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RELEMBRANDO O MAIOR DIA DESTE SÉCULO

D. Geraldo de Proença Sigaud S.V. D., Bispo de Jacarezinho

Há um ano, a voz do Supremo Pastor soava diante de Deus e da Igreja, proclamando, com vigor e autoridade suprema, como dogma de fé aquela doce e consoladora verdade que nossos corações anelavam por que fosse proclamada.

Após uma viagem cheia de peripécias, o avião da Scandinavian nos deixou em Genebra no dia 30 de Outubro. No dia seguinte a Savinais elevava voo sobre os Alpes, e pousando em Nice tomava o rumo da Cidade Eterna. Eram dez horas da noite, véspera do dia 1° de Novembro, quando pisamos nas grades de aço, lembrança dos aeródromos de guerra, que cobrem parte do Campo de Ciampino. Via Appia Nuova, Quo Vadis, Porta San Paolo, Collegio del Verbo Divino. Estávamos em Roma, após dezoito anos de ausência, para assistirmos a solenidade que nossa alma mais desejava presenciar.

Setecentos bispos, setecentos guerreiros

Oito horas da manhã de 1° de Novembro. O frio e a chuva que nos acolheram no campo de Ciampino foram varridos por um tépido vento do sul. Roma ostenta o mais azul dos céus, o mais radioso dos sóis. O coração palpita como no dia em que pela primeira vez subimos as rampas do Cortile di San Damaso, Sala Regia, Sala Ducale, Capella Sixtina. Setecentos Bispos, de capa pluvial e mitra, enchem aqueles magníficos recintos. A mitra deixa de ser um pacífico ornato pontifical para se tornar um capacete de guerreiro, quando se vêm Bispos em grupo, ornados da «galen salutis». Setecentos Bispos, setecentos guerreiros, de capas alvas e elmos audazes, se congregavam, se agitavam naquelas salas célebres, à espera do Supremo Pontífice.

«Não foi a carne nem o sangue, que te revelou estas coisas»

Precedido dos Arcebispos Assistentes ao Solio e dos Cardeais entra o Papa. Passo rápido, corpo ereto, espelhando nas feições preocupação e denodo. Os Bispos tiram os solidéus, que não porão mais enquanto se virem diante do Vigário de Cristo na terra. Paramenta-se. Exposição do Santíssimo. Genuflexo diante de Jesus Sacramentado, o Santo Padre invoca as luzes daquele que disse a S. Pedro nas áridas paragens de Cesarea de Felipe: «Não foi a carne nem o sangue que te revelou estas coisas, mas o Meu Pai que está no céu».

Em largo cortejo descemos pela Scala Régia. A teoria das capas e mitras brancas vai desenhando um estendal alvo por entre a multidão compacta de mais de meio milhão de fiéis, agrupados em frente da Basílica, com os corações a pulsar de alegria e as almas banhadas de luz.

O cenário mais soberbo do mundo

Estamos espraiados sobre as escadarias de S. Pedro. Diante da porta principal, cai um imenso fundo de veludo carmesim, no qual se recorta o docel alvo do trono pontifício. As possantes colunas de travertino dourado da fachada formam o pálio mais soberbo do mundo. Sobre a cúpula de São Pedro um céu azul, sereno, glorioso, sem nuvens, com um sol suave de outono, alegre e brando, luminoso e macio. A Praça de S. Pedro regurgita de fiéis, que em massas sucessivas transbordam para a Praça Pio XII, se espalham pela Via della Conciliazione e se diluem pela altura da primeira ponte do Tibre. Trinta e seis Cardeais formam o Senado em torno do Papa.

Veni Creator Spiritus

Em nome do Sacro Colégio, em nome dos Arcebispos e Bispos Católicos do Universo, em nome dos fiéis de todos os países e climas do mundo, o Cardeal Decano se dirigiu ao Santo Padre, rogando-lhe que definisse a Assunção da Virgem Santíssima.

Respondeu-nos o Papa, que aquela hora não soara sem um desígnio singular da Eterna Divindade, mas que uma definição tão grave e excelsa não se podia fazer sem invocar o Espírito Santo.

Ajoelhamo-nos. A voz do Papa soou pelos alto-falantes da praça imensa: «Veni Creator Spiritus!» Os peitos da multidão inflamada de entusiasmo continuavam as palavras sublimes —«Mentes tuorun visita!» Sabíamos e críamos que naquele momento o Divino Espírito Santo descia do céu ao coração do Pontífice e que, iluminando e amparando sua inteligência e sua fé, o faria Mestre Infalível do que desejávamos ouvir. «Assumpta est Maria em coelum».

Sentou-se o Papa em seu trono. Levantamo-nos todos. De pé, queríamos ouvir a palavra infalível. De pé, porque discípulos a quem falava o Mestre. De pé, porque arautos dispostos a proclamar aos quatro cantos do universo, até desfalecer, a bela nova que íamos ouvir — «Assumpta!»

As mitras se abateram. De cabeça descoberta ouvíamos a palavra do Papa.

Pius Episcopus, Servus Servorum Dei falava ex cathedra aos fiéis de todos os países e de todos os séculos futuros. Munificentissimus Deus qui omnia potest... Em meio às tristezas e angústias acabrunhadoras de nossa idade, Deus nos concede a consolação de contemplar o crescimento quotidiano do amor e da piedade para com a Virgem Maria. Lembra o Santo Padre o dogma da Imaculada Conceição, proclamado por Pio IX, e explica o nexo íntimo que liga a Assunção à preservação da mancha original. Lembra em seguida o Sumo Pontífice a consulta que fizera a todos os Bispos do mundo, na carta «Dei parae Virginis Mariae» de 1° de Maio de 1946, em que interrogava o Episcopado Católico: «Se credes que pode ser proclamado o dogma da Assunção e se vós, o Clero e os fiéis de vosso Diocese o desejais». A unanimidade da resposta foi perturbada por alguns ânimos tímidos, que receavam a contradição de Satanás. Mas a voz poderosa dos Pastores abafou os reparos dos timoratos, e soou o Cremos e Desejamos.

Pronunciamos, declaramos, definimos

Enumerada a fé e o voto da Igreja que hoje vive, Sua Santidade evocou o testemunho dos que nos precederam, e cujas vozes graves e eternas faziam coro com a voz vibrante de fé da geração presente.

Expostos os fundamentos sobre que se ergue a nossa fé inabalável na Assunção da Virgem Maria, o Santo Padre, com voz extraordinariamente potente, declarou que sua maior alegria era culminar os esplendores daquele bendito Ano Santo, colocando no diadema que adorna a fronte da Santíssima Mãe de Deus essa refulgente gema. Assim erguia Sua Santidade um monumento «aere paerenius» de sua ardentíssima devoção para com a Virgem Maria.

No silêncio absoluto daquela imensa Praça, em que se concentravam os corações de toda a Cristandade, soou então a voz de Pedro que falava ex cathedra: «Portanto, após haver elevado a Deus súplices rogos, e haver invocado as luzes do Espírito da Verdade, para glória de Deus Onipotente, que derramou em Maria a Sua especial benevolência, para honra de Seu Filho, Rei imortal dos séculos e Vencedor do pecado e da morte, para maior glória desta Augusta Mãe e gozo e exultação de toda a Igreja: por autoridade de Nosso Senhor Jesus Cristo, dos Bem-aventurados Apóstolos Pedro e Paulo, e por Nossa autoridade, pronunciamos, declaramos e definimos que é Dogma revelado por Deus: que a Imaculada Mãe de Deus, a sempre Virgem Maria, terminado o curso de Sua vida terrestre, foi levada ao céu em corpo e alma». E cominadas as penas a quem negasse a verdade definida, terminava o Supremo Pastor a Constituição Apostólica: «Eu, Pio, Bispo da Igreja Católica, assim definindo subscrevi.»

O clamor uníssono da multidão imensa estrugiu então, e escapando ao abraço da grande colunata se levantou até o céu, enquanto, fazendo coro com aquela voz que soava como as águas de uma grande catarata, os sinos de São Pedro, os sinos de Santa Maria Maggiore, os sinos de Roma e do mundo todo faziam eco ao pulsar dos corações em festa.

LEGENDA:
- A Assunção: iluminura de um antifonário medieval em pergaminho, do mosteiro de Guadalupe, Espanha.


É LICITO MATAR OS PECADORES?

São Tomás de Aquino

Como já foi dito, é lícito matar os brutos, enquanto naturalmente ordenados ao uso dos homens, assim como o imperfeito é ordenado para o perfeito. Toda a parte, porém, se ordena para o todo como imperfeito para o perfeito. Por onde, toda parte é naturalmente para o todo. E por isso, se convier à salvação de todo o corpo humano a amputação de algum membro, por exemplo se estiver podre e corromper os outros, é louvável e salutar que seja amputado. Ora, cada indivíduo está para toda a comunidade como a parte para o todo. Portanto, se algum homem for perigoso para a comunidade e a corromper, por causa de algum pecado, será louvável e salutar que se o mate, para conservar o bem comum: pois "um pouco de fermento corrompe toda a massa", como se lê na Va Epístola aos Coríntios (V. 6).

O Senhor mandou que nos abstivéssemos de arrancar a cizânia, para poupar o trigo, isto é, os bons. O que se dá quando os maus não podem ser postos à morte sem que também o sejam os bons: quer por estarem ocultos entre os bons, quer por terem muitos sequazes, de modo a não poderem ser mortos sem, perigo para os bons, como diz Agostinho em "Contra Parmenianos", liv. III, cap. I. Por isso, o Senhor ensina que é preferível deixar viver os maus e protelar a vingança até o último juízo, a matá-los juntamente com os bons. Mas, quando da morte dos maus não resulta nenhum perigo próximo para os bons, mas antes defesa e salvação, nesse caso é lícito pô-los a morte.

Deus, na ordem da Sua sabedoria, às vezes mata os pecadores imediatamente, para livrar os bons; outras vezes, dá-lhes tempo de fazerem penitência, conforme sabe o que importa aos Seus eleitos. O que também a justiça humana imita, na medida do possível, matando os que são perniciosos ao próximo e conservando para que se arrependam os que pecam porém não prejudicam gravemente a outrem.

Quem peca afasta-se da ordem racional. E portanto decai da dignidade humana, pois que o homem é naturalmente livre e tem uma finalidade em si mesmo; e vem a cair, de certo modo, na escravidão dos animais, que o leva a ser ordenado à utilidade dos outros, conforme aquilo dos Salmos XLVIII, 21: "O homem quando estava na honra não o entendeu; foi comparado aos brutos irracionais e se fez semelhantes a eles"; e o que se diz nos Provérbios XI, 29: "O que é insensato servirá ao sábio". E portanto, embora seja em si mesmo mau matar um homem, enquanto ele se conserva na sua dignidade, contudo pode ser bom matar um pecador, como o é matar um animal; pois o mau homem é pior que um bruto e causa maiores danos, como diz o Filósofo, cm I Polit. (lect. I) e em VII Ethic (lect. VI). — (Sumnta Theológica, II II.ae., q. LXIV, art. II).