P.06-07 | DISCERNINDO, DISTINGUINDO, CLASSIFICANDO |

Medalhas a granel

QUANDO Roseana Sarney, filha do atual Presidente da República foi condecorada, em novembro de 1988, pelo Ministro do Exército, Gal. Leônidas Pires Gonçalves, com a Medalha do Pacificador - destinada, em princípio a quem se salienta como "amigo das Forças Armadas" - a maioria dos brasileiros ficou sem entender o significado do ato. Mas a surpresa cresceu de ponto, pouco depois, quando o arquiteto comunista Oscar Niemeyer foi agraciado com a Medalha Biblioteca Nacional, por indicação do Ministro da Cultura, José Aparecido de Oliveira. A propósito do fato, a revista "Veja" (30-11-88) informou que o próprio "Niemeyer ficou constrangido porque não se lembrou de ter feito nada em prol da Biblioteca Nacional". "Não sei por que me indicaram", comentou ele.

Hoje em dia, muitos poderão querer medalhas por vaidade pessoal, mas de fato ninguém lhes dá grande valor. As condecorações, entretanto, já foram altamente apreciadas, e poder ostentar uma delas ao peito constituía uma honraria a poucos concedida e estimada por todos.

* * *

A que se deve uma tal decadência no apreço devido às condecorações?

A razão fundamental é que na "bolsa de valores" da civilização atual, as noções de honra e dignidade tiveram uma queda vertiginosa: gozando outrora da mais alta consideração, passaram, em nossos dias, praticamente ao nível zero.

O leitor consulte, por exemplo, os jornais quotidianos: qual é a notícia sobre um homem público que toma alguma atitude em função de um ponto de honra? Há interesses, há rasteiras políticas, há falcatruas, há o que se quiser. Mas, honra... Não há notícia. A própria palavra é raramente encontrada na imprensa.

Ora, enquanto as condecorações significaram uma honraria que se atribuía a alguém em virtude de um ato altamente louvável praticado - em geral um ato de bravura em combate - ou da posse de uma condição de rara excelência, elas refletiam o apreço dos povos pelo que é digno de especial estima. Baseavam-se numa concepção hierarquizada da vida social, na qual os mais excelentes a algum título eram os mais considerados. E por isso desejava-se que ostentassem o sinal exterior de sua grande honra. Toda a sociedade se beneficiava e elevava pelo fato de seus melhores elementos serem assim indicados à consideração geral.

Para falar das mais antigas e famosas condecorações, originadas das Ordens de cavalaria, lembremos, por exemplo, o Tosão de Ouro, outorgado pela Casa d'Áustria; a Ordem do Espírito Santo, pelos soberanos franceses; as Ordens religiosas e militares espanholas de Santiago e Calatrava; e a portuguesa Ordem de Cristo. Recebê-las era raro, e implicava numa grande honraria.

Hoje, as condecorações passaram a ser outorgadas de modo indiscriminado. Em lugar dos heróis e de pessoas altamente qualificadas, começaram a ser beneficiados os políticos, os amigos, os jogadores de futebol, os artistas etc. Para atender a demanda de um público tão vasto, aumentou o número das condecorações, proporcionalmente à diminuição de seu significado e até de seu valor material. Confeccionadas que eram de ouro, prata, pedras preciosas, passaram a ser fabricadas de uma qualquer liga metálica de pouco preço, em geral esmaltadas.

Em 1988, o governo de Minas Gerais distribuiu 172 medalhas da Inconfidência, a mais alta condecoração daquele Estado! Mas, de longe, o recorde até agora está com o governo de São Paulo que, em 1982, entregou, num só dia, 400 medalhas da Ordem do Ipiranga. Quando governador de Brasília, José Aparecido criou diversas condecorações e as distribuía a granel, o que lhe valeu o epíteto de "Zé das Medalhas".

Falamos do passado, falamos do presente. E o futuro? Haverá nele lugar para condecorações? A pergunta não nos parece bem posta. Pois as condecorações, em última análise, nada mais são do que uma alta forma de reconhecimento público da honra. Foi a substituição do amor à honra - a qual se evanesceu - pelo da vulgaridade, que ocasionou o desprestígio das condecorações.

De modo que a pergunta pertinente seria: como se colocará de futuro a questão da honra?

Pondo os olhos para além das presentes misérias, para o Reino de Maria predito de algum modo em Fátima por Nossa Senhora, parece normal que, com a civilização cristã, sejam restauradas em sua plenitude as noções de cavalaria católica, de luta pelo bem e de honra, todas elas tão afins com a religião. Restaurada a noção de honra, estará feito o principal nesse campo. Os modos adequados para reconhecê-la de público surgirão naturalmente.

C.A.

O tosão de ouro, uma das mais famosas condecorações da Cristandade. Da corrente de ouro pende um carneiro.


| NATAL |

O Natal do chouan

NAS MARGENS do Couesnon, nessa região de Fougères que, de 1793 a 1800, foi teatro da epopeia dos chouans (camponeses do noroeste da França que se insurgiram contra a Revolução Francesa, em defesa do Trono e do Altar), numa noite de inverno de 1795, um destacamento de soldados da República revolucionária seguia por um atalho bordejando a floresta.

De ombros caídos, com ar aborrecido e fatigado, vergados ao peso de enorme mochila e da espingarda que levavam a tiracolo, lá iam, conduzindo um camponês que, ao cair da noite, emboscado nos juncos, fizera fogo sobre o pequeno grupo. A bala atravessara o chapéu do sargento e, fazendo ricochete, fora quebrar o cachimbo que um dos soldados fumava.

Imediatamente perseguido, acossado, encurralado contra uma escarpa, o homem fora preso e desarmado. Seguia de mãos amarradas, com ar impassível e duro. Os seus pequenos olhos claros espiavam de fugida as sebes que orlavam o caminho e os atalhos tortuosos que se abriam aos lados. Dois soldados levavam enroladas nos braços as extremidades da corda que lhe apertava os pulsos.

Na encruzilhada de Servilliers, o sargento mandou fazer alto: os homens, derreados, ensarilharam as armas, atiraram as mochilas para a erva, apanharam ramos secos, juncos e folhas, que amontoaram no meio da clareira, e fizeram uma fogueira, enquanto dois deles amarravam solidamente o camponês a uma árvore, com a corda que lhe prendia as mãos. O chouan, com os olhos vivos e singularmente móveis, observava todos os gestos dos seus guardas. Não tremia, não dizia palavra: mas a angústia contraía-lhe as feições: era evidente que julgava a morte próxima.

A sua ansiedade não passou desapercebida a um dos azuis (soldados da Revolução) que o amarravam. Era um adolescente franzino, de ar zombeteiro e vicioso. Enquanto apertava os nós, ia troçando da aflição do prisioneiro, naquela fala característica de certos bairros populares de Paris:

- Não te assustes, flor! Não é para já; ainda tens pelo menos seis horas de vida...

- Amarra-o bem, Pedrinho! Não o podemos deixar voar...

- Não se aflija, sargento Torquatus - respondeu o rapaz - havemos de o levar sem novidade ao general. Sabes, cão - continuou, dirigindo-se ao camponês, que retomara o aspecto impassível - não imagines que vais ser tratado como ci-devant (nobres, que em geral eram guilhotinados). A República não é rica, e há falta de guilhotinas; mas hás-de ter a tua continha de bons balázios de chumbo; seis na cabeça, seis no corpo. Vai pensando nisso, meu lindo, até amanhã de manhã. Sempre te distrais...

Dito isto, Pedrinho foi sentar-se entre os camaradas, ao pé do fogo. E tirando do saco um pedaço de pão grosseiro, começou a comer tranquilamente. Quando acabou de comer o pão, Pedrinho pôs-se a limpar a espingarda. Escolheu uma bala de calibre e, segurando-a delicadamente entre os dedos, disse ao camponês, que lhe seguia todos os movimentos com o olhar:

- Estás a ver, meu menino? Esta é para ti!

Introduziu-a no cano da espingarda e, a servir de bucha, meteu um papel amarrotado. Todos os homens desataram a rir, e cada um disse uma graça, no prazer maldoso de saborear a agonia do infeliz.

-Tenho aqui uma dose igual para te servir! - gritou um.

- Vais ficar que nem uma peneira... - gracejava outro.

- Eu guardo-me para o fim: uma em cada ouvido! - gritou o sargento.

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