e pagar o preço do estranhamento que isso produzisse entre os fiéis católicos, como de fato ocorreu.
Catolicismo — Um tão grande castigo a pairar sobre o mundo indica que a conduta da sociedade humana atual está em contradição com os princípios que Deus queria que nela vigorassem. É possível destacar o ponto em que reside essencialmente essa contradição?
Antonio Borelli Machado — Para que o público de nossos dias compreenda a que distância se está da reta ordem das coisas vem a propósito citar um famoso texto de Leão XIII: “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados. Nessa época, a influência da sabedoria cristã e a sua virtude divina penetravam as leis, as instituições, os costumes dos povos, todas as categorias e todas as relações da sociedade civil. Então a religião instituída por Jesus Cristo, solidamente estabelecida no grau de dignidade que lhe é devido, em toda parte era florescente, graças ao favor dos príncipes e à proteção legítima dos magistrados. Então o sacerdócio e o império estavam ligados entre si por uma feliz concórdia e pela permuta amistosa de bons ofícios. Organizada assim, a sociedade civil deu frutos superiores a toda expectativa, frutos cuja memória subsiste e subsistirá, consignada como está em inúmeros documentos que artifício algum dos adversários poderá corromper ou obscurecer” (Encíclica Immortale Dei, de 1° de novembro de 1885, n° 28).
Ora, os Estados de nossos dias, em decorrência do laicismo que professam, se sentem desobrigados de ajustar as normas de conduta individual e social aos Dez Mandamentos da Lei de Deus, e de conferir à Igreja “o grau de dignidade que lhe é devido”. Em consequência, vai se implantando mundo afora toda espécie de transgressão às Leis natural e divina, como o divórcio, o aborto, a união homossexual etc.
Assim, o laicismo de Estado, que se proclama neutro em matéria de Religião e de Moral, se revela inimigo obstinado da Igreja Católica e da Moral cristã. E isso é uma constante da História: quem se declara neutro entre a verdade e o erro, na realidade se coloca a favor de todos os erros contra a única verdade. Tal a posição do laicismo em face da Igreja verdadeira.
O laicismo não é neutro em matéria de religião, mas militantemente ateu. E isto o indica Leão XIII, na mesma encíclica Immortale Dei: “Relativamente à religião, pensar que é indiferente tenha ela formas disparatadas e contrárias equivale simplesmente a não querer nem escolher nem seguir qualquer delas. É o ateísmo menos o nome” (n° 37).
O laicismo é, pois, a “não religião” do mundo moderno, isto é, o ateísmo; ateísmo doutrinário e prático, que pervade toda a sociedade. Sobre esta paira a Mensagem de Fátima, que avisa: ou a sociedade se converte e faz penitência, ou virá um Castigo de proporções cósmicas.
Como alimentar “essa grande esperança de poder alcançar uma nova relação positiva entre mundo e Igreja”? — Para as pessoas que estavam animadas de tal esperança, não convinha absolutamente que o 3° Segredo fosse revelado em 1960...
Catolicismo — Quando surgiu na Igreja esse desejo de estabelecer uma “relação positiva” com o mundo?
Antonio Borelli Machado — A palavra mundo aparece nos Evangelhos ora com um sentido genérico, ora para designar os que não aceitavam a pregação de Nosso Senhor Jesus Cristo e se opuseram a Ele. Neste segundo sentido aparece, por exemplo, no Evangelho de São João, nos versículos 18 e 19 do capítulo 15: “Se o mundo vos odeia, sabei que antes odiou a mim” (Jo 15,18). E logo em seguida: “Porque não sois do mundo, [...] por isso o mundo vos odeia” (Jo 15,19).
Esta mesma sina atinge todos os discípulos de Cristo, desde então até os dias de hoje. Donde o fato de a parcela mais tíbia do campo católico tentar arrefecer o ódio do mundo entrando em composição com ele. Está na natureza decaída do homem e por isso se manifestou em todos os períodos da história da Igreja. É só abrir os compêndios para constatá-lo.
Com uma característica fácil de perceber: os que cedem a essa tentação procuram ficar a meio caminho entre a verdade e o erro.
Vamos diretamente aos tempos modernos: Erasmo de Rotterdam (1466–1536), célebre humanista, difundia “um espirito de reação contra a escolástica, de liberdade de pensar e simplificação do cristianismo” *, o que o conduziu a uma tentativa de aproximação com Lutero — fracassada devido ao carácter belicoso deste último. Assim, desde a Pseudo-Reforma protestante e a Renascença, uma corrente de católicos, largamente inspirada em Erasmo, tentava entrar em composição com os erros de sua época.
A ideia de um reatamento da Igreja com o mundo resultante da Revolução Francesa foi preconizada pelos católicos liberais do século XIX, a partir de Félicité de Lamennais, logo condenado por Gregório XVI (1831–1846).
Pio IX (1846–1878) compendia os erros do liberalismo católico no Syllabus praecipuorum nostrae aetatis errorum (Silabo dos principais erros de nossa época), de 8 de dezembro de 1864, os quais ele sintetiza na proposição 80: “LXXX. O Romano Pontífice pode e deve se reconciliar e recompor com o progresso, com o liberalismo e com a civilização moderna”.
Observe-se desde logo que a oposição da Igreja não era contra o progresso em si, mas contra o que este trazia de revolucionário em seu bojo, com vistas a demolir o que a sociedade do tempo, já decadente, conservava de bom e de conforme aos princípios da ordem natural e cristã.
A posição firme de Pio IX foi, entretanto, contraposta pelo pontífice seguinte, Leão XIII (1878–1903), que promoveu na França a política de ralliement com a república nascida da Revolução Francesa, à qual se aludiu acima (cfr. 2ª Pergunta). Esse pontífice esperava que tal política, conduzida com obstinada determinação durante todo o seu pontificado, fosse continuada pelos Papas sucessivos. Isso certamente teria acontecido se seu Secretário de Estado, o cardeal Mariano Rampolla del Tíndaro, tivesse sido eleito Papa, como se acreditava. A imprevista eleição do cardeal Giuseppe Sarto, com o nome de Pio X (1903-1914), frustrou a continuidade imediata dessa política.
Ela ressurge de forma já bem definida, em meados dos anos 30, no Pontificado de Pio XI (1922–1939), nas asas do otimismo e da abertura para o mundo propugnada pelo movimento de Ação Católica*. No campo intelectual, alimentavam posição análoga autores muito apreciados nesses mesmos meios da Ação Católica, especialmente Jacques Maritain com seu livro Humanismo integral (1936).
Desde então, a atitude de ralliement com o mundo moderno não deixou de se manifestar claramente nos ambientes católicos liberais, mas só foi publicamente assumida, quase meio século depois, pelo Papa João XXIII (1958–1963). No discurso de abertura do Concílio Vaticano II (11 de outubro de 1962), referindo-se àqueles que “nas presentes condições da sociedade humana, não são capazes de ver senão ruínas e calamidades”, o Pontífice declara: “Mas a Nós parece que devemos discordar inteiramente desses profetas de desgraça, que anunciam acontecimentos sempre infaustos, como se estivesse iminente o fim do mundo” (subtítulo Opportunitas celebrandi Concilii).
Com a promulgação da Constituição Pastoral Gaudium et spes, por Paulo VI (1962-1978), ao final do Concílio (1965), a política de ralliement com o mundo moderno foi afinal decretada e estendida a todo