O Cardeal Agostino Casaroli, Secretário de Estado da Santa Sé sob o pontificado de Paulo VI e condutor dessa política, declarou em 1974, quando esteve em Cuba, que os católicos desse país se consideravam felizes sob o regime ali vigente. Era uma maneira clara de indicar que tal política visava a “queda das barreiras ideológicas” entre Igreja e comunismo*.
Essa distensão dos católicos face ao comunismo se desenvolvia em duas frentes. A frente propriamente diplomática — indicada pela palavra Ostpolitik — e a frente pastoral, expressa, no Concílio Vaticano II, pela Constituição Pastoral sobre a Igreja no mundo deste tempo, mais conhecida pelas suas palavras iniciais Gaudium et spes, à qual já nos referimos (cfr. 5ª Pergunta). Por deste tempo entenda-se o mundo moderno, pois a Exposição introdutória desse documento é intitulada precisamente Da condição do homem no mundo hodierno.
Tal abertura da Igreja ao comunismo não passou despercebida aos próceres do partido. Assim, Roger Garaudy (1913-2012), elemento de destaque do Partido Comunista Francês (do qual depois foi excluído por suas posições independentes, tendo aderido ao islamismo, após uma passagem pelo protestantismo e pelo catolicismo), escreveu em livro: “A grande novidade do Vaticano II — expressa no texto Gaudium et Spes, de 1966 [sic! é de 1965] — era a abertura ao mundo, a renúncia à pretensão de governá-lo, para, pelo contrário, servi-lo, à luz da humildade evangélica, reconhecendo ‘a autonomia das realidades terrestres’. [...] Em nenhum outro lugar do mundo, a não ser na América Latina, esta mensagem sobre a missão libertadora da Igreja teve eco maior. Partindo de uma situação histórica de miséria e de opressão, e das práticas concretas das ‘comunidades eclesiais de base’, nasceram desta dupla experiência, a partir de 1970, as teologias da libertação. Elas se baseavam na opção evangélica preferencial pelos mais desprovidos” *.
Hoje é sabido que João XXIII desejava imperiosamente que nessa Magna Assembleia estivessem presentes representantes do Patriarcado de Moscou. O governo soviético russo concordou em dar autorização para que a Igreja Ortodoxa Russa enviasse esses representantes, com a condição de que o Concílio se abstivesse de qualquer condenação do comunismo. O Papa aceitou essa condição*.
Esse fato explica que a petição de 213 Padres conciliares em sentido oposto — isto é, de que o Concílio condenasse os erros do marxismo, do socialismo e do comunismo* — não tivesse sido levada em conta nem por João XXIII nem por Paulo VI.
A Gaudium et spes limitou-se a uma análise ultracompreensiva das diversas formas de ateísmo (GS n°s 19, 20 e 21), análise essa que desfecha numa declaração de que “credentes et non credentes” “devem contribuir para a reta edificação deste mundo no qual vivem em comum”, “o que certamente não pode ser feito sem um sincero e prudente diálogo” (GS n° 21).
Mas é possível haver “um sincero e prudente diálogo” com dirigentes ateus de um Estado laico assanhado contra a Igreja, como a Gaudium et spes descreve logo na frase seguinte?: A Igreja “deplora, portanto, a discriminação entre crentes e não crentes, que alguns governantes, não reconhecendo os direitos fundamentais da pessoa humana, introduzem injustamente” (GS n° 21).
Como imaginar, pois, que esses governantes se prestassem a colaborar para uma “reta edificação deste mundo no qual vivem em comum”? — Era uma esperança frustra, como provaram os 50 anos decorridos desde então.
Portanto, não é excessivo o uso da palavra ralliement para indicar que a Ostpolitik vaticana visava efetivamente obter a colaboração dos ateus comunistas para uma obra comum.
O 3° Segredo de Fátima nos apresenta uma imensa fileira de leigos católicos de todas as condições sociais, precedidos por Papa, bispos e sacerdotes, religiosos e religiosas, que sobem uma escabrosa montanha, no cimo da qual são recebidos a tiros e setas por um grupo de soldados. Esta cena evoca os pelotões de fuzilamento de regimes comunistas...
Tal lembrança teria sido inoportuna em tempos de ralliement com o comunismo!
Assim, se revelado em 1960 e oportunamente comentado, o 3° Segredo levantaria dificuldades para tal política. Seus mentores consideraram mais seguro não divulgá-lo.
Catolicismo — Que consequências acarretou para a vida da Igreja essa abertura ao mundo moderno?
Antonio Borelli Machado — Consequências muito graves, pois eliminou as barreiras que protegiam os fiéis da contaminação dos erros do mundo moderno. Com efeito, a queda das barreiras ideológicas entre a Igreja e o mundo teve como resultado precisamente levar os fiéis a abdicarem de princípios inalienáveis da doutrina católica — o que, em consciência, não poderiam fazer — e a assumirem em larga escala o modo de pensar e de agir do mundo, exacerbando todos os problemas que a pastoral da Igreja tem de enfrentar em nossos dias.
Esta consequência, aliás, não escapou ao olhar solerte do Cardeal Ratzinger. Eleito Pontífice no Conclave de 2005, em importante discurso à Cúria romana por ocasião da apresentação dos votos natalícios, em 22 de dezembro desse mesmo ano, advertiu: “A questão torna-se mais clara se, em lugar do termo genérico ‘mundo de hoje’, escolhêssemos um outro mais preciso: o Concílio devia determinar de modo novo a relação entre Igreja e idade moderna. [...] Quem esperava que com este ‘sim’ fundamental à idade moderna todas as tensões se dissolvessem e a ‘abertura ao mundo’ assim realizada transformasse tudo em pura harmonia, subestimou as tensões interiores e até as contradições da própria idade moderna: subestimou a perigosa fragilidade da natureza humana que, em todos os períodos da história e em toda configuração histórica, é uma ameaça para o caminho do homem. [...] Também em nosso tempo a Igreja continua sendo um ‘sinal de contradição’ (Lc 2, 34). [...] Não podia ser intenção do Concílio abolir esta contradição do Evangelho em face dos perigos e dos erros do homem”.
Ora, tivesse o 3° Segredo sido entendido e orientado as opções da Hierarquia da Igreja, ter-se-ia evitado que os fieis se contaminassem com os erros do laicismo dos Estados modernos.
Catolicismo — Como afinal se chegou à divulgação do 3° Segredo?
Antonio Borelli Machado — O Papa João Paulo II fora vítima de um sacrílego atentado à bala em 13 de maio de 1981, no próprio dia em que se comemorava a primeira aparição de Nossa Senhora em Fátima. Essa coincidência obviamente levava o mundo católico a se perguntar se havia alguma relação entre o atentado e as profecias de Fátima. É compreensível que o próprio Pontífice deitasse especial atenção no 3° Segredo. Assim, ainda no Policlínico Gemelli, no qual esteve entre a vida e a morte, logo que pôde pediu para ver o Segredo. A associação entre o atentado que sofrera e o martírio de um Papa nele descrito era impressionante, embora não absoluta, uma vez que no Segredo o Papa morre e ele havia sobrevivido. O que não o impedia de crer que tivesse havido uma intervenção miraculosa da Virgem, desviando de órgãos vitais a trajetória do projétil, o qual foi mais tarde entregue aos responsáveis pelo Santuário de Fátima e encastoado na coroa da Imagem ali cultuada.
O tema Fátima não era estranho ao Pontífice, pois ele fora um dos 510 signatários da petição a Paulo VI para que aproveitasse a presença dos bispos de todo o orbe em Roma, por ocasião do Concílio, para fazer a consagração da Rússia e do mundo ao Imaculado Coração de Maria. Esta consagração havia sido pedida por Nossa Senhora como penhor da conversão daquele país comunista e da suspensão dos castigos que pendem sobre o mundo moderno.
Recuperado dos efeitos do atentado, João Paulo II fez repetidas vezes a consagração do mundo ao Imaculado Coração de Maria. A que mais se aproximou das condições requeridas por Nossa Senhora foi a de 25 de março de 1984, na qual, porém, constrangido pelas travas da Ostpolitik vaticana, não pronunciou o nome da Rússia, embora — segundo declarou — a tivesse incluído mentalmente na consagração.