, Voltaire fez vistas grossas ao assassinato por ela empreendido de seu marido (Quadro de Lampi, Museu de L'Ermitage, Saint-Petersburg).
Certa ocasião, querendo fazer uma entrada prestigiosa em Paris, e sendo necessário para isso mostrar-se menos ímpio, pagou um padre capuchinho para ouvi-lo em "confissão" e dar-lhe a comunhão na Páscoa.
Para que lhe abrissem as portas da Academia Francesa, fez-se passar por devoto e dedicou versos a Bento XIV, então Papa.
A fim de escrever certos artigos anti-religiosos para a famosa "Enciclopédia" em elaboração, retirou-se a um convento beneditino, fingindo estar recolhido em oração e usando hábito e crucifixo, para poder assim ter fácil acesso à biblioteca dos monges. Depois comentou: "É um muito bom estratagema de guerra ir junto aos inimigos para abastecer-se de artilharia contra eles".
Viveu 17 anos com uma mulher casada - Mme. de Chatelet - e chegou a dividir seu leito com outro concubino que ela arranjara, além do próprio marido. Ocorreu de estarem os quatro no mesmo castelo!
Juntou-se também incestuosamente à própria sobrinha, viúva, Mme. Denis.
"Ele próprio se incensava sem pudor". Ademais, não admitia críticas a suas obras, e quando as recebia entrava "em crise de furor".
Quando assistia a representações de suas peças "ele saltava por vezes na cena e corria entre os atores. Em sua poltrona, ele exclamava, gemia, chorava enquanto agitava o lenço, e até desmaiava caído sobre seu assento". Reservava, no teatro, até 400 lugares para uma claque encarregada de aplaudir, e ele próprio, de seu camarote, dava os sinais convencionais.
Desprezava o povo simples, ao qual chamava "a canalha", queria que se "proibisse o estudo para os trabalhadores", e dizia que "o maior serviço que se possa prestar ao gênero humano consiste em separar o povo tolo das pessoas de bem, para sempre".
Diz seu amigo d' Argenson que Voltaire era "reconhecidamente um poltrão".
Um oficial do Rei da França, atacado num escrito de Voltaire, proclamou que iria a Genebra, onde então residia o poeta, para "cortar-lhe as orelhas". A ameaça amedrontou sobremaneira Voltaire. Um dia em que este recebia Cramer, para tratar da publicação de um escrito sobre a "bravura", o editor, em meio à conversa, informou-o de que chegara a Genebra um oficial francês. Foi então que Cramer "sem nada compreender, viu Voltaire afundar em sua poltrona, seus joelhos e suas mãos tremiam de maneira inquietante: 'Fechem-se logo as portas' gritou o poeta apavorado. Depois, voltando-se para Cramer estupefato: 'Voltai logo à cidade e fazei correr o boato de que eu acabo de morrer subitamente". Voltaire mandou ainda investigar na cidade, e só sossegou quando soube que o oficial que ali chegara nada tinha a ver com o que o ameaçara.
Certa vez correu o risco de ver-se envolvido num processo referente à profanação de um Crucifixo. A esse propósito "ele tinha angústias tão cruéis que o lançavam em crises delirantes: ele sapateava, rolava por terra, subia pelas cortinas urrando de terror".
Na corte de Frederico II, na Prússia, os empregados tinham o privilégio de recolher para si, todas as noites, as velas que sobravam nos candelabros, para depois revendê-las. Pois bem, Voltaire, quando lá viveu, adiantava-se a eles e as recolhia ...
Mais ainda: "ele adquiriu o hábito de dirigir-se toda noite, antes do jantar, ao apartamento do rei. Para ir, iluminavam-lhe o caminho, mas para voltar ele próprio o iluminava, tomando do apartamento do rei uma vela que escolhia bem grande. Repetindo duas ou três vezes por noite essas idas e vindas, ele ganhava assim três velas quase intactas .... O manejo não passou desapercebido do rei, a quem o procedimento pareceu infame".
O médico que o viu morrer, Tronchin, escreveu: "Eu quereria que todos os que foram seduzidos por seus livros fossem testemunhas de sua morte. Não é possível manter-se ante tal espetáculo .... Pouco tempo antes de morrer entrou em agitações horríveis, gritando com furor: 'Eu estou abandonado por Deus e pelos homens'. Mordia os dedos, e levando as mãos a um vaso noturno, tomando o que ali havia, ele o bebeu".
Mme. Villette, dona da casa em que morreu Voltaire, contará mais tarde ao Pe. Depery que descreverá a seguinte cena: Voltaire "via o diabo nas cercanias da cama e gritava como um condenado: 'ele está lá, ele quer me pegar, eu vejo o inferno "'.
No dia 30 de maio de 1778, às 11 horas, Voltaire estava com os olhos fechados quando "repentinamente lançou um grito atroz, terrível, interminável" e morreu. Todos ficaram aterrorizados.