P.04-05

A FALÊNCIA DA TECNOLOGIA

Cunha Alvarenga

Já em seus dias Lafcadio Hearn se preocupava com os progressos tentaculares da técnica no mundo ocidental; e diante dessas tremendas energias gastas na edificação das modernas megalópoles, cujos arranha-céus lhe pareciam monstros completamente vazios de sentido, lembrava ele a tranquilidade do «way of life» oriental, de onde procurava tirar lições para os ciclópicos formigueiros da Manhattan.

A verdade é que o autor de «Kokoro» propunha uma solução que deixaria a humanidade no mesmo erro fundamental, pois em última análise se resumia em livrar o ocidente do panteísmo materialista para o lançar no letargo do panteísmo idealista típico dos povos orientais.

Com o passar dos anos estão surgindo os frutos naturais do mito da ciência e da técnica e é da própria America do Norte que nos vem agora um impressionante brado de alarma pela voz de um emigrado alemão, Friedrich Georg Juenger. Escrito originalmente na Alemanha nazista, de onde o autor teve que fugir, o livro «The failure of technology» (*) contêm um profundo estudo sobre o destino da era tecnológica.

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Não resta dúvida de que a atitude mais comum em face dos progressos da técnica e da ciência moderna, é uma admiração infantil que se traduz num infundado otimismo quanto ao futuro da humanidade cada vez que nos achamos diante de uma nova invenção ou de uma nova teoria científica, Quando foi da invenção do cinema, quantos espíritos não viram nele a solução radical e completa do problema da educação do povo? O mesmo se deu com o rádio e está se dando com a televisão. O extraordinário desenvolvimento dos meios de transporte, com a locomotiva, com o automóvel, com o avião, foram outras tantas razões para uma generalizada euforia quanto à abolição da miséria e do atraso em que jaziam os povos.

Embora esteja longe de ser um pessimista, a objetividade de Juenger não o faz participar dessas fagueiras esperanças:— «O fato de que o progresso técnico haja enriquecido um pequeno e não muito agradável grupo de industriais, de homens de negócio e de inventores, não nos deve levar à falsa conclusão de que ele tenha criado riquezas. Seria isso tão errado quanto se alimentássemos a imbecil noção de que alguma raça excepcionalmente nobre de homens houvesse criado nossa tecnologia, ou que cientistas acadêmicos e inventores fossem caritativos por natureza, e aí é que está a diferença entre todo conhecimento erudito e o conhecimento dos sábios». (pag 12).

Eis porque será em vão que a humanidade esperará solução para o problema do proletariado e do pauperismo através da tecnologia. «O pauperismo continua, porque está na natureza da coisa, porque ele é o infalível subproduto do pensamento tecnológico, que é completamente racionalista».

Pobres sempre teremos conosco, «mas o pauperismo produzido pelo progresso tecnológico tem alguma coisa de específico em si mesmo, que o coloca à parte. Ele nunca poderá ser conquistado por um desenvolvimento do pensamento racionalista, nem pela consecução do último estágio da organização racional do trabalho». (pag. 13).

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A tecnologia nada mais realiza que a distribuição da pobreza. Ninguém pensaria em racionar a riqueza e a fartura, mas a escassez e a necessidade exigem imediata regulamentação. A marca dessas organizações da escassez é que elas nem produzem nem aumentam qualquer coisa. Elas apenas minam a riqueza já existente, realizando uma verdadeira pilhagem da terra.

Mais, ainda, «a tecnologia não trabalha de acordo com as leis econômicas. É a vida econômica que se torna cada vez mais subserviente à tecnologia. Estamos nos aproximando de um ponto — aqui e ali já o atingimos — em que o racionalismo tecnológico na produção será mais importante que o lucro produzido. Em outras palavras, o progresso tecnológico deve ir para a frente mesmo que acarrete prejuízos financeiros. Este sintoma de fracasso econômico é também o sinal de uma crescente perfeição técnica. A tecnologia como um todo não tem absolutamente nenhum interesse em dividendos e nunca os poderá desenvolver. Ela cresce à custa da economia; ela aumenta a emergência econômica; ela conduz a uma economia de déficit que tanto mais cresce de modo marcadamente óbvio, quanto mais triunfantemente progride a perfeição tecnológica». (pag. 29).

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Vemos, assim, a vida cada vez mais invadida pelo autômato e a vitória cada vez maior do tempo morto sobre o tempo vivo. E nos envolve como um polvo a falta de lazer, de vagar, na vida moderna, pela preocupação tecnológica da medição do tempo. A organização tecnológica não mais permite o lazer; ela concede ao trabalhador cansado apenas a magra medida de férias e folgas que são absolutamente necessárias para manter sua eficiência. O trabalho se torna automático, a deslocação do homem de um ponto para outro também se mecaniza pelas leis do tráfego. Na rua, faz-se abstração de todas as qualidades do homem, exceto de uma: - é reconhecido como um pedestre, um objeto do tráfego.

O mito das ciências exatas exclui do campo mental humano tudo aquilo que não pode ser medido e contado. Há entretanto muita coisa exata e mesmo das mais importantes e fundamentais na vida do homem, que não podem ser calculadas e que nem por isso deixam de ser tão exatas quanto os resultados dessas medições quantitativas.

E vem um dos primeiros pontos de contato do pensamento tecnológico com o pensamento socialista: - a noção de que o trabalho manual é monótono e de que essa assim chamada monotonia seria eliminada pelo progresso tecnológico. Tal noção é falsa. O oposto é que é verdadeiro. «Nem o pesado e sujo trabalho que o homem tem de fazer diminui, porque não houve decréscimo no número de montes de lixo e de esgotos no mundo. O trabalho manual não decresce com o avanço da máquina; pelo contrário, ele cresce e, pois que se acha a serviço da máquina, muda em sua natureza», degenerando-se.

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Surge, assim, o socialismo como uma rendição à tecnologia. Não existe mais uma relação vital entre o trabalhador e seu trabalho, como no caso do artesão; esta relação passa a ser puramente funcional. «O operador da máquina é tão sujeito a troca como o são as peças da máquina». E isto acontece com maior facilidade, na medida em que o trabalho se torna mais geral, isto é, mais especializado. «Mas haveria engano em pensar que essa maior usabilidade significa um maior grau de liberdade. O contrário é o verdadeiro. O funcionalismo do trabalho, que significa que o trabalho se torna monótono, leva à dependência do trabalhador em relação ao aparelhamento e à organização. Pois agora ele perde o direito e a força de determinar ele próprio que serviço terá de perfazer. Ele se torna mais móvel, mas precisamente por esta razão será mais facilmente encabrestado à organização. Visto que seu trabalho não mais se acha relacionado de modo algum à sua pessoa, o trabalho pode ser mais altamente organizado. Sendo permutável e substituível como a peça de uma máquina, pode o trabalhador ser colocado em qualquer lugar. Portanto, ele deve também esperar ser colocado para trabalhar contra seu desejo, isto é, em trabalho forçado. Pois quanto mais espalhado e complexo for o aparelhamento, tanto mais inevitável se torna a compulsão que exerce sobre o homem. Este não pode fugir dessa compulsão. Não é nem capaz de investigá-la; todos os seus esforços para fazê-lo são em vão. São tão fúteis como os esforços do prisioneiro que foi colocado em um moinho de pé, o qual gira tão mais rapidamente, quanto mais depressa ele tentar fugir». (pag. 60).

E então começa o círculo vicioso. As organizações trabalhistas, os sindicatos surgem por todos os lados e em todos os lugares em que os trabalhadores começam a perceber o fato de que se acham dependentes de que precisam se unir para oferecer resistência conjunta. Todas essas agremiações se caracterizam pelo ódio com que olham os trabalhadores não organizados, aqueles que ainda não perceberam a compulsão do trabalho mecânico e a necessidade de efetuar a rendição de sua independência aos grupos organizados. Na medida em que os trabalhadores se unem, entretanto, eles preenchem sem querer uma condição do progresso técnico, a condição de que tudo deve ser organizado. E os trabalhadores, pensando que estão agindo de acordo com sua própria volição, se unem com entusiasmo, mas sua organização em sindicatos é apenas uma expressão de compulsão mecânica a que se acham sujeitos. Essas organizações que tentam fazer de certos tipos de trabalho um privilégio de seu grupo, se desintegram logo que a perfeição da tecnologia mecaniza todo o trabalho; quando a organização do trabalho se torna universal, quando todo o mundo se torna um trabalhador.

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Essa tecnologia racionalista, característica do mundo moderno, além de proletarizar todo o corpo social, ou antes toda a massa social, vive à custa de uma crescente burocratização dos setores que vai invadindo. Cada vez mais alarga seu raio de ação, atacando a lei, subjugando a ciência, destruindo a instituição da propriedade privada, usurpando as funções do Estado, com o qual acaba se identificando pelo socialismo. E a esse socialismo tal tecnologia nos leva não somente por si própria, mas também por ser um campo preparatório para a invasão das ideologias que envenenam o mundo moderno. É o que veremos a seguir em outra crônica.

(*) «The Failure of Technology (Perfection without Purpose)» by Friedrich Georg Juenger —Henry Regner Company Hinsdale, Illinois — 1949.


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

A mania do antigo na liturgia revive os erros do Conciliábulo de Pistoia

PIO XII: Como, em verdade, nenhum católico fiel pode rejeitar as fórmulas da doutrina cristã compostas e decretadas com grande vantagem em época mais recente da Igreja, inspirada e dirigida pelo Espírito Santo, para voltar às antigas fórmulas dos primeiros Concílios, ou repudiar as leis vigentes para voltar às prescrições das antigas fontes do Direito Canônico; assim, quando se trata da Sagrada Liturgia, não estaria animada pelo zelo reto e inteligente aquele que quisesse voltar aos antigos ritos e usos, recusando as recentes normas introduzidas por disposição da Divina Providência e por mudança de circunstâncias. Este modo de pensar e de proceder, com efeito, faz reviver o excessivo e insano arqueologismo suscitado pelo ilegítimo Concilio de Pistoia, e se esforça em revigorar os múltiplos erros que foram as bases daquele conciliábulo e os que se lhe seguiram com grande dano das almas, e que a Igreja — guarda vigilante do "depósito da fé" confiado pelo seu Divino Fundador — condenou com todo o direito. De fato, deploráveis propósitos e iniciativas tendem a paralisar a ação santificadora com a qual a Sagrada Liturgia orienta salutarmente ao Pai Celeste os filhos de adoção. (Encíclica "Mediator Dei", de 20-11-47).

Os vários modos de participar da Missa

PIO XII: Não poucos fiéis, com efeito, são incapazes de usar o Missal Romano ainda quando escrito em língua vulgar; nem todos são capazes de compreender corretamente, como convêm, os ritos e as cerimônias litúrgicas. A inteligência, o caráter e a índole dos homens são tão vários e dessemelhantes que nem todos podem igualmente impressionar-se e serem guiados pelas orações, pelos cantos ou pelas ações sagradas feitas em comum. Além disso, as necessidades e as disposições das almas não são iguais em todo, nem ficam sempre as mesmas em cada um. Quem, pois, poderá dizer, levado por tal preconceito, que tantos Cristãos não podem participar, do Sacrifício Eucarístico e aproveitar-lhe os benefícios? Certamente que o podem fazer de outra maneira, e para alguns mais fácil: por exemplo, meditando piamente os mistérios de Jesus Cristo ou fazendo os exercícios de piedade e outras orações que, embora na forma difiram dos sagrados ritos, a eles todavia correspondem pela sua natureza. Por isso vos exortamos, Veneráveis Irmãos, a que na vossa Diocese ou jurisdição eclesiástica reguleis e ordeneis o modo mais adequado mediante o qual o povo consiga participar da ação litúrgica segundo as normas estabelecidas no Missal Romano e segundo os preceitos da Sagrada Congregação dos Ritos e do Código Canônico. (Ibidem).

A emancipação da esposa...

PIO XII: Os mesmos mestres do erro, que por escritos e por palavras ofuscam a pureza da fé e da castidade conjugal, facilmente destroem a fiel e honesta sujeição da mulher ao marido. Ainda mais audazmente muitos deles afirmam com leviandade, ser ela uma indigna escravidão de um cônjuge ao outro; visto os direitos entre os cônjuges serem iguais, para que não sejam violados pela escravidão de uma parte, defendem com arrogância certa emancipação da mulher, já alcançada ou a alcançar. Estabelecem mais que esta emancipação deve ser tríplice: no governo da sociedade doméstica, na administração dos bens da família e na exclusão e supressão da prole, isto é, social, econômica e fisiológica. Fisiológica enquanto querem que a mulher de harmonia com a sua vontade seja ou deva ser livre dos encargos de esposa, quer conjugais, quer maternos (esta mais do que de emancipação deve apodar-se de nefanda perversidade, como já suficientemente demonstramos).

Emancipação econômica por força da qual a mulher, mesmo sem conhecimento e contra a vontade do marido, possa livremente ter, gerir e administrar os seus negócios privados, desprezando os filhos, o marido e toda a família.

Emancipação social, enfim, enquanto se afastam da mulher os cuidados domésticos tanto dos filhos como da família para que, desprezados estes, possa entregar-se às suas inclinações naturais e consagrar-se até as funções e negócios públicos. (Encíclica "Casti Connubi", de 31-12-1930).

... é caminho da corrupção

PIO XI: No entanto nem esta emancipação da mulher é verdadeira, nem é a razoável e digna liberdade que convém à cristã e nobre missão de mulher e esposa; é antes a corrupção da índole feminina e da dignidade materna e a perversão de toda a família, enquanto o marido fica privado de sua mulher, os filhos da sua mãe, a casa e toda a família da sua sempre vigilante guarda.

Pelo contrário, essa falsa liberdade e essa inatural igualdade com o homem, redundam em prejuízo da própria mulher; porque, se a mulher desce daquele trono real a que dentro do lar doméstico foi elevada pelo Evangelho, depressa cairá na antiga escravidão (senão aparente, certamente de fato) tornando-se, como no paganismo, simples instrumento do homem. (Ibidem).

Liberdade de ensino?

LEÃO XIII: Quanto ao que chamam de liberdade de ensino, também não é preciso julgá-la por modo diverso. — Só a verdade deve penetrar nas almas, pois que é só nela que as naturezas inteligentes encontram o seu bem, o seu fim, a sua perfeição. Por isto o ensino só deve ter por objeto coisas verdadeiras, e isto quer se dirija aos ignorantes, quer aos sábios, a fim de que leve a uns o conhecimento do verdadeiro, e nos outros o fortaleça. Por este motivo, o dever de todo aquele que se dedica ao ensino é, sem contradição, extirpar o erro dos espíritos e opor fortes proteções à invasão das falsas opiniões.

É pois evidente que a liberdade de que estamos tratando, arrogando-se o direito de tudo ensinar a seu modo, está em contradição flagrante com a razão, e nasceu para produzir um transtorno completo nos espíritos. O poder público não pode consentir uma tal licença na sociedade senão com desprezo do seu dever. Tanto mais verdade é isto, que todos sabem de quanto peso é para os ouvintes a autoridade do professor, e quanto é raro que um discípulo possa julgar por si mesmo da verdade do ensino do mestre. (Encíclica "Libertas", de 20-6-1888).

A excelência dos Exercícios Espirituais de Santo Inácio

PIO XI: Por fim, é de suma importância para fazer bem e frutuosamente os Exercícios Espirituais, praticai-os segundo um método sábio e apropriado.

Ora, é sabido que entre todos os métodos de Exercícios Espirituais, fundados louvavelmente nos princípios de uma ascética sã e católica, houve um que se avantajou entre todos os mais, foi enriquecido com plenas e repetidas aprovações da Santa Sé, recebeu os elogios de varões exímios pela doutrina espiritual e santidade, e obteve, quase pelo espaço de quatro séculos, grandes frutos de santidade. Referimo-nos ao método introduzido por Santo Ignácio de Loyola, a quem nos apraz chamar o mestre principal e especializado nos Santos Exercícios, cujo "admirável livro dos Exercícios", pequeno no tamanho mas cheio de sabedoria celeste, foi solenemente aprovado, louvado e recomendado pelo Nosso Predecessor de boa memória Paulo III; e desde então, repetindo as palavras de que nos servíamos algures, antes de sermos elevados à Cátedra de Pedro, desde então, repetimos, "sobressaiu e se afirmou como o código mais sábio e absolutamente universal para dirigir as almas pelo caminho da salvação e perfeição, como manancial inexaurível da piedade mais profunda e ao mesmo tempo mais sólida, como estimulo irresistível e guia experimentadíssimo para obter a reforma dos costumes próprios e subir às alturas da vida espiritual". (Encíclica "Mens Nostra", de 20-12-1929).

Pela denúncia decidida do erro e da mentira

PIO XII: A Igreja, sempre transbordante de caridade e de bondade para com os desgarrados, mas fiel à palavra de seu Divino Fundador, que declarou: — "Quem não está comigo, está contra mim" (Mat. 12,30), não pode faltar a seu dever de denunciar o erro e de arrancar a máscara aos semeadores de mentiras (Job 13,4), que se apresentam como lobos disfarçados com peles de ovelha (Mat. 7,15), como precursores e iniciadores de uma nova era feliz, e de advertir aos fieis que não se deixem extraviar do reto caminho nem se enganar com falazes promessas. (Mensagem do Natal de 1947).

A doutrina social da igreja é clara e obrigatória

PIO XII: A doutrina social da Igreja é clara em todos os seus aspectos. É obrigatória. Ninguém se pode afastar dela sem perigo para a Fé e para a ordem moral. Não é, pois, lícito a nenhum católico, e muito menos aos que pertencem a vossas organizações, dar adesão a teorias e sistemas sociais que a Igreja haja repudiado, ou a propósito dos quais haja posto em guarda a seus fieis. (Alocução à Ação Católica Italiana, de 29-4-1945).

Formação solidamente baseada nos ensinamentos pontifícios

PIO XI: "Se o modo de proceder de alguns católicos tem deixado que desejar no campo econômico-social, isto se deve com frequência ao fato de não conhecerem suficientemente nem terem meditado sobre os ensinamentos dos Sumos Pontífices sobre a matéria" (Encíclica "Divini Redemptoris", de 9-3-37).


NOVA ET VETERA

No reinado do otimismo

J. de Azeredo Santos

Para certos espíritos esquemáticos, haveria entre os católicos duas espécies de mentalidades extremadas: — de um lado, os laxistas e revolucionários; de outro, os fixistas e reacionários. As duas mentalidades em si seriam legítimas e far-se-ia necessário que ambas as partes reconhecessem com certa dose de humildade, que as suas diferenças não brotam de doutrinas diversas ou de princípios, mas de psicologia, de temperamento, até de biologia.

Há divergências por causa de princípios, mas a origem não seria doutrinal. Assim, por exemplo, houve quem citasse o debate havido entre os jesuítas, há séculos atrás, sobre se seria contra a gravidade que devem ter os escritores eclesiásticos o «imprimir livros em língua vulgar». Estaria em jogo uma doutrina, pontos de Fé, princípios? Por talvez ter havido quem erradamente pensasse que sim, desse fato salta-se sofisticamente à conclusão de que o fundamental em todas as diferenças que possam surgir entre os católicos não são questões de princípio, mas simples questiúnculas de temperamentos, de atitude, de mentalidade, ou até mesmo gratuita antipatia de uns contra os outros...

E vem o conselho aparentemente neutro e apaziguador: - «Haveria porém maior paz entre os cristãos e maior progresso na evangelização dos homens, se cada um se lembrasse de que as divergências não são «importantíssimas questões de princípio», mas são, como mostra o P. Yves Congar O. P. num ponderado artigo, um caso de atitude, de mentalidade, de temperamentos».

Entretanto, o veneno, como sempre, vem na cauda: — «Há pessoas para as quais se Jacques Maritain diz algo, todos os pelos se lhes arrepiam, e há outras que sofrem do mesmo fenômeno se o P. Garrigou-Lagrange fala. Essas pessoas entregam-se a debates sobre uma frase de um ou de outro para envolvê-la em regiões transcendentes onde a proposição será horrosamente errada. Percebem que seus esforços nascem de uma simples antipatia humana e que bom seria ler antes o capitulo da Imitação sobre diversos movimentos da natureza e da graça?».

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Não se pode admitir como legitima a posição de quem quer que se torne adepto de um erro, seja ou não extremada a sua atitude. Assim como também é falsa e altamente perniciosa a posição daqueles que no panorama intelectual moderno formam o grande contingente dos relativistas ou dos opinionistas. Sua função é fazer crer que o que hoje é considerado um erro, amanhã pode ser confundido com a mais cristalina verdade e vice-versa. Tudo seria relativo e uma questão de opinião. Embora haja questões de princípios, estas não seriam assim tão importantes, devendo ser relegados para segundo plano, vindo para o proscênio aquilo que realmente conta e que são os temperamentos, as atitudes, as mentalidades. E assim deveria ser, pois segundo os tais não teríamos um critério seguro para avaliar da perenidade ou do valor essencial de uma questão, sendo a nossa perspectiva tão curta que podemos confundir uma simples apreciação da conveniência da publicação de livros em latim ou em linguagem vulgar com a certeza da Encarnação do Verbo ou com a inaceitabilidade de uma ordem de coisas totalitária segundo a concepção católica da vida social.

De modo que, por exemplo, quando certos maritainistas fazem coro com o socialista sr. Domingos Velasco ao sustentar que o socialismo é um sistema econômico como outro qualquer, cujas vantagens ou cujos defeitos só a prática poderá demonstrar, teríamos que nos persuadir de que tal declaração não envolve um arranhão sequer na doutrina social da Igreja, mas que se ela nos fere os olhos ou os ouvidos é porque somos perturbados em nosso juízo pela antipatia secreta que votamos a tudo que diga respeito ao sr. Maritain.

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Chegamos, assim, à conclusão de que uma das grandes afirmações da intelectualidade católica contemporânea, que é o revmo. Padre A. Messineo S. J., não está em dia com o capítulo da, Imitação de Cristo sobre a diferença dos movimentos da natureza e da graça, e deve votar uma grande e anti-evangélica antipatia pelo sr. Maritain, pois vem dedicando uma série de estudos em «La Civiltà Cattolica» sobre os erros do autor do «Humanismo Integral». Melhor seria que o ilustre jesuíta deixasse de lado seu propósito de demonstrar como o sr. Maritain claudica na questão da tolerância, bem como no emprego do conceito de analogia no célebre problema da «tese e da hipótese», ou como incide em um errado apriorismo na sua esquematização do processo histórico, etc., pois tudo isso são nonadas sem nenhuma importância fundamental, não se achando em jogo nenhuma doutrina ou questão de princípios, mas um caso de atitude, mentalidade, de temperamento.

Acontece, porém, que esse problema é muito velho e podemos afirmar que ele surgiu ao lado do primeiro heterodoxo aparecido no seio da Igreja. O partido dos opinionistas, dos acomodatícios e da política dos panos quentes tem longas barbas, embora queira passar por ultramoderno. E seus argumentos são sempre os mesmos.

Assim, por exemplo, houve tempo em que o jansenismo não se apresentava, entre os católicos, como o erro bem delimitado que hoje surge à luz da história. Nessa época, São Vicente de Paulo, santo por excelência da Caridade, não achava que se devia procurar a qualquer preço a união dos católicos, e nem que para haver maior progresso na evangelização dos homens se deveria lembrar que as divergências não são «importantíssimas questões de princípio» mas um caso de mentalidade, de temperamento, de atitude. Pelo contrário, firmemente acreditava ele ser indispensável que se definisse a questão de princípios, «pois não deve haver união no mal e no erro». Mais ainda, acrescentava: - «... quando as heresias de Lutero e de Calvino, por exemplo, começaram a aparecer, se se tivesse esperado para as condenar até que seus sectários parecessem dispostos a se submeter e a se unir, essas heresias seriam ainda hoje do número das coisas indiferentes a seguir ou a deixar e elas teriam infectado mais pessoas do que o fizeram. Se, portanto, essas opiniões, das quais nós vemos os efeitos perniciosos nas consciências, são dessa natureza, esperaremos em vão que aqueles que as semeiam entrem em acordo com os defensores da doutrina da Igreja; é o que não se deve esperar, e o que jamais se dará». (Carta de São Vicente de Paulo aos Bispos de Alet e de Pamiers).

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Não é a defesa da verdade incompatível com os preceitos da Caridade. Tanto assim que do patrono dos escritores católicos, o suave São Francisco de Sales, dizia o Santo Padre Pio XI, por ocasião do terceiro centenário de sua morte:

«Quanto ao fruto principal desse centenário, Nós auguramos que ele se estenda por todos os católicos que, pela publicação de jornais ou de outros escritos, explicam, propagam e defendem a doutrina cristã. Como Francisco de Sales, eles devem sempre guardar, nas discussões, a firmeza unida ao espírito de medida e à caridade».

«O exemplo do Santo Doutor lhes traça claramente sua linha de conduta: — estudar com maior cuidado a doutrina católica e a possuir na medida de suas forças; evitar alterar a verdade, ou atenuá-la ou dissimulá-la, sob pretexto de não ferir os adversários». (Encíclica «Rerum omnium» de 28 de janeiro de 1923). Mais ainda: — «Quando um ataque se impõe, refutar os erros e opor-se à malícia dos operários do mal, de maneira tal que sempre se mostre estar animado de intenções retas e que se age sobretudo em um sentimento de caridade». (doc. cit.).

Como vemos, a linguagem e o proceder da Igreja e de seus Santos mais assinalados pela sua humildade, doçura e caridade, tais como São Vicente de Paulo e São Francisco de Sales, são bem diferentes da falsa prudência e do opinionismo do muita gente que talvez pense estar propagando virtudes evangélicas.

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Se na luta em defesa da verdade e pelas reivindicações sociais há sempre perigos e desvios e quedas fatais, nosso dever de caridade não é de fechar os olhos a tais perigos, desvios e quedas, mas o de olhar onde pisamos e, ao mesmo tempo, o de ajudar os nossos irmãos na Fé e também os nossos inimigos a evitar esses tropeços, alertando-os quanto ao caminho errado que trilham ou que se acham em vias de trilhar. Agir de outro modo, silenciar quanto aos desvios doutrinários em princípios fundamentais, seria proceder como aqueles cães mudos a que o profeta faz alusão. Silenciar quanto ao que nos divide no campo dos princípios e da verdadeira doutrina religiosa ou social, seria formar ao lado daqueles latitudinaristas do Sillon, tão bem descritos por Pio X: - «Mais estranhas ainda, ao mesmo tempo que inquietantes e acabrunhadoras, são a audácia e a ligeireza do espírito de homens que se dizem católicos, e que sonham refundir a sociedade em tais condições, e estabelecendo sobre a terra, por cima da Igreja Católica, «o reino da justiça e do amor», com operários vindos de toda a parte, de todas as religiões ou sem religião, com ou sem crenças, contanto que se esqueçam do que os divide: — suas convicções religiosas e filosóficas, e ponham em comum aquilo que os une: — um generoso idealismo e forças morais adquiridas «onde possam» (Carta Apostólica «Notre Charge Apostolique»).

Que poderá surgir desse esquecimento dos princípios da sã doutrina? Que é que sairá desta colaboração em bases tão duvidosas? Responde o Santo Padre: — «Uma construção puramente verbal e quimérica, em que se verão coruscar promiscuamente, e numa confusão sedutora, as palavras liberdade, justiça, fraternidade e amor, igualdade e exaltação humana, tudo baseado numa dignidade humana mal compreendida. Será uma agitação tumultuosa, estéril para o fim proposto, e que aproveitará aos agitadores de massas, menos utopistas». (doc. cit.).

Fieis, portanto, às diretrizes da Igreja e aos exemplos de seus Santos no que diz respeito à missão do escritor católico, num mundo corroído pelo conformismo, pelo opinionismo, pela indiferença diante do mal, pedimos sempre a Deus que nos ilumine a inteligência para bem distinguirmos entre o pecador e o Doutor do pecado, entre as pobres vitimas dos erros e os semeadores de cizânia, entre as ovelhas tresmalhadas e os lobos vorazes que as querem devorar. Mas por isso mesmo que estimamos no mais alto grau a verdadeira Caridade, nada mais detestamos que a sua contrafação, a falsa caridade, que alimenta os erros do próximo em vez de guiá-lo para o caminho do Bem e da Verdade.