mas enxadas ou bastões. É difícil imaginar como rapazes ou moças de 15 ou 16 anos - era grande o número de Khmers vermelhos com essa idade - puderam chegar a esse grau de crueldade. A hipótese de uma possessão diabólica não parece impossível...
* * *
Está fora de cogitação que os Khmers vermelhos, tão bem apoiados, constituíssem um bando de loucos. Pergunta-se então qual o interesse da Revolução comunista mundial na "experiência" cambodgeana.
"Dir-se-ia que os movimentos mais velozes (da Revolução) são inúteis. Porém não é verdade. A explosão desses extremismos levanta um estandarte, cria um ponto de mira fixo que fascina pelo seu próprio radicalismo os moderados, e para o qual estes se vão lentamente encaminhando (...). O fracasso dos extremistas é, pois, apenas aparente. Eles colaboram indireta, mas possantemente, para a Revolução, atraindo paulatinamente para a realização de seus culposos e exacerbados devaneios a multidão incontável dos 'prudentes', dos 'moderados' e dos medíocres" (3).
Mario Beccar Varela
HAIGN NGOR, um jovem médico de Phnom Penh, faz um impressionante relato das atrocidades que viu e sofreu no Cambodge, durante o domínio dos Khmers vermelhos, chefiados por Pol Pot. De seu livro "Uma Odisseia Cambodgeana" (Editora Fixot-Filipacchi), a revista "Paris-Match", de 30 de setembro do último ano, publicou um significativo extrato, do qual recolhemos o que segue.
"Nem um momento de repouso, nem um dia de descanso, nem um minuto de alegria"
"Às quatro horas da manhã os Khmers vermelhos tocavam o primeiro sino". Era o despertar no campo de trabalhos forçados, no qual Ngor se fazia passar por um ex-motorista de táxi, pois todos os que tinham alguma instrução superior eram mortos.
Transcorrida meia hora do toque, era preciso juntar-se à própria equipe e começar a cavar canais de irrigação: "Nem um momento de repouso, nem um dia de descanso, nem um minuto de alegria. Trabalhos forçados perpétuos para poder ficar vivo".
Os alto-falantes martelavam: "Unamo-nos para construir um Cambodge esplêndido e democrático, uma nova sociedade de igualdade e de justiça".
Hora do almoço: longas filas para receber na cozinha comunitária "nossas miseráveis porções de arroz cozido".
A tarde era mais longa e mais quente. "O pior momento do dia chegava: o fim da tarde. Era o momento em que os soldados vinham para prender alguns. Não se sabia quantos destes iam ser executados e esta incerteza tornava a espera ainda mais insuportável ".
Trabalhava-se até tarde "sob a luz da lua". À meia-noite "o sino tocava em meio aos pios das corujas e ao concerto dos grilos. Estupidificados, nós éramos então conduzidos a nossas redes, junto às árvores. Quatro horas depois, o sino nos acordava de novo. Poder comer e dormir: nós não pensávamos senão nisso..."
Ngor, tendo encontrado uns frutos selvagens, dissimulou-os junto à sua rede. Os meninos-espiões os descobriram. Ngor é preso e advertido:
- "Querias, pois, guardar coisas pessoais. É proibido. Eu soube também que chamas à tua mulher de 'querida'. Não há 'queridas' aqui. É proibido."
Guerrilheiros do Khmer vermelho. Ainda crianças, mas já tomados pelo ódio.
Em consequência de seu 'crime", Ngor, puxado por uma corda amarrada tão fortemente a seu braço que impedia a circulação do sangue, é conduzido a um mangueiral. "Ao pé de cada mangueira estava atado um prisioneiro. Passei diante de uma mulher, deitada de bruços sobre um banco, com os pulsos e os pés esticados para os quatro cantos por meio de cordas que os amarravam. Ela voltou o rosto e nos olhou com os olhos esbugalhados. Formigas vermelhas cobriam seus braços, e seu dedos estavam ensanguentados."
Quanto a Ngor, fizeram-no sentar-se com o dorso apoiado num tronco e as mão amarradas atrás da árvore. Foram-se. "Alguma coisa subia pelo meu pescoço. Picada. Uma formiga vermelha! Eu estava sentado sobre um formigueiro".
Assim ficou Ngor abandonado às formigas. A tortura era tremenda.
À tarde, um soldado se aproxima com uma tenaz e se dirige à mulher deitada sobre o banco. Tenta fazê-la confessar que seu marido era oficial do exército. Ela nega.
"O homem subiu sobre o banco, colocou seu pé esmagando a mão amarrada da mulher, com a tenaz segurou algo, e o puxou com um golpe seco.
Um urro desesperado encheu a clareira. O homem se pôs ereto, um pedaço sanguinolento pendia da tenaz, preso entre as hastes cerradas.
"- Se tu não me dizes a verdade, amanhã eu te arrancarei outra unha.
"A mulher se contorcia de dor sobre o banco".
Deitaram Ngor no chão, e enquanto um guarda o mantinha com a cabeça fixada ao solo, o torturador colocou a mão direita do prisioneiro sobre uma raiz da mangueira, imobilizando-a com o pé.
"Em seguida pegou seu facão e de um só golpe seccionou-me o dedo mínimo. Uma dor atroz subiu pelo meu braço e veio explodir em meu cérebro".
Ainda não contentes, o guarda segurou a perna de Ngor, enquanto o outro visava desta vez o tornozelo, ferindo com o facão: "Não suficientemente forte para cortar a articulação, mas o necessário para deixar o osso à mostra (...). As formigas vermelhas, atraídas pelo sangue, devoravam-me as mãos".
No pé, era "insustentável a dor do nervo exposto (...). Foi uma longa noite. Eu ouvia os gemidos da mulher sobre o banco". Via por terra o pedaço decepado de seu dedo mínimo, coberto de formigas!
À tarde, um novo prisioneiro é trazido: "uma mulher grávida. Ao passarem por mim, eu a ouvia repetir que seu marido não era soldado. Ela foi amarrada a uma árvore". O khmer comunista, com uma longa faca, "rasgou suas vestes, abriu-lhe o ventre e tirou o bebê. Desviei os olhos, mas não havia meio de escapar aos gritos de sua agonia. Estes se transformaram em gemidos e depois veio o silêncio. Ela estava morta. O assassino passou tranquilamente diante de mim, levando o feto pelo cordão. Ele o suspendeu no teto da prisão, ao lado de outros já secos, negros e mumificados". Alguns pequenos lobos aproximaram-se, atraídos pelo odor do cadáver da mulher. "Começaram a decepá-lo, com muitos uivos e ruídos de mastigação".
Pela manhã, os khmers vermelhos arrancaram outra unha "à mulher sobre o banco".
Por fim, levam Ngor de volta: "Minha perna direita estava inchada desde os artelhos até o alto. Cada vez que eu punha o pé no chão, a dor lancinante subia até o quadril".
A certa altura do caminho, "deram-me um pontapé no flanco. Eu caí num buraco (...) Senti que colocavam o pé sobre meu pescoço e o esfregavam como se faz para apagar uma ponta de cigarro". Nessa posição, e com o cano do fuzil apontado para si, Ngor ouvia os khmers vermelhos dizerem o provérbio que costumavam aplicar aos prisioneiros: "Se tu vives, não se ganha nada. Se tu morres, não se perde nada".
Jackson Santos
Gregório Lopes
As TROPAS vietnamitas entraram no Cambodge nos últimos dias de 1978. Os Khmers vermelhos, chefiados por Pol Pot, refugiaram-se então junto ao litoral e à fronteira com a Tailândia, e mesmo dentro desta — onde ao que parece, nestes quase onze anos, não foram incomodados por ninguém... - iniciaram uma ação guerrilheira no Cambodge, de pequenas proporções, que se estende até hoje. Atividade que inclui a disseminação de minas nos arrozais, destinadas a mutilar os que nelas toquem, bem como incursões em vilarejos e regiões montanhosas, matando líderes locais. A meta da guerrilha parece ter sido a de habituar os cambodgeanos à sua presença, à espera do momento oportuno para retomar o poder.
Terá chegado esse momento?
Em setembro passado, as últimas tropas vietnamitas de ocupação, obedecendo a uma inesperada palavra de ordem (de Moscou?), deixaram o Cambodge.
Hun Sen, atual primeiro-ministro cambodgeano, títere manobrado pelo regime vietnamita (e portanto pelos russos), conta com uma força regular superior à soma dos Khmers vermelhos (30 mil homens) com outros dois grupos guerrilheiros que dependem do príncipe Norodon Sihanouk (total dos três, 55 mil homens).
Mas o fator número não é decisivo quando conspiratas e altos interesses entram também em jogo. Sihanouk, por exemplo - que governou o Cambodge de 1960 a 1970, e parece contar com as simpatias dos Estados Unidos - está advogando um governo de consenso... incluindo os Khmers vermelhos!
O fato é que, com a perspectiva de retorno dos Khmers vermelhos, "um indizível terror" se apoderou da população, "as imagens obsedantes voltam", "o medo se lê nos olhos", descreve o enviado especial da revista L'Express; a lembrança de que, em menos de quatro anos, 70% das mulheres sobreviventes estavam viúvas... A comissão de inquérito instalada para apurar a extensão do genocídio concluiu haver 3,4 milhões entre mortos e desaparecidos (a população atual é de 7,5 milhões).
Pin Yathay antes da tomada do poder pelos Khmers vermelhos, em 1975, e no dia em que conseguiu fugir do Cambodge.