Estamos na época do mais descabelado paganismo político e social, ou seja, da total dissociação da vida política o social dos povos, de sua vida religiosa. E basta ter olhos para observar a vida contemporânea, ou uma rápida referência a documentos pontifícios tais como a Encíclica «Humanum Genus» de Leão XIII para convencer os católicos inteligentes e de boa fé do papel que a ação organizada do mal representa nesse descalabro dos povos e das instituições. São inescusáveis, portanto, aqueles que, diante da decadência do mundo de hoje e da evidência contundente dessa campanha de paganização do Estado e da sociedade, ainda falam em «Estado leigo vitalmente cristão» ou que acreditam que os povos teriam atingido uma verdadeira maturidade social e política que tornaria completamente dispensável a tutela da ordem social pela Igreja. Ainda recentemente dizia um sociólogo católico que as nações teriam chegado à sua idade adulta, ao ponto de estarem peremptos e obsoletos os métodos empregados pela Igreja, em outros tempos, para a educação social e política dos povos, pois os métodos de educação infantil não conviriam à psicologia do adulto.
Nesta fase final da luta contra a civilização católica, em plena restauração do paganismo socialista, vêm esses cegos voluntários acrescentar a confusão, afirmando que a humanidade teria se emancipado da Igreja e começado a tomar consciência de si mesma...
Daremos um exemplo destas verdades. Comemorou-se a 7 de maio de 1950 o Dia Mundial da Saúde sob os auspícios do Departamento Mundial da Saúde, organismo cuja sede está instalada no Palácio das Nações, em Genebra. O diretor-geral desse órgão era, e parece que ainda é, um certo Dr. Brook Chisholm, que em entrevista à imprensa, referindo-se aos entraves opostos ao equilíbrio social e político geral do mundo, disse existir uma força capaz de falsear o uso normal da inteligência. Querem os leitores saber que força será essa? Pensarão que se trata da propaganda dirigida, de que fazem uso as potências totalitárias para impedir que o povo raciocine. Pensarão que são as forças secretas, em cujos sombrios laboratórios se conspira contra a humanidade, e se tenta uma fórmula capaz de transformar os homens inteligentes e livres em massa amorfa e mecânica, embrutecida e deixada aos seus instintos elementares. Pensarão que se trata do poder diabólico desses cientistas, a soldo das Gestapos e das Guepeus, que inventam e administram drogas capazes de privar do uso da razão e de transformar em débeis mentais a gigantes do porte intelectual e moral de um Cordel Midszenty. Entretanto, não se trata de nada disso. Daremos a palavra ao próprio Dr. Chisholm que, convém lembrar, não é uma voz isolada, mas faz parte de toda uma ordem de ideias e de ação tendentes a tomar de assalto a direção da vida política e social de todos os povos.
Diz o diretor-geral do Departamento Mundial de Saúde, respondendo à pergunta encomendada sobre a existência de uma força capaz de falsear o uso normal da inteligência: — «Certamente, essa força existe. Chama-se precisamente moral. É a receita do bem e do mal contra a qual o homem foi advertido há muito tempo, sob a forma do fruto da árvore da sabedoria. No antigo relato hebraico, Deus disse ao homem: — «Não comerás frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal». Já naqueles tempos remotos, o bem era considerado como tão perigoso quanto o mal e ambos como produzidos pela mesma árvore. Foi necessário muito tempo para lançar luz sobre essa verdade e para se reconhecer que o conceito do bem e do mal é o fundamento do sentimento de inferioridade, de culpabilidade e de medo, inutilmente e artificialmente produzido e que leva a tantas injustiças e catástrofes no mundo».
Portanto, para livrar o mundo dos flagelos que o afligem, preconiza o diretor-geral do Departamento Mundial de Saúde a abolição do conceito do bem e do mal, a extinção da consciência do pecado, como primeira etapa para afastar do cenário social e político o inimigo número um da humanidade, que, segundo suas próprias palavras, seria o homem que ainda se atem a essas velharias.
E enquanto o Santo Padre Pio XII declara do alto da fortaleza vaticana que o maior castigo do mundo de hoje é a perda da noção do pecado, os inimigos de Deus, prestigiados por organizações políticas de âmbito mundial ardilosamente manobradas pelas forças secretas, procuram justamente destruir na mente humana o respeito à lei moral, o conceito do bem o do mal, para lançar a sociedade no caos da animalidade totalitária.
Por este simples exemplo, melhor que qualquer divagação demonstrativa, temos diante dos olhos a verdade de que nos achamos em plena época da insinceridade, em que são usados em proporções gigantescas os recursos do «mito» e do «slogan» para substituição da verdade eterna pela mentira do demônio. Nada de valores absolutos, nada de perder tempo com aquilo que não diz respeito aos nossos interesses imediatos e materiais. As divindades supremas dos dias que correm são a mecanização, a uniformização, a organização, a eficiência. Desfeita, na sociedade, pela propaganda do 1iberalismo maçônico, a noção de pessoa humana, substituída a convivência social, fruto da civilização católica, pela sua contrafação, que ó o individualismo de origem protestante, estava a humanidade preparada para se transformar em rebanho, em categoria numérica, em conglomerado gregário. E esse coletivismo explora sobretudo a superficialidade, a falta de ideal e de reflexividade, e o espírito pueril de uma sociedade composta de homens que não tiveram infância.
A grande tarefa, portanto, de todos aqueles que trabalham por um mundo melhor, é a da restauração da pessoa humana, na plenitude de seus direitos e deveres, é a transformação das massas ignorantes, passíveis e embrutecidas, em povo consciente. E essa tarefa não se acha ligada primordialmente à missão de ministrar aos homens os frutos dos conhecimentos da ciência e da técnica, ou o simples conforto material, mas sobretudo de lhes proporcionar alguma coisa que impeça a degeneração da função científica a que estamos assistindo, que faz das conquistas da técnica hodierna um instrumento de destruição, desde os processos científicos para a limitação da natalidade à bomba de hidrogênio.
Falta-nos o apoio de uma norma moral absoluta. É o relativismo moral que torna a sociedade superficial e escrava de suas paixões. Assistimos a um espetáculo deprimente para aqueles espíritos cujo racionalismo otimista e eufórico os fazia profetizar uma era de fartura e de prosperidade nunca vistas para a humanidade: — Com todos os progressos inegáveis das ciências naturais, o que vemos é a humanidade transformada em um novo rei Midas, a morrer de fome e de desespero dentro da área em que se acham os seus fabulosos tesouros.
Que é que impede os homens de gozarem desses maravilhosos frutos da idade da física nuclear? Deus, Soberano Senhor de todo o universo criado, em cuja Infinita Sabedoria se acha contida toda a vacilante e balbuciante ciência dos homens, coloca ao dispor da humanidade todos esses imensos recursos, todos esses resultados obtidos pelo melhor conhecimento das leis naturais. Todo esse imenso acervo de bens foge, entretanto, à sua missão cultural, se não é utilizado para conduzir a humanidade ao seu verdadeiro fim, se não é empregado para a procura do Reino de Deus e de sua Justiça.
Não consiste, portanto, o problema da paz social unicamente na volta ao nosso bem-estar material, nem no modo tranquilo como possamos usufruir dos bens terrenos, pois para nós, criaturas resgatadas pelo precioso Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, todos esses bens parciais e efêmeros devem ser usados como simples meio para nos ajudar a atingir nosso fim último, que é a bem aventurança eterna.
A paz desejada por Nosso Senhor não é certamente a paz como a entendem as Chancelarias. Que é, na verdade, a paz? A paz, diz Santo Agostinho, é a «tranquilidade da ordem». Segue-se naturalmente que a paz não será concedida aos indivíduos e à sociedade a não ser que a ordem, depois de haver sido perturbada, volte a esta tranquilidade individual e social.
Ora, é a Fé que nos faz conhecer as relações cuja harmonia constitui essa ordem desejada por Deus no mundo. Em primeiro lugar, será necessária a aceitação prática do soberano domínio do Criador sobre todas as obras de Suas mãos — soberano domínio sobre os povos e sobre as nações; em segundo lugar, a afirmação da supremacia do espírito sobre os sentidos — sem desconhecer o que há de animal em nossa natureza, devemos nos lembrar que é a nossa alma com suas potências que nos distingue dos seres irracionais e nos coloca na dignidade de filhos de Deus; enfim, o amor sincero e prático de nossos semelhantes. Sem essa tríplice harmonia, diz o Santo Padre Bento XV em sua alocução do Natal de 1919, nenhuma «tranquilidade da ordem» é possível.
Eis, portanto, como poderemos livrar o mundo dos flagelos que o afligem. Eis a nossa força e o nosso incentivo para a vitória. Mesmo porque não consiste a paz social, para o verdadeiro católico, em cruzar os braços diante dos erros que procedem do espírito do mundo. Já nos advertia o Divino Salvador: — «Disse-vos isto para que tenhais a paz em Mim. No mundo passareis tribulações; mas tende confiança: eu venci o mundo». (João 16,33). E é neste sentido que Nosso Senhor nos assegura que não nos veio trazer a paz, mas a espada. E o Bem aventurado Pio X, falando certa vez a um grupo de peregrinos franceses, nos lembra em cores bem vivas a luta contínua que constitui a vida do homem justo sobre a terra: — luta contra os inimigos internos e externos, contra as paixões e contra os inimigos de Deus e de Sua Igreja.
Servos inúteis, em nossos trabalhos e lutas e sacrifícios saibamos confiar n'Aquele que é o único capaz de dominar os ventos e as tempestades que sacodem o orbe terrestre.
D. Frei Vital Maria Gonçalves de Oliveira é indiscutivelmente a figura máxima da história religiosa de nosso país. De um lado, este título lhe provém da grandeza da obra que realizou. Por índole e pelos efeitos da graça, pode-se dizer que o brasileiro é habitualmente bom, pelo menos no sentido de que tem quase sempre certa natural inclinação para o que é reto, generoso, elevado. Contudo é fácil verificar que estas excelentes disposições são prejudicadas não raras vezes por um estado de espírito acomodatício, em virtude do qual, de outro lado, o brasileiro custa em abrir fogo contra o mal. Trata-se de um fundo de apatia, de displicência, de sentimentalismo, de ilogismo, que nos leva a tentar acomodar num convívio pacífico princípios, costumes, pessoas, radicalmente incompatíveis entre si. Não rompemos com o bem é certo. Mas... também não queremos romper com o mal.
Daí a coexistência frequente, em nosso país, de um profundo apego à Igreja, e a práticas espíritas, infiltrações maçônicas, costumes pagãos. Nos soldados comunistas que morreram durante o golpe de 1935, foram encontradas medalhas de santos. Contudo eles imolaram sua vida pela vitória do Anticristo!
D. Vital foi, pela integridade de seus princípios e de seu caráter, fundamentalmente infenso a este defeito. Assim, ergueu-se com energia indômita contra duas situações essencialmente contraditórias: o fato de ser o Brasil um país oficialmente católico, mas que exigia a aprovação governamental para os decretos da Santa Sé; e um país católico que admitia a penetração caudalosa da maçonaria nas hostes católicas e até nas irmandades religiosas. Contra esta dupla contradição levantou ele a luta heroica que foi a grande obra de sua vida.
Em nossos dias a figura de D. Vital continua a ter toda a atualidade, pois o mesmo estado de espírito ainda prejudica a nação brasileira. Somos católicos, mas contemporizamos com tudo que é anticatólico. A maçonaria permanece tão poderosa hoje quanto ontem. Precisamos de intransigência, combatividade, invencível firmeza de princípios.
Assim, se Deus for servido de que seja elevado às honras dos altares o grande D. Vital, sua canonização virá erguer aos olhos de todo o Brasil um exemplo de admirável oportunidade. Ao mesmo tempo, este novo intercessor nos protegerá no céu, para vencermos este terrível defeito e para marcharmos com passo resoluto para a conquista do esplêndido lugar que a Providência reserva para nós na civilização cristã do futuro.
Compreende-se, destarte, o desejo ardente dos católicos brasileiros, de que caminhe com toda celeridade possível a causa da beatificação de D. Vital.
Neste sentido consideramos da maior importância a seguinte carta publicada pela Revista «Dom Vital», órgão dos Revmos. Padres Capuchinhos de Recife, dirigida ao Revmo. Frei Otávio de Terrinca, vice-postulador da causa no Brasil:
«Roma, 17 de fevereiro de 1951
Revmo. e caríssimo Padre,
Li e examinei a cópia da relação que me deixou antes de partir de Roma, a respeito de D. Vital. Achei-a bem feita. Portanto venho solicitar-lhe que tenha a bondade de iniciar o processo histórico quanto antes. A respeito dos documentos da Secretaria de Estado, responderam que serão entregues quando o processo tiver chegado a Roma e após requisição formal do Promotor Geral da Fé. Ao invés, os documentos que estavam em poder da Sagrada Congregação Consistorial já foram fotografados e as fotografias estão em meu poder.
Aproveitando a oportunidade para saudá-lo cordialmente no Senhor
Afmo.
Fr. Bernardino de Sena
Postulador Geral O.F.M. Cap.»
Em meados de fevereiro do ano de 1878, chorava a Cristandade a morte do grande Papa Pio IX, ocorrida no dia 7, e, nos corredores do Vaticano, um exército de operários trabalhava intensamente na construção das celas destinadas aos Cardeais que em breve se reuniriam em Conclave para escolher o novo sucessor de São Pedro. A tudo presidia o Camerlengo, Cardeal Joaquim Pecci, quando dele se aproxima um velho Sacerdote levado àquele recinto sagrado por um assunto delicado. Trava-se entre eles o seguinte diálogo:
— Permita-me Vossa Eminência que lhe beije as mãos.
— Quem é o senhor e que o traz aqui?
— Sou um pobre Sacerdote que agora beija as mãos de Vossa Eminência, rogando ao céu que, dentro em pouco, lhe possa beijar os pés sagrados.
— Cuidado com o que diz! Proíbo-o de rezar para esse fim.
— Vossa Eminência não me pode proibir peça a Deus se cumpra a sua vontade.
— Se rezar nessa intenção, replicou o Cardeal Pecci, ameaço-o com as censuras da Igreja.
— Oh Eminência, por enquanto não tem Vossa Eminência faculdades para infligir censuras. Quando o tiver, saberei respeitá-las.
— Mas, afinal, quem é o senhor que me fala dessa maneira?
— Sou Dom Bosco.
— Vamos! Não diga mais nada. É hora de trabalhar e não de gracejar.
A 20 de fevereiro o Conclave elegia Papa o Cardeal Joaquim Pecci, que tomava o nome de Leão XIII. E mais uma predição de Dom Bosco se cumpria.
Viveria ainda o fundador da Sociedade Salesiana pelos dez anos iniciais do longo pontificado do grande Papa da Ação Social, mas deixaria o mundo cerca de três anos antes do aparecimento da «Rerum Novarum». Entretanto, pode-se dizer que toda a sua obra foi uma antecipação das sábias diretrizes emanadas daquele documento.
Em primeiro lugar, temos a assinalar a completa adesão de Dom Bosco à Santa Sé, adesão que, por sua influência, perdura e permanece na obra salesiana mesmo após sua morte. Além do exemplo de uma vida toda ela de dedicação e obediência à Santa Igreja, vemos que na eleição do Superior Geral dos Salesianos, releem-se publicamente as normas que Dom Bosco deixara para regular este grande ato. Aos eleitores que estão para lançar à urna as suas cédulas, o Santo Fundador recorda que o escolhido deve reunir pelo menos três qualidades, uma das quais é «uma indiscutível adesão à Santa Sé e a tudo o que a ela se refere». E além desse sentir com o Papa, vemos a identidade da obra de Dom Bosco com os ensinamentos de Leão XIII na manifestação do espírito salesiano, assim resumido: — «A atividade incansável, santificada pela oração e união com Deus». Que melhor definição poderíamos encontrar do trabalho, do verdadeiro conceito de trabalho segundo a sociologia católica?
Apesar das advertências dos últimos Papas e de outras vozes isoladas que se têm levantado para indicar aos homens a catástrofe que se avizinha, a humanidade continua a trilhar o caminho que a está conduzindo inexoravelmente ao totalitarismo socialista, seja ele disfarçado ou radical.
E o que é terrível e trágico é que essa marcha se faz em um ambiente de completa euforia. Diante das desgraças que se multiplicam, diante do gradativo desaparecimento do respeito entre as nações, das normas do direito e da justiça, da honestidade na política e nos negócios, nas relações das famílias e dos indivíduos, a humanidade às vezes para apreensiva, mas em seguida voluntariamente procura se aturdir e esquecer as agruras presentes, consolando-se com as delícias de uma nova ordem que lhe estaria sendo preparada não se sabe em que laboratórios secretos.
Deposita-se uma esperança messiânica na ação salvadora dos sistemas políticos e dos homens, ainda mesmo que esses sistemas e esses homens não se achem penetrados do espírito católico, dificuldade que não existe para muitos dos próprios católicos, pois, como em seu tempo já assinalava Louis Veuillot, não são poucos os que confiam na possibilidade de reintroduzir os princípios salvadores da doutrina católica na sociedade e no organismo estatal secretamente, por medidas delicadas e disfarçadas que não despertem a atenção de nenhum daqueles a quem sua existência é incômoda e inoportuna.
Eis porque esse católicos, herdeiros dos judeus que depositavam todas as suas esperanças no reinado terreno de Nosso Senhor Jesus Cristo, eis porque esses que transformam o Evangelho em um mero instrumento de conquistas sociais, não podem suportar as vozes que se levantam, como a de um Donoso Cortês, para colocar o problema em seus verdadeiros termos, e para lembrar à humanidade que para ela não haverá salvação a não ser por meio Daquele que é o Caminho, a Verdade e a Vida — que o Divino Salvador não veio à terra para mostrar que Sua doutrina é boa porque produz o bem-estar social, mas para mostrar que o bem-estar social deve ser uma consequência da plena aceitação e da sincera prática de Sua doutrina — pois a primeira obrigação do cristão é procurar o Reino de Deus e Sua Justiça — e todo o resto lhe será dado como acréscimo.
Os demagogos da «nova ordem proletária» não se cansam de sentenciar que entramos em uma época em que o trabalho será o soberano senhor de todas as coisas. Valendo-se da miséria em que a economia liberal lançou a classe obreira e das justas reivindicações dos salariados, querem os agentes provocadores dessa nova ordem socialista convencer o homem da rua de que lhe pertence a direção da sociedade não somente em virtude dos direitos que lhe confere o trabalho, mas também pelo pseudo-principio democrático do número, visto que o «proletariado» constitui a maioria.
Sabido como é que a massa é incapaz de governar ou de dirigir a si mesma, como nos ensina magistralmente Pio XII, fica evidenciada a má fé com que os seus manipuladores lhe inoculam essas ideias. E se torna fácil verificar como é artificial essa subversão da ordem social, entre outras razões por partir de um conceito parcial e deformado do trabalho.
A sociedade tradicional e católica sempre se baseou no trabalho. Não na noção materialista do trabalho, não no trabalho reduzido à demagogia proletária, mas na noção do «trabalho social» do trabalho que não pertence a uma única classe, mas que é desempenhado por todo o corpo social, desde o chefe de Estado [até o homem da] rua.
O trabalho espiritual, o trabalho intelectual, o trabalho manual são aspectos da mesma realidade social inteiramente compreendida na obra de Dom Bosco. Todas essas formas de trabalho, de atividade, para serem produtivas, para encerrar em si mesmas um verdadeiro instrumento de progresso social, tem que se santificar pela oração e pela união com Deus, Soberano Senhor e Criador de todas as coisas. E nesse espírito salesiano se acha a chave da verdadeira solução da questão social. Não se trata da glorificação do trabalho reduzido às preocupações materiais do homem, pois não devemos glorificar e erigir em valor absoluto a um simples meio, mas da santificação de todo o trabalho humano, de toda essa atividade pluriforme e hierarquizada, de seres inteligentes e livres, que sabem seguir as lições da Divina Sabedoria impressa em toda a criação e que nos faz compreender, segundo Leão XIII, que «a desigualdade de direito e de poder provém do próprio Autor da natureza, «da qual toda família no céu e na terra toma o nome» (Encíclica «Quod Apostolici Muneris»). Não se trata de promover a igualdade social, o que seria uma quimera, mas de eliminar as desigualdades injustas. Ora, como acentuava Santo Agostinho, «onde não existe uma Fé íntegra, não pode haver justiça» («De Sermone in Monte», liv. 1, cap. 5). Dom Bosco procurava em primeiro lugar o Reino de Deus e Sua Justiça e considerava todo o resto como acréscimo. Sua preocupação não eram aquelas coisas com as quais também os pagãos se preocupam, mas quando ele, antecipando-se à palavra de ordem de Leão XIII na «Rerum Novarum», ia ao povo, ia ao encontro dos birichini e dos deserdados da fortuna, era para conduzi-los à sua verdadeira dignidade de filhos de Deus. Vivia nesse campo sobrenatural da Fé, chegando a dizer que se lhe dessem as almas, tudo mais lhe poderia ser tirado.
A questão social somente será resolvida integralmente quando for restabelecido esse conceito cristão do trabalho, como «atividade incansável, santificada pela oração e união com Deus» e é neste sentido que se pode considerar a obra de São João Bosco como precursora das diretrizes emanadas das Encíclicas do Papa da Ação Social.
J. de Azeredo Santos
Ao enfrentar o problema do capital e do trabalho, deve o católico fugir de certas ciladas que lhe prepara o homem inimigo, no sentido de transformar as forças que pugnam pela justiça social em um verdadeiro exército de «ingênuos necessários». Em discurso ao Congresso Internacional da JOC belga, mostrava o Santo Padre Pio XII, recentemente, a necessidade de se evitar um equívoco, infelizmente muito corrente, mesmo entre os católicos, isto é, a classificação das almas em categorias. Não há duas espécies de homens, os operários e os não-operários. O que afasta da Igreja uma parte apreciável do mundo operário é aquilo mesmo que dela afasta também muitos espíritos de outras classes da sociedade moderna. É a frivolidade, o amor aos prazeres e à sensualidade, a falta de delicadeza de consciência, o espírito do mundo.
Certo modo de encarar as relações entre capital e trabalho, mesmo por parte de quem aparentemente se mostra adversário da subversão socialista, costuma encerrar, assim, talvez de modo inconsciente, verdadeira contribuição à causa daqueles que apelam para a luta de classes como arma de reivindicações sociais.
É o caso, por exemplo, daqueles que afirmam ter o trabalho primazia sobre o capital, fator puramente instrumental. Ora, o trabalho é, não há dúvida, um denominador comum, mas não apenas o trabalho manual ou proletário. A vida social, em sua variedade, nos mostra que há outros meios de viver sem recurso ao trabalho econômico. É o caso não somente de outras formas superiores do trabalho, intelectuais e espirituais, bens como o exemplo quotidiano dos menores, das viúvas, dos velhos e enfermos que não recorrem diretamente ao trabalho manual ou econômico para seu próprio sustento.
Não se pode, portanto, afirmar que os que vivem de rendas, ou receberam bens em herança, ou que se acham incapacitados por qualquer razão de exercer uma atividade econômica não se acham aptos a alcançar a perfeição própria da natureza humana.
Não é legítimo o apelo que fazem, para sustentar semelhante posição, às seguintes autorizadas palavras: — «O trabalho, como atividade da pessoa humana inteligente e livre, deve indubitavelmente ter, no campo da produção, a primazia sobre os fatores puramente instrumentais» (Carta de Mons. Montini à Semana Social da Itália, de 14 de outubro de 1946).
É claro que o trabalho deve ter a primazia sobre os fatores puramente instrumentais, mas não apenas o trabalho manual. E assim como por detrás das máquinas e das matérias-primas se acha o operário, assim também por detrás do capital se acha o patrão, ou capitalista, ou proprietário. Em ambos os casos o que devemos considerar são os direitos de criaturas humanas, de um lado os operários, de outro, os patrões, e não criaturas humanas de um lado (trabalho) e simples bem material do outro (capital). Considerar apenas o trabalho manual e desprezar o trabalho intelectual do empreendedor ou capitalista ou chefe de empresa, ou a atividade social, não econômica, de quem vive de rendas, é fazer o jogo de Marx e Engels, que apenas consideravam como digno do nome de trabalho o trabalho proletário.
Há evidente confusão quanto à interpretação da linguagem dos documentos. Assim, por exemplo, eis o que afirma Pio XII, em documento recente, sobre o modo de se retribuir o capital e o trabalho: — «O proprietário dos meios de produção, quem quer que seja — proprietário particular, associação de operários ou fundação —deve, sempre dentro dos limites do direito público da economia, permanecer senhor das suas decisões econômicas. É claro que sua retribuição seja maior do que as de seus colaboradores» (Alocução aos membros da UNIAPAC, de 7 de maio de 1949).
Não menor confusão existe da parte daqueles que sustentam que desde que a propriedade privada impeça a destinação universal dos bens e seja um estímulo ao ócio e uma recompensa de outros títulos estranhos ao trabalho, ela se torna social e moralmente ilegítima.
A aceitar semelhante ordem de ideias, somos forçados a concluir: — 1) ser o trabalho o único título justificativo da propriedade; 2) que o direito de propriedade se acha na dependência do uso que dela fizer o seu dono.
Quanto à primeira consequência, contra ela temos a dizer que o trabalho não é o único título justificativo da propriedade. Diz o «Moto Proprio» de 18-XII-1903, de Pio X: — «É direito inapagável da natureza a propriedade privada, fruto de trabalho ou de indústria, ou bem de cessão ou de doação alheia: da propriedade pode cada qual razoavelmente dispor a seu alvedrio».
Mais ainda. Na Encíclica «Quadragésimo Anno», Pio XI, depois de condenar as pretensões injustas do capital, verbera do mesmo modo a atitude dos proletários, «quando, veementemente enfurecidos pela violação da justiça e excessivamente dispostos a reclamar por qualquer meio o único direito que reconhecem, o seu, tudo querem para si, por ser produto de suas mãos; e por isto, e não por outra causa, impugnam e pretendem abolir domínio, interesses e produtos que não sejam adquiridos mediante o trabalho, sem reparar a que espécie pertencem ou que ofício desempenham na convivência humana».
No que diz respeito à segunda consequência que se tira de tal posição doutrinária, isto é, o tornar-se o direito do propriedade dependente do uso que dela fizer o seu dono, a palavra da Igreja é também muito clara: — «Para pôr limites determinados às controvérsias suscitadas em torno ao domínio e obrigações a ele inerentes, fique estabelecido como princípio fundamental o mesmo que proclamou Leão XIII, a saber: — que o direito de propriedade se distingue de seu uso. Respeitar santamente a divisão dos bens e não invadir o direito alheio traspassando os limites do domínio próprio são mandatos da justiça que se chama comutativa; não usarem os proprietários de suas próprias coisas senão honestamente, não pertence a essa justiça, mas a outras virtudes, sendo que o cumprimento dos deveres destas resultantes «não se pode exigir por via jurídica» (Rerum Novarum). É assim que sem razão afirmam alguns que o domínio e seu uso honesto têm os mesmos limites; mas não está menos longe da verdade o dizer que pelo abuso ou pelo simples não uso das coisas perece ou se perde o direito de propriedade» (Encíclica «Quadragésimo Anno»).
Há, portanto, confusão de conceitos. É como se alguém fizesse depender o direito que o trabalhador tem ao salário do uso que fizer desse mesmo salário. Ninguém contesta o direito que o trabalhador tem ao salário. Se ele gasta seu dinheiro em dissipações e para fins imorais, ou se entrega periodicamente à ociosidade após um período de trabalho, incorre em infrações que nada têm que ver com o seu direito ao salário. Do mesmo modo os títulos que legitimam o direito de propriedade são distintos do uso que se faz dessa mesma propriedade.
Quanto à destinação universal das riquezas, convém esclarecer que o proprietário não é um mero administrador de seu patrimônio por missão delegada pela sociedade. Reconhecemos ser Deus a origem de todos os bens, o que equivale dizer que em relação a Deus, o proprietário é um mero administrador daquilo que Ele colocou em suas mãos. Daí o dever moral que temos de usar dos bens terrenos dentro do espírito de justiça e caridade para com o próximo por amor a Deus.
Mas em relação aos demais homens, ou à sociedade, proprietário não é somente administrador, mas verdadeiro senhor da riqueza, sobre a qual tem verdadeiro domínio, domínio que há de exercer de modo razoável. É o direito de usar, fruir e consumir seus próprios bens conforme a razão. Não se trata de um mero direito de uso, de modo tal que o proprietário deixe de o ser pelo mau uso que fizer de seus bens.
O fim primário das riquezas dado por Deus ao possuidor é seu próprio bem e o de sua família, e o fim secundário é o bem dos demais, quando a necessidade ou a caridade o exigirem. Daí, desse fim secundário da propriedade, nasce uma falsa interpretação do que afirmam os Soberanos Pontífices no que tange ao duplo caráter da propriedade: — individual e social. Dessa obrigação secundária imposta por Deus aos possuidores de bens, de utilizá-los amplamente em favor dos necessitados, seja por razão de justiça ou de caridade, não se pode concluir que a propriedade é uma função social, o que equivaleria a afirmar que o direito de propriedade depende da sociedade ou é por ela outorgado.
«Este falso conceito derivado de Duiguit, diz Azpiazu, é muito encontradiço em nossos dias, embora muitas vezes não tenha outra origem senão o confusionismo nascido da falsa interpretação de uma ideia: — de que a propriedade tem uma função social» (Joaquin Azpiazu S. I., «La Moral del Hombre de Negocios», pág. 119).
Com todas as declarações de direitos da pessoa humana, estamos assistindo, em nossos dias, à destruição sistemática dos direitos mais essenciais do homem. E enquanto por todos os modos imagináveis se combate a propriedade privada por medidas legislativas, administrativas e fiscais, que iniciativas práticas se tomam no sentido de libertar o homem que trabalha da condição de proletário pela facilitação do acesso à propriedade? Pelo contrário, os que possuem estão se empobrecendo, crescendo dia a dia a massa dos deserdados da fortuna, como o provam, por exemplo, as estatísticas da Inglaterra após alguns anos de governo inspirado no socialismo trabalhista, ao mesmo tempo que a concentração do poder econômico em poucas mãos vai preparando o caminho para o coletivismo integral.