na cena. Nesta, todos estão absorvidos por ocupações, mas não se percebe nenhum nervosismo. O caixeiro de uma loja vai entregar os pacotes; um varredor empurra para ralos os restos de neve e lixo; a empregada de uma casa, de avental branco, atravessa a rua. As diferentes classes sociais misturam-se harmoniosamente. Vê-se na cena uma sociedade que ainda é análoga a um corpo vivo, onde cada membro ocupa seu lugar e desempenha seu papel; ela não se baseia no orgulho, tampouco na inveja de quem possui mais ou é mais que os outros.
Le Boulevard des Capucines – Jean Béraud (1849–1935). Coleção Privada.
“Os fiacres circulam em bom número, mas pode-se cruzar a rua mais ou menos em qualquer lugar e como se quiser, sem ser enquadrado por milhares de regulamentos de trânsito meticulosos. E a adoração da técnica ainda não invadiu nem subverteu todos os valores”.
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Era bem esta a Paris, pintada por Jean Béraud, que fascinava a sociedade paulistana e encantou o pequeno Plinio há cerca de um século. A vida de família era então sólida. Escrevia-se à mão, com bela caligrafia. Era demorado, mas pululavam as ideias e os literatos. O automóvel e o avião apenas começavam a desenvolver-se.
Mais tarde, ocorreu significativa mudança: a cidade de São Paulo cresceu desmesuradamente; as velocidades aceleraram-se... até travar as atividades dos habitantes com os intermináveis congestionamentos de veículos e a agitação das ruas. Hoje, faz-se em uma noite a viagem que outrora demorava um mês… ou fica-se parado num engarrafamento do trânsito durante horas! E o computador executa em alguns minutos uma tarefa que podia levar horas ou dias, mas as cabeças já não produzem ideias, porque a televisão não as deixa pensar… Nem sempre a qualidade corresponde à rapidez, enquanto a elegância vai cedendo sempre mais à vulgaridade.
Georges Clemenceau, que foi ministro e chefe de governo da França.
O fato é que, por certas razões, naquele tempo São Paulo inspirava-se em padrões parisienses, a ponto de Georges Clemenceau (político e estadista, cognominado “o Tigre” por seu radicalismo) nela sentir-se muito à vontade quando a visitou, em 1910.
Em suas notas de viagem sobre o Brasil, publicadas em 1911 pela revista “L’Illustration”, ele descreve o fazendeiro paulista como “um senhor feudal imbuído do pensamento europeu”, e o considera “infinitamente superior (sic!) à generalidade dos seus similares do Velho Continente, tanto os nascidos da tradição quanto os que surgiram dos acasos da democracia”.
Esse superlativo elogio é de deixar pasmo, sobretudo na pena de um francês que ocupou os mais altos cargos em sua nação. Ao leitor do século XXI, tal descrição pode até parecer inverosímil. Desde já é preciso insistir que, depois disso, ao longo de um século a sociedade paulista mudou assustadoramente.
Clemenceau era um revolucionário de esquerda, ateu e anticatólico, o que torna insuspeito seu depoimento. Além disso, suas observações datam do período da Belle Époque (1871-1914), época em que as imprecisões e incorreções de linguagem não eram perdoadas, sobretudo tratando-se de um homem que fora ministro e chefe de governo, e que voltaria novamente a sê-lo durante a Primeira Grande Guerra.
Clemenceau considerava também que havia “muitas afinidades entre os dois povos” (o francês e o brasileiro), das quais ele afirmava convencer-se a cada momento.
“Tive a inexprimível satisfação de o comprovar em meu primeiro contato com o grande público do Rio, e a experiência foi renovada em São Paulo com tanta felicidade que foi possível entregar-me sem reservas ao prazer de falar como francês a outros franceses, sem que nada me fizesse notar as particularidades de alma de um estrangeiro ao qual eu tivesse de me adaptar”, afirma ainda o político francês. E acrescenta:
“A cidade de São Paulo (350 mil almas) é tão curiosamente francesa em alguns de seus aspectos que, durante toda uma semana, não me lembro de ter tido nem uma só vez a sensação de encontrar-me fora da França. O fato de a língua francesa ser ali falada correntemente não é uma particularidade de São Paulo. A sociedade paulista, que por tradição tem talvez uma personalidade mais marcante do que a de qualquer outro conjunto semelhante na República do Brasil, apresenta o duplo fenômeno de se orientar de modo resoluto para o espírito francês e de, paralelamente, desenvolver todos os traços da individualidade brasileira que determinam o seu caráter. É indubitável que o paulista é paulista até o fundo da alma; paulista tanto