Plinio Corrêa de Oliveira (*)
A sucessão à Coroa da Inglaterra atrai no momento todas as atenções, tanto pela simpatia universal de que gozava o falecido Rei Jorge VI, quanto pela imponente e severa solenidade dos funerais, pelo brilho e pitoresco das cerimônias da proclamação e coroação da nova Rainha, e pela importância que, mau grado as circunstâncias adversas, ainda conserva na política mundial o Império Britânico. O fato de que o maior cetro do globo será, agora, empunhado por uma jovem que tem dado mostras de vigorosa personalidade, ao par de indiscutível encanto pessoal; o fato de que a essa jovem incumbirá lutar pela sobrevivência do Império e das próprias instituições monárquicas em um mundo profundamente trabalhado por fatores hostis tanto à monarquia quanto à “Commonwealth”, concorre, em medida não pequena, para atrair muito especialmente todas as atenções para Londres; e este movimento de atenção irá num crescendo até atingir seu apogeu no dia da coroação.
Por maior que seja este movimento de atenção e simpatia, há desde já vozes divergentes, cujo clamor paralelamente se irá acentuando. A própria existência da “Commonwealth” contraria grande número de interesses, alguns do quais legítimos. A política inglesa na Europa criou fundos ressentimentos, que estão longe de se ter apagado. No mundo inteiro, o fluxo das tendências niveladoras, avolumado pela onda comunista, leva naturalmente os espíritos a não compreender nem aceitar todo o aparato tradicional e solene dos funerais do Rei, da aclamação e coroação da Rainha. Não pretendemos abordar aqui todos os aspectos destes múltiplos e graves assuntos. Destacamos apenas um - o conjunto de cerimônias dos funerais, da aclamação e da coroação - para sobre ele fazer algumas considerações.
Sem dúvida, vistas em seu todo, estas cerimônias apresentam um aspecto brilhante, e mesmo empolgante, para a consideração dos historiadores, dos artistas, dos homens de sociedade, e até dos turistas. Analisadas as coisas mais a fundo, seria entretanto realmente o caso de perguntar se o desenrolar de pompas tão opostas ao espírito de nossa época não merece censura, máxime se se considerar que - embora, com algumas economias - elas acarretarão gastos vultosos em um país trabalhado pela crise econômica do “post guerra”, e sujeito a um terrível programa de “austerity”.
Fixemos os traços essenciais por onde todas estas pompas entram em contradição com o espírito de nosso tempo: a essência religiosa, o cunho tradicional e o aspecto hierárquico. E, como tema de reflexão e estudo, consideremos mais especialmente a coroação, que compreende em si, arquetipicamente, as notas características de todas as outras.
Enquanto todos os chefes de Estados democráticos de nossos dias se empossam em cerimônias estritamente leigas, a coroação continua sendo, em pleno século XX, um ato essencialmente religioso.
Em resumo, é das mãos de dignitários eclesiásticos, num edifício eclesiástico, durante uma solenidade eclesiástica, que o Rei recebe sua investidura, e durante essa cerimônia presta ele um juramento de fidelidade a seus deveres como membro de determinada organização eclesiástica. É bem evidente, a este propósito, que um católico não pode senão aprovar esta nota das cerimônias de coroação. Fiéis ao ensinamento da Igreja, repudiamos o princípio de que o poder vem do povo. Todo o poder vem de Deus. E, assim, nada mais normal do que o caráter religioso do ato de investidura de um Chefe de Estado. Não se trata aqui de um aspecto secundário da realidade política de nossos dias. A malfadada separação entre a Igreja e o Estado habituou os católicos, e às vezes até os mais fervorosos, a considerar a vida civil e a vida religiosa como compartimentos absolutamente estanques. Entretanto, em relação a Deus nada há que possa constituir compartimento estanque: tentar sê-lo importa em revoltar-se. E o Estado separado da Igreja é, enquanto tal, um Estado em revolta contra Deus.
Aprovando o caráter religioso das solenidades da coroação na Inglaterra, não podemos fazê-lo, entretanto, sem uma restrição muito grave. Com o coração pesado de tristeza, devemos lembrar que a Inglaterra, que outrora foi uma nação tão profundamente católica que chegou a ser chamada “Ilha dos Santos”, está hoje separada da Igreja. Se bem que exista na Grã Bretanha uma forte e disciplinada minoria católica, a grande maioria é protestante, e a igreja anglicana é oficialmente reconhecida como verdadeira pelo Estado. É pois de uma seita herética, que o Rei recebe sua investidura. A este propósito, há ainda uma observação triste, a fazer. Segundo a doutrina anglicana, o Rei é oficialmente, não só chefe do Estado, mas também da própria hierarquia eclesiástica. Por isto, durante a cerimônia da coroação, há ritos que o elevam à dignidade de bispo anglicano, colocando-o à testa da igreja oficial inglesa. Este fato representa simbolicamente a sujeição da religião ao Estado, na Inglaterra, o que constitui monstruosa inversão de valores, inteiramente oposta à doutrina católica, segundo a qual o poder eclesiástico é soberano, não sendo sujeito, em sua esfera, a nenhum poder deste mundo.
Assim, pois, se o católico não pode deixar de considerar com simpatia o aspecto religioso das festas da coroação, não pode, de outro lado, experimentar em si esta simpatia sem duas graves restrições, decorrentes do cunho herético da cerimônia, e da sujeição, que nela se afirma, das esfera espiritual à esfera temporal.
De outro lado, há o caráter tradicional e, portanto, anacrônico das cerimônias ligadas à sucessão da coroa. A maior parte dos trajes, dos ritos, dos símbolos usados por ocasião dos funerais, da aclamação e da coroação corresponde a fatos e situações do passado, parecendo em violento contraste com as ideias e os usos de nossos dias. Deste anacronismo, o que pensar?
A questão se prende a outra mais profunda. Deve um povo conservar vivas as recordações de seu passado, evocando-as com particular insistência e solenidade nas grandes ocasiões de sua vida coletiva? Ou deve esquecer sua História, vivendo só da hora presente?
Para um católico, a resposta não pode deixar de ser a favor da tradição. Em princípio, um povo que renuncie a seu passado renuncia a si próprio. Pois o que um povo
(continua)