Admirável profundidade de toda palavra inspirada! Tão simples que até uma criança o pode compreender, o cântico dos Anjos de Belém encerra entretanto verdades das mais profundas.
Como é proveitoso, pois, nutrir o espírito com essas palavras, para participar devidamente das festas do Santo Natal!
Ajudai-nos, Mãe Santíssima, Sede da Sabedoria, com vossas preces, para que, iluminados pelas claridades que de Jesus dimanam, possamos entender o cântico angélico que é o mais perfeito e autorizado comentário do Natal.
“Homem de boa vontade”: o que representa isto aos olhos de tantos e tantos de nossos contemporâneos?
Para o sabermos, basta indagar: boa vontade para com quem? A resposta salta impetuosa e impaciente, como sói acontecer quando a pergunta tem algo de ocioso por inquirir o que é quase evidente. Ora bolas, dirão muitos de nossos coetâneos, boa vontade para com o próximo. Aquele que, ateu ou sequaz de uma religião, seja ela qual for, adepto da propriedade privada, do socialismo ou do comunismo, quer que todos os homens vivam alegres, na fartura, sem doenças, sem lutas, sem riscos, aproveitando o mais possível esta vida, este é um homem de boa vontade.
Visto nesta perspectiva, o homem de boa vontade é um artífice da paz. Diz o ditado que “em casa onde falta o pão, todos brigam e ninguém tem razão”. Logo, onde há pão todos têm razão e há paz. Onde há pão, teto, remédios, segurança, com maior razão há necessariamente a paz.
E a glória de Deus? Para o “homem de boa vontade” assim concebido, é ela um elemento supérfluo no que se refere à paz na Terra. Pois é da adequada ordenação da economia que decorre a boa ordem na vida social e política, e portanto a paz.
“Supérfluo” é dizer pouco, a respeito da glória de Deus no Céu, considerada em função da paz na Terra. Como alguns homens creem em Deus, e outros não creem, e como entre os que creem há diversidade no modo de entender Deus, este último pode atuar como perigoso fautor de divisões, discussões e polêmicas. Deus é um senhor por demais comprometido há milhares de anos em polêmicas, para que dele se fale a toda hora. Para ter paz na Terra é melhor não estar falando a todo momento sobre Deus e sua glória no Céu.
E depois... o Céu é tão vago, tão longínquo, tão incerto! Que dele falassem os Anjos, vá lá, pois lá moram. Mas nós homens, cuidemos da Terra.
Unir a glória celeste à paz terrestre é para o “homem de boa vontade” algo de tão incorreto, supérfluo e pejado de fatores de luta como é, por exemplo, imprudente unir a Igreja ao Estado. A Igreja livre do Estado e o Estado livre da Igreja, eis um anelo bem típico do “homem de boa vontade”. A paz terrena liberta de implicações religiosas, e Deus no seu Céu e sua glória, sorrindo de braços cruzados para a Terra em paz, a uma tal distância da Terra que lá não chegue nem sequer o Lunik, eis o ideal do “homem de boa vontade”.
Estas são as considerações do “homem de boa vontade” entre aspas, cujo coração está longe do Céu, e cujo olhar só se detém sobre a Terra.
Contudo, quanto divergem elas do sentido próprio e natural do cântico angélico!
Realmente, se o Natal dá glória a Deus no mais alto dos Céus e simultaneamente é a fonte da paz na Terra para os homens de boa vontade — foi o que os Anjos proclamaram em seu cântico — não se pode dissociar uma coisa da outra. Sem que os homens deem glória a Deus, não há paz no mundo. E a guerra, enquanto considerada no agressor culpado, é incompatível com a glória de Deus.
Vós, Senhor Jesus, Deus humanado, sois entre os homens o Príncipe da Paz. Sem Vós a paz é uma mentira e, afinal, tudo se converte em guerra.
E é porque os homens não compreendem isto, que procuram de todos os modos a paz, mas a paz não habita no meio deles.
O que é então o homem de boa vontade, se não é o homem que ama o próximo? Será porventura o que odeia seu próximo?
Ao fariseu, que Vos chamou de bom Mestre, perguntastes: por que Me chamais de bom, se só Deus é bom? (cfr. Luc. 18, 19 ).
Se só Deus é bom, a boa vontade autêntica é a que se volta toda para Deus, e ama o próximo, não pelo mero amor do próximo, mas pelo amor de Deus. O homem é tal, que não pode amar o próximo pelo próximo. Ou o ama por amor de si mesmo, e isto é egoísmo. Ou o ama por Deus, e isto sim é amor verdadeiro.
Em consequência, a “boa vontade” agnóstica e a paz terrena que ela tende a instaurar, nem são boa vontade autêntica, nem paz verdadeira.
E o falso “homem de boa vontade” é em última análise um semeador de guerras e um artífice de ruínas.
Mas, dirá alguém, como pode ser Jesus o fundamento da paz, se ninguém como Ele tem suscitado tanto ódio? O populacho, cumulado por Ele de favores espirituais e materiais de toda ordem, preferiu Barrabás, um bandido. Isto não é ódio? Os Imperadores contra Ele moveram perseguições atrozes. Os arianos contra Ele mobilizaram todas as potências da Terra. Depois vieram os maometanos. E depois, e depois, todos os grandes vagalhões da
Adoração dos Reis Magos (detalhe) – Wouter Pietersz Crabeth II, séc. XVII. Museum het Catharina Gasthuis Gouda, Países Baixos.