Que há de realmente importante na vida senão a morte? (continuação)
a que se manifeste generosamente, a propósito da morte. Velar os cadáveres, participar dos funerais, visitar as famílias enlutadas, comparecer à Missa em sufrágio da alma do morto, são atos praticados hoje muito frequentemente num espírito absolutamente mundano e naturalista. Este espírito deve ser abolido. Não porém estes atos, em si mesmos excelentes, e rigorosamente coerentes com o que a Igreja ensina a respeito da morte.
É o que explica que, nos séculos de civilização cristã, os costumes sociais, lentamente constituídos sob o bafejo do espírito católico, foram dando forma e expressão a todas estas ideias. Daí o luto, que os povos ocidentais usam com cor negra, por julgarem - não sem algum fundamento - que esta cor serve para exprimir a dor.
Mas, dir-se-á, será necessário por assim dizer regulamentar o luto, de sorte que os costumes imponham um prazo determinado, e determinada forma de luto, para os viúvos, para os pais, para os filhos, para os demais parentes? Não seria muito mais expressivo deixar a duração do luto confiada ao sentimento de cada qual? Nos séculos de civilização cristã, o consenso geral julgou de outro modo, e com razão. Vivendo em sociedade, devemos satisfação de nossos atos ao próximo. Assim, é justo manifestar a todos o pesar que legitimamente devemos sentir pela morte dos nossos próximos. Se não manifestarmos este pesar, deixamos transparecer uma indiferença que, ou redunda em desdouro para nós, ou para o morto. Bem é pois que, por um tácito e geral consenso, se fixe um prazo mínimo que tem sempre algo de arbitrário, é claro, para o luto, de sorte que, decorrido este prazo, ninguém tenha o receio de o deixar sem faltar com a decência. Claro está que os costumes impunham um prazo mínimo, e não censuravam quem quisesse levar o luto além deste prazo. Em qualquer forma, a compostura que o cristão deve guardar em todo o seu procedimento estava ressalvada.
Segundo nossos costumes tradicionais, os funerais não se revestiam apenas de sinais de dor, mas também de pompa. O mais pobre dos enterros tinha sempre qualquer coisa de grandioso, até em sua própria singeleza. Nada mais razoável. Muito vale um homem, por menos que seja na escala social. Criatura de Deus, mais ainda, filho de Deus pelo Batismo, foi criado para a glória imortal. Justo é que esta fundamental dignidade do homem, encoberta tantas vezes pelas vicissitudes da vida, seja ressaltada no momento da morte, isto é, no momento em que todos, grandes e pequenos, perdem tudo quanto possuem, e ficam reduzidos à mera condição essencial e inalienável de homens e de filhos da Igreja.
Ademais, sendo a morte um castigo de Deus, participa de algum modo da majestade do próprio Deus. Ela está posta nos umbrais da eternidade. E estes umbrais são tão imensos, que à vista deles fica reduzido a pó tudo quanto é grandeza humana. Há pois algo de mais majestoso do que a morte? E algo de mais digno de ser assinalado com pompa?
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O século passado, todo impregnado de romantismo, como que se comprazia na dor. E, por isto, sem grande dificuldade mantinha os costumes cristãos referentes à morte e aos funerais. Em muitos sentidos, exagerava-os até. Com efeito, na literatura, na música, na arte, no modo de viver do século XIX, a dor se exprimiu muitas vezes com uma nota de tragédia lancinante, de desespero, de revolta, que destoa do ensinamento da Igreja.
Uma coisa é uma separação temporária, outra uma separação definitiva. A Igreja aprovou sempre que se chorasse a morte, mas como separação temporária que terminaria por um feliz reencontro na bem-aventurança eterna. Era uma dor sentida, sim, mas cheia de esperança, de consolação, de resignação. O século XIX foi um século sem Fé, ele via as sombras da morte, mas não queria ver para lá destas sombras os clarões da ressurreição e do Céu. Daí a nota de tragédia e de desespero tão frequente então, em matéria funerária.
Ninguém pode fitar longamente a morte, quando não tem Fé. Foi o que sucedeu aos homens. Perdida no século XIX a Fé, no século XX começaram a desviar a face da morte. Daí uma tendência a restringir e tirar a solenidade a tudo quanto diga respeito à morte.
Outrora, os cadáveres eram velados em casa por vinte e quatro horas. Hoje, às vezes, não se completam doze. Outrora, revestia-se de panos negros toda a sala em que o cadáver ficava exposto, hoje este costume tende a desaparecer e muitas famílias preferem até não fazer em casa a exposição do corpo. Outrora a dor tinha toda a liberdade de se manifestar na câmara ardente, dentro dos limites da dignidade e da compostura. Hoje, é de bom gosto sufocar tanto quanto possível em público seus sentimentos, trancando-se no quarto os que desejam chorar. Outrora enviavam-se flores, e este costume chegou até certo exagero; hoje, tende-se a abolir este modo de testemunhar saudades. Outrora ia-se ao enterro em traje de solenidade, para os homens fraque. Hoje, serve qualquer traje comum. Outrora os carros funerários eram puxados a cavalo, costume que se conservou por muitos anos depois da introdução do automóvel na vida civil. Mais tarde o uso do automóvel tornou-se exclusivo. E a forma deste foi evoluindo até tomar tanto quanto possível o aspecto de um caminhão de entrega de mercadoria. Outrora o luto era longo e muito visível. Hoje, é rápido e reduzido. O ponto extremo desta transformação foi atingido por certo país em que - pelo menos em algumas regiões - os cadáveres são pintados como se estivessem vivos, enfeitados como para uma festa, e sentados em atitude normal no “living” da casa. Reúnem-se os amigos. Alguém executa algumas músicas suaves. Depois, vão todos a um lindo jardim que serve de cemitério. O morto, envolto num pano de cor verde, alacremente verde, baixa à cova quando não é cremado. E está terminado o funeral. De luto, nem se fale.
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Porque fizemos esta longa digressão sobre a morte? Porque em certo sentido, o que há de mais importante na vida é a morte. Enquanto os homens não tiverem uma atitude reta, equilibrada, cristã perante a morte, não serão capazes de ter uma atitude reta, cristã, equilibrada perante a vida.
Adolpho Lindenberg
A vitória dos conservadores nas eleições britânicas não causou espécie a ninguém, pois o regime de nacionalizações e de dirigismo econômico do governo trabalhista teve resultados tão lamentáveis e a sua política externa de alheamento e neutralidade perante a pendência soviético-americana se transformou em um tal escândalo, que não era possível supor-se que um povo tão altamente civilizado como o inglês desejasse o prolongamento do domínio dos socialistas. O próprio Times, jornal que tradicionalmente se abstém de tomar partido nas eleições, desta vez convidou os seus leitores a votar nos candidatos conservadores e liberais, pois “a época que a Inglaterra atravessa é das mais negras de sua história”.
“Época das mais negras” é bem o atual estado de coisas na Grã-Bretanha: a libra esterlina desvalorizada, e ameaçada sê-lo ainda mais; o povo, ao contrário do que acontece nas outras nações da Europa, sujeito ainda a inúmeras restrições na alimentação e no vestuário; os produtos de exportação encontrando dificuldade para competir com a indústria alemã; iminente o racionamento de gasolina; e o prestígio internacional do país no mais baixo nível destes últimos séculos.
Diante da vitória dos “tories” algumas grandes questões se põem. Uma, se ainda é tempo de conseguirem eles levantar o prestígio internacional da Inglaterra. Outra, se contam com homens capazes de o fazer: Churchill indiscutivelmente é o estadista talhado para a hora atual, mas cumpre não esquecer que já tem 76 anos de idade; Eden não é do mesmo porte que seu velho mestre, embora deva-se esperar que seja um bom ministro do Exterior (no momento em que está sendo escrita esta nota ainda não são do domínio público os nomes dos outros membros do ministério). Porém, a mais importante de todas as questões é saber que oposição ao novo governo farão os deputados trabalhistas — que, lamentemos de passagem, não são poucos, — e os homens do Departamento de Estado norte-americano. A opinião pública dos Estados Unidos recebeu com satisfação o resultado das eleições, mas o mesmo não podemos dizer de Truman, Acheson, E. G. Miller, e outros dignos representantes da ala semi-esquerdista do Partido Democrata Americano.
Sejam, no entanto, quais forem as reações e as oposições à política do governo do Sr. Churchill, podemos, graças aos programas e discursos de propaganda eleitoral dos candidatos conservadores, prever quais serão as linhas mestras da nova política externa e da nova orientação econômica e social que adotará a Inglaterra:
1) O igualitarismo econômico e social, o desencorajamento da iniciativa privada, os impostos pesadíssimos e sobretudo a debilidade da política externa, consequências naturais da dominação socialista, fizeram do inglês um homem proletarizado, entristecido, e saturado de complexos de inferioridade. Será suficiente o simples fato de ver o velho Churchill voltar ao poder, pronunciar novamente seus grandes discursos que possuem a força e a pujança de um rugido de leão, reivindicar, por uma política sábia e por um oportuno reaparelhamento do exército, o grande papel internacional do Império de Suas Majestades Britânicas, para que o homem do povo inglês reerga sua cabeça e recobre a confiança no futuro de seu país.
2) Os conservadores procurarão reforçar o prestigio da realeza e reavivar o espírito comunitário do Império. Os trabalhistas ainda não se diziam contrários à monarquia, mas o estado de espírito esquerdista e igualitário que estava começando a criar raízes em toda a Ilha, faria dentro em pouco parecer a instituição monárquica tão anacrônica como um castelo medieval no meio de um parque fabril recém-construído. Por outro lado os partidos trabalhistas na Austrália e na Nova Zelândia sofreram derrotas decisivas nas eleições do ano passado e é sabido que o Sr. Attlee teve não poucas divergências com os governos conservadores desses “domínios”. Não nos devemos esquecer também de que tanto ou mais interessados que os próprios habitantes da ilha no rearmamento da esquadra e da aviação britânicas, estão os australianos, pois a ameaça de uma expansão do comunismo por toda a Oceania é gravíssima.
3) Entre os primeiros objetivos do novo governo se encontra o de reatar o mais brevemente possível as relações amistosas com os EE. UU. A grande simpatia que reinava entre ingleses e americanos e que teve sua origem na luta comum contra os nazistas ficou muito comprometida, primeiro com a política hostil dos trabalhistas em relação aos partidos liberais e conservadores do continente europeu e depois com a escandalosa simpatia e apoio que o Foreign Office ultimamente vinha dispensando ao governo comunista chinês. Muito provavelmente Churchill intensificará o rearmamento inglês, favorecerá a organização do exército europeu, e enviará mais tropas inglesas para a Coréia, e com isto aberta a porta para uma ampla reconciliação com a opinião pública americana. Nesse sentido é interessante registrar o júbilo popular que houve na América do Norte quando se confirmou a vitória dos conservadores.
4) Ou muito nos enganamos ou toda a questão persa e egípcia será resolvida com muito mais rapidez, simplicidade e retidão agora que tanto Mosadegh como o Rei Farouk sabem que terão pela frente um homem como Churchill, ao invés do indeciso e pusilânime primeiro ministro anterior.
5) Pelo programa dos conservadores podemos saber que o novo ministério consolidará a nacionalização das minas de carvão, mas suspenderá a das siderurgias e dos sistemas de transportes. Por outro lado reduzirá os serviços gratuitos de saúde e de ensino, o que redundará em uma diminuição dos impostos, e encorajará por todos os meios ao seu alcance a iniciativa privada e a livre concorrência.
Essas medidas, são nossos votos, insuflarão uma nova vida no organismo britânico e talvez possamos contar novamente com a Inglaterra como um dos grandes inimigos do comunismo internacional e uma das barreiras mais sólidas contra o expansionismo russo.
PIO XII: A força da verdadeira oração mede-se de acordo com a grandeza da caridade, diz o mesmo santo Pontífice Gregório (Hom. 27, par. 8, in Evang. S. Ioan, mg. L. 76, 1208 C) referindo-se ao espírito das palavras do Divino Mestre de que devemos "preferir o Reino de Deus e a sua justiça" a qualquer outro desejo (Mt. VI., 42). Esse é sem dúvida o espírito daqueles que juraram, diante do altar de sua Rainha Celeste, se esforçar constantemente, sob o seu Patrocínio benigno e eficaz, para atingir em primeiro lugar a santificação pessoal e em seguida a salvação e o progresso espiritual do próximo. De fato, encontra-se neste breve programa a constituição de vossa organização e não hesitamos em afirmar que nenhum tempo tem necessitado tanto de jovens católicos imbuídos deste generoso espírito de congregados marianos como o tempo presente, para promover a causa de Cristo e da Igreja no lar, nas escolas e no importantíssimo campo das relações entre patrões e operários. (Carta ao R. P. Daniel Lord, S. J., de 24-I-1948).
LEÃO XIII — Da mesma maneira, é necessário afastar da democracia cristã outra acusação: a de que ela consagra os seus cuidados de tal modo aos interesses das classes inferiores que parece pôr de lado as classes superiores, que não são menos úteis para a conservação e melhoramento do Estado... Por causa da união natural do povo com as outras classes, união que se torna mais estreita pela fraternidade cristã, o zelo, por grande que seja, que é consagrado ao alivio do povo, faz sentir seguramente a sua influência entre essas classes mesmas, tanto mais que é conveniente e necessário, para obter bom resultado, que estas sejam chamadas a tomar parte na obra, como explicaremos mais adiante". (Encíclica "Graves de communi", de 18-1-1901).
Plinio Corrêa de Oliveira
Continuando a explorar os tesouros de doutrina que se encontram na alocução pontifícia aos dirigentes do “Movimento Universal por uma Confederação Mundial” que vimos comentando em números anteriores, e depois de analisar os tópicos desse documento relativos aos erros de estrutura da sociedade moderna, cabe-nos investigar quais as linhas gerais que deverá ter, segundo a mente de Pio XII, a sociedade cristã do futuro.
Falando da vida internacional, disse o Pontífice:
“A Igreja quer a paz, e por isso se empenha em promover tudo que nos quadros da ordem divina, natural e sobrenatural contribui para assegurá-la. Vosso Movimento, Senhores, se empenha em realizar uma organização política eficaz do mundo. Nada mais conforme com a doutrina tradicional da Igreja nem mais adaptado ao seu ensinamento sobre a guerra legítima ou ilegítima, sobretudo nas conjunturas presentes. É preciso, pois, chegar a uma organização desta natureza, quando mais não fosse para acabar com uma corrida armamentista na qual, há dezenas de anos, os povos se arruínam e se esgotam em pura perda”.
“Sois de opinião que, para ser eficaz, a organização política mundial deve ter forma federativa. Se por isto entendeis que ela deve libertar-se da engrenagem de um unitarismo mecânico, ainda neste ponto estais de acordo com os princípios da vida social e política firmemente estabelecidos e sustentados pela Igreja. De fato, nenhuma organização do mundo será viável se não se harmonizar com o conjunto de relações naturais, com a ordem normal e orgânica que rege as relações particulares dos homens e dos diversos povos. Sem isto, seja qual for sua estrutura, ser-lhe-á impossível manter-se de pé e durar”.
“Eis porque estamos convencidos de que o primeiro cuidado deve consistir em estabelecer solidamente ou restaurar estes princípios fundamentais em todos os campos: nacional e constitucional, econômico e social, cultural e moral”.
Passando ao campo político, disse Pio XII:
“Por toda a parte, atualmente, a vida das nações está desagregada pelo culto cego do valor numérico. O cidadão é eleitor. Mas, como tal, não é ele na realidade senão uma das unidades cujo total constitui uma maioria ou uma minoria, que o simples deslocamento de algumas vozes, quando não de uma só, basta para inverter. Do ponto de vista dos partidos, o eleitor não conta senão por seu poder eleitoral, pelo concurso que seu voto dá; de sua situação, e de seu papel na família e na profissão não se cogita”.
Quanto à vida econômica e social, afirma o Pontífice que:
“Não há qualquer unidade orgânica natural entre os produtores, desde que o utilitarismo quantitativo, a mera consideração do lucro é a única norma, que determina os lugares de produção e a distribuição do trabalho, desde que é a ‘classe’ que distribui artificialmente os homens na sociedade, e não mais a cooperação na comunidade profissional”.
No campo cultural e moral, por sua vez:
“A liberdade individual, desembaraçada de todos os liames, de todas as regras, de todos os valores objetivos e sociais, não é, na realidade, mais do que uma anarquia mortal, sobretudo na educação da juventude”.
E, mais adiante, o Santo Padre conclui:
“Se, pois, no espírito de federalismo, a futura organização política mundial não pode, sob pretexto algum, deixar-se arrastar no jogo de um mecanismo unitário, ela não gozará de uma autoridade efetiva a não ser na medida em que salvaguarde e favoreça em toda a parte a vida própria de uma sadia comunidade humana, de uma sociedade cujos membros concorrem todos juntos para o bem da humanidade inteira”.
Os grifos, é claro, são nossos. Introduzimo-los nos textos para facilitar seu estudo.
Nestes vários tópicos, cada qual mais importante do que o outro, há duas metáforas constantemente empregadas pelo Pontífice, “organismo” e “mecanismo”. O “organismo” corresponde sempre ao que é reto, bom, louvável. O “mecanismo” por sua vez corresponde ao que é desviado, inadequado, errado.
O exato conhecimento das diretrizes pontifícias exige pois que aprofundemos a análise destas metáforas.
Um organismo animal ou humano, e um mecanismo têm entre si algo de comum. Tanto um como outro é um conjunto de peças diferentes entre si, ordenadas umas às outras de maneira a constituir um só conjunto, e realizando cada qual uma tarefa que constitui parte de uma obra comum.
A despeito de tantas analogias, as diversidades entre organismo e mecanismo são tão profundas que se poderiam chamar quase de infinitas. Todas elas resultam da diferença que vai do inerte, estático, morto, para o que é quente, ágil, vivo:
I — Os órgãos de um corpo agem por um movimento que lhes vêm da vida que está presente neles; o movimento procede das próprias profundezas de seu ser. As peças de uma máquina são incapazes de se mover por si. Todo o seu movimento lhes vem de fora. Elas propriamente não se movem: são movidas.
II — Os órgãos vivos têm uma capacidade não pequena, de se adaptarem por si mesmos a novas condições de existência e funcionamento. É uma adaptação delicada, geralmente lenta, feita aos milímetros, mas exatíssima e durável. A máquina só é como foi feita, e por si mesma não se adapta a nada. Quando alguém a adapta a algum outro fim, pode fazê-lo drasticamente, porque a matéria é cega, e não é necessário empregar contemplações para fundir uma peça de metal, ou lavrar o mármore.
III — Dotado de vida própria, o órgão tem certa porção de independência. Assim, nenhum de nós é livre de impor a suas pernas ou braços o tamanho e a forma que quiser. O que é postiço, artificial, mecânico, pelo contrário, está absolutamente sujeito ao homem. E por isto um aleijado pode impor à sua perna de pau ou de borracha uma cor, um peso, uma forma que lhe parecer mais prática ou mais estética.
IV — Como a natureza é obra direta de Deus, e o mecanismo é mais diretamente obra do homem, apesar de estar tudo quanto é mecânico muito mais sujeito à ciência, tudo quanto é orgânico é muito mais perfeito. Assim, para exemplificar, por mais que a ciência aperfeiçoe as pernas e braços mecânicos — e ela tem conseguido maravilhas neste sentido — qualquer homem preferirá a uma destas “maravilhas” sua perna ou seu braço natural, ainda que deficientes.
V — Na máquina, todas as peças obedecem à maneira de escravas, ao impulso de quem as aciona. O principal é pois o papel da vontade de quem as dirige. Com uma máquina só há um meio de direção possível: a ditadura. E quando a máquina é renitente só há uma solução: abri-la, desmontá-la e aplicar a torquês e o martelo no que estiver torto. Um organismo vivo é muito mais livre, a mecânica sempre foi, é, será sempre mais eficiente do que a cirurgia. No organismo humano, o êxito das atividades do corpo depende da cooperação natural, viva, de certo modo (note-se bem a restrição), livre, de cada parte.
Apliquemos agora às sociedades humanas os conceitos de “orgânico” e “mecânico”.
Descrevamos duas sociedades do passado, uma orgânica e outra mecânica.
Num certo sentido, a mais viva de todas as sociedades é a família. Com efeito, se bem que o Estado como outros grupos sociais inferiores nasça da própria ordem natural das coisas, nenhuma sociedade é tão imperiosa e por assim dizer urgentemente criada pela natureza quanto a família. Podemos conceber a sociedade humana vivendo embrionariamente numa estrutura familiar, anteriormente à existência do Estado. Não podemos conceber o Estado vivendo anteriormente à família, ou sem ela.
De outro lado, não há sociedade para a qual estejamos tão naturalmente propensos. Todas as disposições de espírito necessárias ao regular funcionamento da família existem em nós - ao menos de certo modo - espontaneamente: o respeito dos filhos aos pais, a compreensão, o amor, o mútuo auxílio, entre os membros. Comparada com a família, qualquer outra sociedade parece hirta, rígida, em certo sentido artificial.
Um dos traços característicos da civilização cristã edificada no Ocidente depois da invasão dos Bárbaros consistiu em fazer da família não só uma instituição de vida puramente doméstica e privada, como é hoje, mas a unidade propulsora de todas, ou quase todas as atividades políticas, sociais e profissionais.
A propriedade imóvel era frequentemente mais familiar do que individual. A casa, a terra, o feudo eram considerados muito mais como o patrimônio da família, do que do indivíduo. O mesmo se deu no artesanato e no comércio, em que se manifestou a tendência de transmitir a profissão de pai para filho, em várias gerações.
Se examinarmos o domínio da ciência e das artes, veremos também com quanta frequência os membros de uma família se dedicavam ao mesmo ramo.
Na administração tanto feudal, quanto municipal ou real; nas finanças, na diplomacia, na guerra, em todos os campos enfim, notamos que a família enquanto tal era, em toda a medida do possível, a grande unidade de ação e de propulsão. Os feudos, as corporações, as universidades, os municípios, nada havia que escapasse à penetração da família. De tal sorte que o Estado — um reino por exemplo — não era senão uma família de famílias, governada por uma família: a família real.
Com as reservas com que imagens como esta devem ser empregadas, pode-se dizer que a família penetrava todas as partes do organismo social, como as artérias penetram e irrigam todos os membros do corpo humano. E, assim, a família comunicava um que de especialmente vivo, plástico, orgânico, a todas as instituições políticas, sociais, econômicas, etc.
Considerando a estrutura e a vida destas instituições, como sejam corporações, universidades, municípios, impressiona a sua “naturalidade”.
As linhas típicas destas várias espécies de organismo não foram preestabelecidas por algum teorizador acadêmico e imaginoso. Pelo contrário, nasceram paulatinamente de um ajustamento quotidiano às necessidades e aos problemas de cada instante. Por isto, havia nelas algo de profundamente real, a um tempo vivo e ágil, estável e sólido.
E o Estado? Também era algo de muito menos hirto, impessoal, e cheio de arestas do que se tornou depois de 1789. Pelos entrelaçamentos do sistema feudal, um Rei — encarnação do Estado — podia possuir feudos em território estrangeiro. Assim, as soberanias se emaranhavam umas nas outras, as nações se interpenetravam, e sobretudo em certas zonas de fronteira era difícil estabelecer com clareza quando começava um país e cessava outro. Algo de complexo como os tecidos de um corpo, e não simples como as linhas de um esquema mecânico.
Se considerarmos as relações entre o todo e as partes, o Estado e os órgãos sociais de que se constituía a nação, a impressão de organicidade vital se torna ainda mais pronunciada: cada órgão é um pequeno todo, como que um reino em ponto pequeno ou até minúsculo, dotado dentro de sua esfera de certas funções governamentais, legislativas, executivas ou judiciárias. Assim, na família, o Pai era um verdadeiro Rei em miniatura, pelo poder que exercia sobre a esposa e os filhos. Característico era o axioma: o Pai é Rei dos filhos; e o Rei é Pai dos Pais. Em algumas famílias, até as leis de sucessão eram peculiares, e diversas das que se aplicavam em todas as outras.
Também nos feudos, o Senhor era uma miniatura do Rei, legislador, governador e juiz dentro da órbita que lhe tocava.
Quanto às corporações, também elas exerciam funções “trabalhistas” — para empregarmos o vocábulo moderno — hoje muitas vezes afetas aos órgãos legislativos, executivos ou judiciários do Estado.
O Rei — simplificando muito as coisas, é claro — tinha apenas a função supletiva de fazer o que por si estes vários órgãos não poderiam realizar, isto é, a tutela dos interesses comuns e supremos que extravasavam do âmbito próprio de todos os órgãos, a manutenção de um justo equilíbrio entre eles, e a vigilância para que no recesso de nenhum deles, se ofendessem os princípios fundamentais da moral e da civilização cristã.
Considerado em seu conjunto este quadro muito sumário, vê-se quanto é orgânico. Cada elemento celular tem funções inteiramente peculiares. Cada qual tem, para o exercício de suas funções, atribuições que lhe tocam por direito próprio, e se move por uma energia que age de dentro para fora, e não de fora para dentro. O bom andamento do todo depende muito mais do bom andamento de cada parte, do que da mera ação do organismo central.
Como seria uma ordem de coisas anorgânica?
Seria a que se parecesse com uma máquina, isto é, em que todos os membros recebessem o impulso de um só agente externo e central; em que a obediência de cada parte fosse absolutamente pacífica e impessoal; em que a forma e a tarefa de cada peça, e do todo, fosse suscetível de qualquer reforma julgada aconselhável em função das concepções teóricas dos técnicos.
De que modo se realizaria isto? Pelo socialismo absoluto. De fato, para o Estado socialista, a família e os grupos sociais não existem. Ele não concebe outro meio de ação senão a repartição pública, naturalmente escrava, obedecendo ao impulso que vem do centro, movendo-se exclusivamente segundo este impulso, e organizada à maneira de uma rede metálica imensa que envolve o Pais, e através de cujos filamentos a direção central faz circular correntes elétricas como e quando lhe apraz.
De outro lado, tudo isto é rígido: um teorizador concebe a priori uma série de peças deste organismo. Um decreto, ou uma lei, o transforma em realidade. E ele há de existir tal como manda o decreto ou a lei, enquanto outro decreto ou outra lei não dispuser o contrário. Nada mais rígido, sim, porém nada mais reformável. Basta que sobrevenha nova lei, para que o mecanismo se transforme em outro inteiramente diverso, sem traço nem vestígio do que outrora foi. Como o metal que, fundido, aceita novo molde e não conserva em si nenhum vestígio de sua forma anterior.
Em larga medida, as democracias modernas participam dos vícios do Estado socialista. A sua grande força propulsora é a vontade da maioria meramente numérica da população. Expressa esta vontade nas urnas, constitui-se um Parlamento soberano, que pode fazer tudo, inclusive reformar a Constituição. Assim, metade mais um pode decretar o que quiser: será tudo legal se se fizer por via parlamentar. A família pode ser dissolvida, a propriedade privada corroída por toda a espécie de sofismas ou até abolida, a Religião destronada pela sua separação do Estado, ou quiçá proscrita: será tudo honesto, coerente, reto, se for o desejo da maioria. Foi em nome desta maioria, consultada em sucessivos plebiscitos acerca de cujo enigma a História não disse a última palavra, que Hitler reduziu a Alemanha a uma senzala.
O Poder Legislativo, o Executivo, o Judiciário, pertence exclusivamente e inteiramente ao Estado, nos regimes oriundos da Revolução. E em face deste Estado que
(continua)