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CORRESPONDÊNCIA

De F. X. L. (Campos): "Poderia Deus, em Sua sabedoria infinita, criar o homem à Sua imagem e semelhança, com todas as fraquezas da vida presente?"

R. — A experiência nos mostra que o homem nasce ignorante, seu coração é cheio de arrebatamentos, sua vontade enfraquecida e seus sofrimentos numerosos. Entretanto, ele tem a ideia de uma felicidade suprema, é como se fosse "um deus caído que se lembrasse do Céu".

A noção de uma felicidade superior encontra-se entre todos os povos, desde os tempos mais antigos. Os romanos e gregos nos apresentam a idade do ouro. Os persas, a terra isenta do mal, sob o feliz reinado de Jina, filho de Vivanghvat. Os hindus, o monte Merú, com os seus jardins frequentados pelos espíritos bem aventurados.

Existe entre os diversos povos da antiguidade a historia da arvore da vida e da morte, ao lado da qual aparece uma serpente infernal. Encontramos esse quadro, sob diversos aspectos no Ahriman dos persas, no Tifon dos egípcios, no Tchi-eu dos chineses, no filho de Lok dos escandinavos e no Pitho dos gregos. Surge o ato de desobediência, o quadro se transmuda e o homem é arremessado no vale do sofrimento e da dor.

Os próprios filósofos que viveram antes do Cristianismo, apenas pelo estudo da alma humana chegaram à conclusão de que o homem sofreu verdadeiramente uma decadência. Cícero escreve: "Nascemos num estado de miséria para expirar algum crime enorme", e Platão afirma "que a natureza e as faculdades do homem foram corrompidas em seu Chefe desde o nascimento".

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Esta tradição universal encontra sua explicação no Dogma do Pecado Original. Nos livros sagrados da Bíblia tudo se torna mais claro.

Sendo Deus bom e poderoso, não teria o direito de conceder à Sua imagem e semelhança um acréscimo de perfeição?

É precisamente isto o que a Igreja ensina. Aos dotes naturais concedidos ao homem, Deus ajuntou gratuitamente dons sobrenaturais. Não precisava fazê-lo, mas assim o quis em Sua infinita bondade. Concedeu-lhe extraordinariamente a graça santificante e os privilégios a ela ligados, isto é, a ciência infusa, a imortalidade, a ausência do sofrimento, etc.

Porventura não poderia Deus ligar a conservação da graça santificante a determinadas condições? Então, o Criador não teria o direito de submeter a sua criatura a uma prova?

Se criou o homem à Sua imagem e semelhança, portanto livre, nada mais lógico do que deixá-lo fazer uso da liberdade e assim se tornar por um ato voluntario próprio, merecedor daquilo que condicionalmente e extraordinariamente lhe fora concedido. Foi precisamente o que aconteceu: Deus quis um ato de obediência e de submissão voluntaria de sua criatura, inteligente e livre, ligando a esse ato a permanência da graça santificante, que extraordinariamente concedera.

Pela sua desobediência, o homem livre e conscientemente rejeita a graça santificante e com ela todos os privilégios que lhe são inerentes.

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É verdade que, conforme ensina a Igreja, o pecado de Adão se transmitiu também a nós. Com isto não se quer afirmar nossa cumplicidade atual no pecado do Primeiro Homem, mas a existência de uma ligação entre nós e nosso Pai comum, a quem estamos moralmente unidos na solidariedade da mesma culpa e do mesmo castigo.

Com o pecado original, não se transmite uma coisa positiva, mas negativa. Um pai rico, que com futilidades gasta a sua fortuna, não poderá mais legá-la aos seus filhos. Se encontrarmos um destes chorando de fome, ficaremos penalizados, mas não veremos nisso nenhum absurdo. Quem não acha natural que os filhos herdem as taras dos próprios pais... Tristes heranças!

Um rei concede a qualquer dos seus súditos um título de nobreza. É uma dádiva, um favor. O soberano não está na obrigação de concedê-lo, fá-lo somente por bondade. O homem que recebeu a mercê será nobre e a sua descendência também. Mas se o inicia uma vida de desregramentos e o soberano resolve retirar o título, ele deixará de ser nobre, e os seus descendentes também. É assim que se opera a transmissão hereditária relativa ao pecado original.

No céu readquiriremos aliás toda a felicidade que Adão perdeu pelo pecado de sua desobediência. — José de Oliveira Andrade.


“A LIÇÃO DO BRASIL” II

Jordão Emerenciano

A História dos Descobrimentos e da Colonização portuguesa tem sido interpretada e julgada sob dois aspectos: 1° — "tinham por objetivo dilatar a Fé e o império"; 2° — "foram resultantes de incoercíveis e insuperáveis causas econômicas".

A expansão portuguesa começa praticamente em Ceuta. Logo aí os fiéis do materialismo histórico descobrem o determinismo econômico. Não os deixa o Autor sem resposta. Vai alinhando, num verdadeiro bombardeio, os argumentos que destroem o reparo daqueles sectários:

"Ceuta, só por móbil econômico, não era negócio nenhum. Grande empório do mundo árabe para o Norte de África, ficou vazio e deserto logo que caiu na mão dos Cristãos. E eles não ignoravam que assim havia de ser. Os portugueses sabiam perfeitamente, porque não eram tão destituídos como os julgam alguns bastardos, que o Norte da África nunca poderia dar-nos o pão que nos faltava, a carne que não tínhamos, o ouro de que necessitávamos. E assim foi, de fato, até o dia em que abandonamos as praças lá erguidas. Longe de nos dar qualquer rendimento considerável, o Norte da África custou-nos o melhor do nosso ouro, e grande parte do trigo alentejano que para lá tínhamos de mandar periodicamente".

E por que foram a Ceuta? replicam os impenitentes materialistas.

"Serviço de Deus", responde D. João I.

Melhor resposta dariam, praticamente, as Côrtes de Leiria, de 1438, que ao serem consultadas se se poderia entregar a cidade aos Mouros, em troca da liberdade do infante D. Fernando, mesmo sem o Papa concordar — responderam: não. Mesmo que prisioneiro estivesse o próprio herdeiro da Coroa, não se podia largar Ceuta "porque ela era chave da Espanha, ferrolho da Cristandade."

Que secreto intuito econômico animava ao infante D. Henrique — grande fortuna do seu tempo — a dedicar-se à tarefa de fundar um centro de estudos náuticos? Esqueceram, porventura, que nessa empresa "tudo consumiu — ao serviço do ideal que o animava, vindo a morrer pobre, com pesadas dívidas que levaram décadas a saldar”?

Como esquecer as numerosas cartas em que os Reis dizem aos seus prepostos que o serviço de Deus e o bem das almas preferem a tudo?

Essas letras régias nem eram feitas para impressionar, nem muito menos visavam responder às arguições do materialismo histórico — traduziam um estado de consciência — e naqueles bons tempos levavam-se a sério consciência e escrúpulos. Como esquecer as constantes e paternais admoestações para um cuidadoso tratamento dos índios e o bem das almas? Não eram só os Reis que assim escreviam. A carta de Caminha já suscita esse aspecto espiritual da Colonização. O próprio Damião de Goes teve ensejo de dizer à Europa que os portugueses visavam fins mais altos e mais santos que a simples conquista de terras, a satisfação de prazeres, a busca de papagaios, madeiras e especiarias. Tudo isto poderia vir por acréscimo, dádiva de Deus, mas o fim não era esse.

O Sr. Costa Brochado coloca-se porém numa posição de bom senso e de inteligência. Ninguém contesta, em sã consciência, a importância de fatos econômicos como um dos moveis das empresas humanas. Mas não são os únicos nem os principais. A causa primeira, o objetivo mais alto era o serviço de Deus. O interesse econômico foi decorrente e secundário. No princípio não se pensou em lucros. Ao fim se aproveitaram como uma compensação justa e licita — mercê da Providência — esses lucros materiais. Os móveis econômicos começam a influir sobre os mais práticos e menos idealistas. Se vieram depois, porém, não podem ter sido causa daquilo que lhes antecedeu. O penoso, todavia, é os partidários da interpretação econômica da história admitirem — teimosos e unilaterais como são - que aqueles vieram depois e não antes.

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É difícil dar aqui um resumo dessa magnífica monografia do sr. Costa Brochado ou sequer ferir os pontos mais interessantes. Há capítulos como "O Direito dos Portugueses", "Espiritualidade dos Portugueses", "O Plano de D. João III" que mereceria uma detida análise, Por falta de tempo e míngua de recursos privar-me-ei disso. O leitor atento nada perderá em ler e reler aquelas páginas de sadia e vigorosa interpretação da colonização portuguesa na América ibérica

O capitulo "Espiritualidade dos Portugueses" é fundado em um documento inédito encontrado na Torre de Tombo pelo Autor, que o transcreve integralmente. Intitula-se esse Ms. "Por que causas se pode mover guerra justa contra infiéis" — Porq Causas Se Pode Mouer Guerra Justa Cotra Infies

Esse importante documento não tem data. Pelo seu texto, porém, é de admitir-se que seja resposta às consultas, e aos escrúpulos de D. João III. Há fundados motivos para admitir que seja anterior às lições de Vitória — "o que — diz o Autor — lhe daria completa originalidade nas ideias e no método expositivo".

De qualquer modo, seja ou não anterior a Vitória — esse documento tem uma alta significação para comprovar a espiritualidade portuguesa nas suas empresas e na solução do problema criado pela existência dos índios. De qualquer modo ele é a confirmação de uma escrupulosa mentalidade que na letra das ordenações afonsinas e em outros diplomas régios já se vinha delineando.

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Por todos esses títulos, pelos seguros fundamentos em que documentou sua tese, pelo irretorquível de sua dialética é que a monografia do sr. Costa Brochado merece a mais ampla divulgação.

Pena é que não pudesse ele vir pessoalmente ao Congresso de História sustentar suas proposições.

Teria o ilustre historiador — disso estou certo — uma grande consolação para seu trabalho de estudioso e para seu coração de português: no Brasil já se faz, em larga escala, justiça aos santos, aos heróis, aos sábios "que algum dia nos colocaram na vanguarda da Cristandade".


COMUNISMO E COMUNISTAS, OU PRISÃO PARA O CRIME PERDÃO PARA O CRIMINOSO

Cunha Alvarenga

Guiados por uma apreciação superficial da doutrina da Igreja e por um sentimentalismo doentio, não são poucos os católicos que hoje se mostram partidários de um tal latitudinarismo quanto ao modo de encarar a malícia do coração dos homens, que por assim dizer se torna inexistente para eles o pecado e sobretudo o pecado contra o Espírito Santo, isto é, a resistência obstinada à ação do Divino Paráclito em nossas almas, e que leva certos inimigos da Igreja a ir diretamente contra o Plano de Redenção trazido à terra pelo Filho de Deus. Foi esta a falta de que se tornaram culpados os fariseus e príncipes dos sacerdotes que, forçados a reconhecer a missão divina de Nosso Senhor Jesus Cristo, continuavam a atacá-lo e a negar Seus milagres, para levá-lo, enfim, ao Calvário através da mais nefanda das conjurações.

Que tais fariseus e príncipes dos sacerdotes, isto é, a elite do povo de Israel, pecava, não por ignorância, como se deu com os esbirros que crucificaram o Divino Salvador, mas maliciosamente, por ódio à verdade, vem provar a parábola dos vinhateiros homicidas. "Compreenderam que Jesus falava deles", e ao lhes anunciar o Filho de Deus o castigo reservado aos vinhateiros homicidas, disseram: "Deus tal não permita!" (Lc. 20, 9-19).

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Embora seja nosso dever rogar a Deus por todos os pecadores, inclusive pelos que se acham engolfados nas trevas do erro e do vicio e mesmo por aqueles que invocaram sobre suas cabeças o Sangue do Justo, devemos fugir à tentação de negar a malícia ou a culpa desses infelizes. É frequente, por exemplo, a referencia à "boa fé" dos líderes do movimento comunista, com o que se forma um halo de tolerância e simpatia em torno desses enganadores do povo, dignos correligionários dos supliciadores dos Midzentys, Stepinacs e outros. Em presença dos propagadores de erros, de desatinos e de maldades, não foi esse o modo de proceder dos Santos. Assim, para citar apenas um exemplo, em plena Idade Média grassava a heresia dos que abusivamente se davam o nome de "apostólicos", ramo da seita dos albigenses, e que, além de heterodoxos em matéria de religião, também eram partidários do erro social do comunismo.

Dois dos líderes desses heréticos ao serem justiçados pelo povo de Colônia, causaram admiração pela aparência de ânimo forte que demonstraram. Convidado São Bernardo a explicar o fato, assim se expressou ele:

"Alguns dos fieis se admiraram ao ver esses hereges irem para a morte com alegria e exultação. Mas sua surpresa torna manifesto que eles não se capacitam suficientemente de quão grande é o poder do demônio tanto sobre os espíritos e corações, como sobre os corpos dos que a ele se entregaram. Não é mais estranho para um homem lançar violentamente a mão sobre si próprio do que docilmente se submeter à violência de outros? E, entretanto, o demônio pode prevalecer sobre muitos homens para fazer isto... Por conseguinte, não há comparação entre a constância dos santos mártires e a obstinação demonstrada por esses hereges. No caso daqueles, seu desprezo pela morte era um efeito de sua piedade; nestes, procedia da dureza de seus corações. O sofrimento era o mesmo para todos eles, mas as disposições variavam largamente."

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Como vemos, para São Bernardo não se tratava de separar o erro dos fautores do erro, ou o comunismo dos comunistas. Dispensando, embora, toda a caridade aos transviados, bem sabia ele que o erro não subsiste por si só, mas se acha vinculado aos seus propugnadores, e estes, enquanto partidários de um mau principio, se acham sob o poder do demônio, por um movimento livre de sua vontade, pois sem o nosso consentimento nada pode sobre nós o pai da mentira.

Ninguém, em sã consciência, sonharia construir prisões para o crime, deixando impunes os criminosos, nem estaria pugnando pelo bem comum quem combatesse o roubo concedendo "habeas corpus" aos ladrões. O que pode haver é gradação de responsabilidade diante do crime. Há os que pecam por malicia e os que pecam por ignorância. A culpa, porém, sempre existe, como no caso dos fariseus, dos herodianos, dos saduceus e da soldadesca ao crucificarem Nosso Senhor. Eis por que devemos pedir a Deus a graça de uma consciência delicada e esclarecida, de modo a não pactuarmos, através, de uma falsa noção de caridade, com a impiedade insolente que campeia em nosso século.


VERBA TUA MANENT IN AETERNUM

Importância dos Exercícios Espirituais em nossos dias

PIO XI: Sob muitos aspectos se revela a importância, oportunidade e utilidade dos Santos Exercícios, a quem quer que reflita, embora de leve, nos tempos em que vivemos. A doença mais grave que aflige nossa época, e ao mesmo tempo manancial fecundo dos males que toda pessoa sensata lamenta, é a frivolidade e a irreflexão que extravia e desencaminha os homens. Daqui provém a dissipação continua e veemente nas coisas exteriores; daqui a insaciável cobiça de riquezas e prazeres, que pouco a pouco debilita e extingue nas almas o desejo de bens mais elevados, e de tal modo as enreda nas coisas exteriores e transitórias que não as deixa elevar-se à consideração das verdades eternas, nem das leis divinas, nem mesmo do próprio Deus, único princípio e fim de todo o universo criado. Ele, entretanto, por sua infinita bondade e misericórdia, em nossos mesmos dias e apesar da corrupção de costumes que se alastra por toda parte, não deixa de atrair os homens para Si com abundantíssimas graças. Para curar, pois, esta enfermidade que tão gravemente aflige hoje os homens, que remédio e alívio melhor poderíamos propor do que convidar ao piedoso recolhimento dos Exercícios Espirituais a estas almas débeis e descuidadas das coisas eternas? (Encíclica "Mens Nostra", de 20-XII-1929).

Os Exercícios de Santo Inácio são eficazes na medida em que autenticamente inacianos

PIO XII: É uma triste realidade que o licor perde força e a máquina potência, quando se diluem nas águas incolores da superadaptação, ou quando se desmontam algumas peças fundamentais da engrenagem inaciana. Os Exercícios de Santo Inácio serão sempre um dos meios mais eficazes para a regeneração espiritual do mundo e para sua reta ordenação, mas sob a condição de que continuem a ser autenticamente inacianos. (Mesmo documento).

Só a educação cristã é perfeita

Pio XI: Na verdade, consistindo a educação essencialmente na formação do homem como ele deve ser e portar-se nesta vida terrena, em ordem a alcançar o fim sublime para que foi criado, é claro que, assim como não se pode dar verdadeira educação sem que esta seja ordenada para o fim último, assim na ordem atual da Providência, isto é, depois que Deus Se nos revelou no Seu Filho Unigênito que é o único "caminho, verdade e vida", não pode dar-se educação adequada e perfeita senão a cristã. (Encíclica "Divini illius Magistri", de 31-XII-1929)

A coeducação, método errôneo e pernicioso

Pio XI: De modo semelhante, errôneo e pernicioso à educação cristã é o chamado método da "coeducação", baseado também para muitos no naturalismo negador do pecado original, e ainda para todos os defensores deste método, sobre uma deplorável confusão de ideias que confunde a legítima convivência humana com a promiscuidade e igualdade niveladora. O Criador ordenou e dispôs a convivência perfeita dos dois sexos somente na unidade do matrimônio e gradualmente distinta na família e na sociedade. Além disso não há na própria natureza, que os faz diversos no organismo, nas inclinações e nas aptidões, nenhum argumento donde se deduza que possa ou deva haver promiscuidade, e muito menos igualdade na formação dos dois sexos. Estes, segundo os admiráveis desígnios do Criador, são destinados a completar-se mutuamente na família e na sociedade, precisamente pela sua diversidade; a qual, portanto, deve ser mantida e favorecida na formação educativa, com a necessária distinção e correspondente separação, proporcionada às diversas idades e circunstâncias. Apliquem-se estes princípios no tempo e lugar oportunos, segundo as normas da prudência cristã, em todas as escolas, nomeadamente no período mais delicado e decisivo da formação, qual é o da adolescência; e nos exercícios ginásticos e desportivos, com particular preferência à modéstia cristã na juventude feminina, à qual fica muito mal toda a exibição e publicidade. (Encíclica "Divini illius Magistri", de 31-XII-1929)

A Igreja é o remédio para a civilização contemporânea

Leão XIII: Assim como o Cristianismo não penetra em uma alma sem a melhorar, assim também não entra na vida pública de um povo sem a ordenar. Com a ideia de um Deus que rege tudo, que é sábio, infinitamente bom e infinitamente justo, ele inculca na consciência humana o sentimento do dever, dulcifica o sofrimento, acalma os ódios e forma os heróis. Se ele transformou a sociedade pagã — e esta transformação foi uma verdadeira ressurreição, pois a barbárie desapareceu à proporção que o Cristianismo se estendeu — ele saberá também do mesmo modo, depois dos terríveis abalos da incredulidade, recolocar no verdadeiro caminho e reinstaurar na ordem os Estados modernos e os povos contemporâneos". ( Encíclica "Parvenu à la vingt-cinquième année", de 19- III-1902)


AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Povo e massa

Plinio Corrêa de Oliveira

Segue a procissão, através dos campos fecundados pelo trabalho rude e honesto do lavrador. O Santíssimo Sacramento sai do sacrário, transpõe os umbrais do templo e Nosso Senhor percorre os trigais, cobrindo de bênçãos a terra, seus frutos, o trabalho humano, e sobretudo o trabalhador. A cena é rica em harmonias profundas. Graça e natureza. Igreja e sociedade temporal, autoridades e povo, civis, militares e eclesiásticos, ricos e pobres, tudo aí se encontra e se une, numa dignidade, numa simplicidade, num senso de hierarquia dos valores, que é a melhor e mais genuína beleza deste quadro tecnicamente excelente: a benção dos trigais no Arbois, por Jules Breton.

Tanta variedade, dignidade e bem-estar da pessoa humana, mesmo quando modesta, tanta fé profunda, sem o fanatismo dos movimentos de massa suscitados pela técnica de propaganda moderna, fazem pensar na definição de povo, dada pelo Santo Padre Pio XII, na sua monumental alocução do Natal de 1944: "O povo vive com vida própria, da plenitude da vida dos homens que o compõem, cada um dos quais – em sua própria posição, segundo seu próprio modo – é uma pessoa cônscia de sua própria responsabilidade e de suas próprias convicções. Da exuberância da vida de um verdadeiro povo, a vida se difunde abundante, rica, no Estado e em todos os seus organismos, nos quais comunica, com vigor incessantemente renovado, a consciência da sua própria responsabilidade, o verdadeiro sentido dobem comum. Em um povo digno de tal nome, o cidadão sente em si mesmo a consciência de sua personalidade, de seus deveres e de seus direitos, de sua própria liberdade conjugada com o respeito a liberdade e dignidade de outrem. Em um povo digno de tal nome, as desigualdades, que derivam não do arbítrio, mas da própria natureza das coisas, desigualdades de cultura, de haveres, de posição social – sem prejuízo, é claro, da justiça e da mútua caridade – não são, com efeito, um obstáculo para a existência e o predomínio de um autêntico espírito de comunidade e fraternidade. Pois tais desigualdades, longe de prejudicar de qualquer forma a igualdade civil, lhe conferem seu legítimo significado, ou seja, que frente ao Estado cada qual tem o direito de viver honestamente a própria vida pessoal, no posto e nas condições em que os desígnios e disposições da Providência o colocaram".

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O outro clichê fixa uma grande manifestação de massa, em nossos dias. Um rebanho humano, que pensa e vibra de acordo com as ideias - ou antes as impressões - que o rádio, o cinema e a imprensa lhe fazem ingerir, olhos e ouvidos adentro. Todos os seus movimentos, todos os seus impulsos, estão em suspenso, pairam no ambiente, pairam sobre a cidade com uma tempestade cuja força serve apenas para destruir. Destruir o que? Ninguém sabe. Aquilo que os "técnicos" no fabrico de opiniões públicas quiserem. Assim manipulada, essa pobre gente - isto é certo - não construirá uma catedral, mas poderá destruí-la; não construirá uma cidade, mas poderá incendiá-la.

Massa, infeliz massa anorgânica, que vive do movimento que lhe vem de fora, via para onde não sabe, não tem chefes naturais, nem hierarquia própria, nem qualquer espécie de diferenciação interna. Não é um organismo. É uma justaposição física de homens, no fundo isolados uns dos outros como os grãos de areia da praia, que se justapõe uns aos outros, mas que não tem entre si qualquer interpenetração de vida espiritual - "o convívio" no sentido exato do termo.

E como não pensar à vista disto na definição de Pio XII, na mesma alocução, acerca de massa? "A massa por si mesma é inerte, e não pode ser movida senão por agente extrínseco. Ela espera um impulso que lhe venha de fora, fácil joguete nas mãos de quem quer que lhe explore os instintos e impressões, pronta a seguir, com inconstância, hoje esta, amanhã aquela bandeira. Da força elementar da massa, habilmente manejada e utilizada, pode servir-se também o Estado: nas mãos ambiciosas de um só ou de poucos, que as tendências egoísticas de alguns tenham artificialmente reunido, o próprio Estado pode ser reduzido, com apoio da massa, a não ser mais do que uma simples máquina, impondo seu arbítrio à parte melhor do verdadeiro povo: o interesse comum ficará assim gravemente golpeado, e por longo tempo, e a lesão daí resultante é muitas vezes dificilmente curável". Em um estado democrático, "deixado ao arbítrio da massa, a liberdade, enquanto dever moral da pessoa, se transforma em uma pretensão tirânica de dar livre curso aos impulsos e apetites humanos, com prejuízo de terceiros. A igualdade degenera em um nivelamento mecânico, em uma uniformidade monocroma; o sentimento da verdadeira honra, a atividade pessoal, o respeito à tradição, a dignidade, em uma palavra tudo quanto dá à vida seu valor, pouco a pouco vai submergindo e desaparece".

E com efeito: analise-se esta massa, e não se encontrará nela, nem senso de honra, nem riqueza de personalidades, nem amor à tradição!