A humildade proíbe que invejemos os que estão no alto, e nos igualemos com os que estão mais baixo.
(continuação)
tem de mais essencial, de mais típico, de mais seu, é a alma nacional. E esta alma nacional, esta comunidade de modos de pensar, de ser, de sentir, de agir que constituem o espírito de um país, evidentemente não nasce e morre a cada momento, mas é o produto de uma longa maturação histórica, que vem do passado, prossegue no presente, e vai deitando raízes para o futuro. A mentalidade de um povo, em determinado momento - no dia de hoje, por exemplo - não é senão uma resultante das influências de sua História, e das circunstâncias peculiares desse momento. Assim, no Brasil de hoje, a alma nacional é constituída por elementos morais e afetivos em que não é difícil discernir a influência de fatos da era colonial como a catequese e o bandeirismo, da era imperial como a unidade nacional e a glória militar das guerras com as nações platinas, e da era que lhe sucedeu, assinalada pelo florescimento prodigioso da iniciativa privada no terreno econômico, a industrialização, e a participação do Brasil nas vitórias das duas guerras mundiais. Comemorando os vários fatos históricos deste já não curto passado, outra coisa não fazemos, senão reavivar em nós as notas típicas que cada um deles deixou na alma nacional. Ou, em outros termos, reavivamos a própria alma nacional em todos os seus elementos essenciais e característicos.
Quando um povo tem o longo e brilhante passado da Inglaterra, é louvável que revigore o espírito nacional ao calor de sua História. E melhor meio não há, senão a manutenção das grandes solenidade nacionais, para completar de modo vivo e profundo o que o ensinamento da História no curso secundário ou superior tem de inevitavelmente livresco e inerte.
No caso inglês, há ainda uma particularidade notável, que acrescentar. É que, fiel a suas tradições, a Inglaterra ainda constitui hoje uma das nações mais prósperas e adiantadas do mundo. Por onde os britânicos mostram que seu apego à tradição não é rotina, não é rejeição sistemática de tudo quanto é novo: é uma harmoniosa inserção do que, no passado, deve ser perene, no que o presente pode ter de útil, e quiçá de grande.
É claro, portanto, que deste ponto de vista os católicos não podem senão aplaudir o espírito tradicional das cerimônias que se iniciaram na Inglaterra e se desenrolarão até a coroação. E isto tanto mais quanto a própria Igreja Católica, no cunho profundamente tradicional de sua liturgia, e no aparato também profundamente tradicional da Corte Romana, outra coisa não faz, senão praticar e ensinar os mesmos princípios de um sábio apego ao que o passado tem de louvável e perene.
Quando o indispensável recuo do tempo se estabelecer, e os historiadores futuros puderem, por fim, estudar a época em que vivemos, é certo que assinalarão como a ideia rectrix, da mentalidade do homem do século XX, a igualdade. Igualar, em tudo e por tudo, é o ideal, mais do que isto a mania de nossos coetâneos. E, por isto, as suas antipatias se voltam inteiramente e instintivamente para tudo quanto signifique desigualdade; nivelam-se os pais com os filhos, os mais velhos com os mais moços, os maridos com as esposas, os professores com os alunos, os patrões com os empregados, os nobres com os plebeus, os ricos com os pobres, etc. Em qualquer terreno em que nosso século se tenha diversificado do anterior, ver-se-á que a transformação se fez em sentido nivelador.
Ora, as cerimônias ligadas à sucessão do trono e especialmente à coroação de um Rei da Inglaterra nos trazem aos olhos a imagem rediviva de uma sociedade toda ela baseada sobre a hierarquia: as três classes sociais, Clero, nobreza e povo, nitidamente diferenciadas, ocupando cada qual uma categoria no protocolo - e o protocolo não é aqui senão uma imagem do que foi a vida - correspondente às suas funções. No seio de cada uma destas classes, novas hierarquias internas, novas divisões: arcebispos, bispos, simples clérigos, duques, marqueses, condes, barões, baronetes, e por fim a gama menos precisa, porém não menos real, das organizações ou instituições plebeias.
Esta desigualdade de funções, de nível, de condição de vida, não é disfarçada como as poucas desigualdades que ainda sobrevivem em nossos dias. Pelo contrário, ostenta-se nos trajes, nos símbolos, na colocação de cada qual no recinto do templo, e no desfile que antecede e termina a cerimônia. Tudo isto nos desagrada porque a própria hierarquia nos parece antipática. O que deve pensar um católico deste descontentamento?
Antes de entrar no mérito da questão, julgamos oportuno insistir sobre uma comparação. Há pouco acentuamos a analogia entre cerimônias como a da coroação do Rei da Inglaterra, e de outro lado os atos da Sagrada Liturgia e as solenidades da Corte Pontifícia. Do ponto de vista da hierarquia, a analogia é frisante. Em umas e outras, o sentido da desigualdade, a preocupação de exprimir esta desigualdade como um fato absolutamente normal, legítimo, digno de ser patenteado aos olhos de todos, a utilização de ritos, de cerimônias, símbolos para este fim, é evidente. Em São Pedro, o cortejo que antecede a entrada do Papa na Basílica é absolutamente tão hierárquico em sua organização, tão protocolar em seu aspecto, quanto o cortejo que em Westminster precede o Rei. Há nisto, “a prima facie”, uma indicação de que a Igreja não desposa nossos igualitarismos, pelo menos em sua expressão geométrica e absoluta.
E, de fato, a Igreja ensina que temos todos a mesma natureza humana, e fomos todos igualmente remidos por Jesus Cristo. Assim, em todos os direitos que decorrem da mera natureza de homens e de cristãos, somos iguais: direito à verdadeira Fé, à liberdade de praticar os Mandamentos, à vida, à dignidade e ao trabalho. Entretanto nem todos os direitos de um homem lhe vêm do mero fato de ser homem e cristão. A virtude, o saber, o senso artístico, o espírito de luta, a capacidade de ação, uma educação esmerada, uma progênie que conferem legitimamente uma especial consideração. E como estes predicados são, por vontade de Deus, desiguais de indivíduo para indivíduo, por vezes até de família para família, de classe para classe, de nação para nação, é por vontade de Deus que os homens fazem jus a graus de consideração desiguais. A humildade é precisamente a virtude que leva cada qual a se contentar com o grau de consideração a que tem direito, sem invejar os que estão mais alto, nem se nivelar com os que estão mais baixo.
Desde que, pois, os degraus da hierarquia social sejam constituídos de tal modo que o quinhão dos menos favorecidos seja, em honra e largueza de vida, compatível com a inalienável dignidade do cristão, a desigualdade é um bem, e a virtude que leva ao amor desta desigualdade é uma das mais altas virtudes cristãs, a humildade.
Assim, a Inglaterra dá ao mundo, por motivo da sucessão no trono, um admirável exemplo de espírito religioso com o caráter eclesiástico da coroação; uma brilhante manifestação de cultura com o seu apego à tradição, e uma nobre demonstração de espírito de humildade com seu amor à hierarquia.
Possam todos os povos, qualquer que seja aliás sua forma de governo, imitar estes belos exemplos.
E, por fim, uma sugestão: rezarmos para que Deus multiplique Suas graças sobre uma nação que ainda conserva tais valores espirituais, a fim de a libertar do pavoroso câncer da heresia que a vai devorando.
Adolpho Lindenberg
O mês de Fevereiro que findou pode ser considerado como dos mais felizes para os planos ocidentais de defesa contra a Rússia Soviética. Foi nele que se revelou, embora extraoficialmente ainda, ser possível a construção da bomba H, duas a dez vezes superior à atômica de urânio, e a França concordou na participação de soldados alemães no Exercito Europeu. Realmente, os únicos fatores que podem dar esperanças aos ocidentais de sustar uma invasão russa, são o poderio atômico americano e a aliança de todos os países europeus apoiada pelos EE.UU.. A questão é saber se haverá tempo para se confeccionar a bomba H e para mobilizar as dezenas de divisões que devem constituir o novo exército, pois uma e outra coisa necessitam de vários meses para chegar a seu termo.
A criação do Exército Europeu sob a chefia de Eisenhower é a primeira concretização desse ideal de aliança e de união que, desde o término da guerra, vem empolgando os povos do Velho Continente.
Depois da primeira Conflagração Mundial o equilíbrio de forças que havia entre os EE.UU., a Rússia, a Inglaterra, a Alemanha e a França, se desfez. Os Estados Unidos, que já em 1914 eram a nação mais rica e poderosa do mundo, aumentaram espetacularmente suas riquezas e seu poderio. A Rússia, graças ao regime de escravidão e de miséria em que vive o seu povo, e graças à exploração intensiva dos seus imensos recursos naturais, se tornou uma potência muito mais forte que qualquer outro país da Europa. As potencias europeias, sem poder acompanhar o mesmo ritmo de progresso material dos americanos e russos, e duramente atingidas pela segunda Guerra Mundial, viram-se na contingência, ou de se unirem, ou de serem consideradas pelos americanos como, passíveis de serem dominadas economicamente e pelos russos como alvo de invasão e bolchevizarão.
O primeiro movimento de união europeia consistiu na criação de federações de base econômica, dos pequenos países continentais, das quais o Benelux apresenta um ótimo exemplo. A França e a Alemanha, por seu lado, realizaram a união dos trustes do ferro, aço e carvão, obedecendo ao Plano Schumann. Paralelamente a estas alianças econômicas, um amplo movimento favorável à criação dos Estados Unidos da Europa, tendo como sede a cidade franco-alemã de Estrasburgo, se espalhou por todo o continente, e conta atualmente com o apoio de inúmeras personalidades, escritores de renome e grandes políticos, entre os quais o Snr. Churchill.
A invasão da Coréia, os constantes fracassos das sessões do Conselho de Segurança da ONU e as repetidas noticias de que os russos estão aumentando incessantemente seu potencial bélico, levaram os EE.UU. a promover a criação de um exército europeu, com a participação de forças americanas, e o estabelecimento de uma aliança de todos os países ocidentais. Essa aliança, a que foi dado o nome de "Organização do Pacto do Atlântico Norte" (NATO), já abrange quatorze Estados e considera, em expressos termos, que "todo e qualquer ataque lançado a qualquer das nações pertencentes à comunidade da Europa Ocidental, inclusive à Alemanha, será considerado agressão contra todos os Estados filiados à Organização do Pacto do Atlântico Norte".
A Alemanha não foi admitida na NATO, mas pertence à Comunidade da Europa Ocidental, organismo que tem por função servir de base para a criação do Exército Europeu.
A Espanha também não foi recebida no Pacto do Atlântico, muito embora tenha se oferecido várias vezes. Seu ministro do Exterior, Sr. Alberto Martim Artajo, deu uma entrevista infeliz apoiando a ideia da diplomacia egípcia no sentido de ser formado um "Pacto do Mediterrâneo", ao qual pertenceriam todos os países árabes e a Espanha. Para Londres, na hora presente, apoiar qualquer plano egípcio não pode ser considerado como coisa das mais acertadas, além de que, o plano é perfeitamente inviável, uma vez que a Turquia, principal potencia do Mediterrâneo, ingressou no Pacto do Atlântico com grande satisfação, como se pode inferir do discurso pronunciado por seu chanceler na Conferência de Lisboa.
No que se refere a todos esses assuntos, as questões mais importantes para nós católicos ainda permanecem no escuro, e só o futuro as esclarecerá. Haverá tempo para ser formado o Exército Europeu, ou os russos invadirão a França na Primavera, como os alemães fizeram em 1940? Caso não invadam, que caráter tomará o Pacto do Atlântico? Quem terá voz ativa, os americanos, os franceses ou os alemães? O Pacto do Atlântico, uma vez afastado ou eliminado o perigo russo, será desfeito ou evoluirá para os Estados Unidos da Europa, ou quiçá para a República Universal sonhada pela Maçonaria?
A Comissão Central Organizadora do PC italiano recebeu da Secretaria do Partido o encargo de preparar uma ação em profundidade nas províncias para aumentar o número de inscritos. Por informações fidedignas sabe-se que de fato, em 1951 mais de 300.000 comunistas não renovaram a inscrição. O sr. Secchia em seu relatório à Secretaria, de que é membro, procurou atenuar essa realidade, referindo que neste ano entraram no Partido outros 230.000 elementos novos; mas os outros membros da Secretaria se mostraram alarmados porque o defluxo notável que se verificou nesse ano demonstra que muitos velhos comunistas não conservam mais a linha justa do Partido e se torna, portanto, indispensável efetuar confrontos e inspeções nas Federações a fim de verificar se a ação de propaganda está sendo desenvolvida segundo as diretrizes superiores. E isto especialmente nos pequenos centros, onde os inscritos estão mais intensamente expostos à propaganda adversária. Não se trata somente de elementos de segunda ordem que deixam o Partido, mas, frequentemente, de grupos e de dirigentes, que, em suas cartas de demissão, repudiam a política do PCI porque muito abertamente submetida ao influxo da política soviética.
A Comissão Central Organizadora terá como primeira tarefa a preparação de dados estatísticos precisos, que permitam remover as causas que levam muitos "camaradas" qualificados a abandonar o Partido, O sr. Audisio, que sob a dependência de Secchia dirige a Comissão, ordenou aos Secretários das Federações Provinciais que identifiquem e isolem todos os "camaradas" com tendências "desviacionistas" ou que despertem suspeitas pela sua conduta em desacordo com as diretrizes do Partido.
O fenômeno "desviacionista" foi se estendendo mais amplamente em algumas regiões do Sul, até alcançar proporções alarmantes. Procuradores comunistas e Secretários de Secções de centros importantes como Gioia del Colle, Canosa, Trana solicitaram demissão, e muitos deles aderiram ao Movimento de Cucchi e Magnani. Ao Norte, pelo contrário, os fenômenos de "desviacionismo" estão aumentando especialmente nas fileiras dos "partigiani".
É evidente, pois, a preocupação dos dirigentes comunistas e iminente sua ação no sentido de circunscrever os fenômenos "desviacionistas".
Ainda é incerto o resultado que suas providencias obterão.
Plinio Corrêa de Oliveira
A vida de São João Capistrano nos ensina que a perfeição cristã não é apenas humildade e brandura, mas também altivez e combatividade - Um frade diplomata e guerreiro
Senti sempre marcada predileção por São João de Capistrano, cuja festa a Igreja celebrará no próximo dia 28 de março. As razões desta predileção não são meramente pessoais. Antes parece-me que se nossos contemporâneos - pelo menos os católicos - conhecessem, todos, e admirassem a figura do grande Franciscano, outra seria atualmente a situação da Igreja e do mundo. Assim, pois, parece-me que algumas reflexões sobre São João de Capistrano, e a oportunidade de seu culto em nossos dias, constitui matéria de interesse para mais de um leitor. É tendo isto em vista, que escrevemos o presente artigo.
O ponto de partida destas considerações se localiza em uma verdade fundamental, e por isto mesmo muito conhecida. Não há o que disponha mais as almas para aceitar os argumentos de credibilidade e fazer o ato de fé, do que o conhecimento do que seja a verdadeira santidade. Em outros termos, a Igreja ensina aos homens um ideal de perfeição moral. Este ideal é extremamente árduo, e exige terríveis sacrifícios. Evidentemente, o receio destes sacrifícios mantém muitas almas arredias da Religião. Para não reconhecerem a necessidade de suportar o jugo dos Mandamentos, aceitam sem maior exame, e muitas vezes com sofreguidão, quaisquer argumentos que encontrem contra a doutrina católica. E, de outro lado, submetem em seu foro íntimo todos os ensinamentos da Igreja a um exame hipercrítico, unilateral e apaixonado, procurando de todos os modos argumentos que lhes permitam continuar fora dela. O melhor modo de vencer este estado de espírito consiste em mostrar aos não católicos, em suas verdadeiras cores, a sublime perfeição moral a que a Igreja chama os fiéis, e despertar neles a admiração por esse ideal, juntamente com o desejo de o realizar em si mesmos. Não foi de outra maneira, que o Cristianismo venceu a Roma pagã. Se bem que a austeridade da Religião de Jesus Cristo desagradasse à sensualidade, à moleza, ao orgulho dos pagãos, entretanto muitos houve que se deixaram empolgar pela consideração das virtudes que brilhavam nos cristão, e se sentiram propensos a aceitar os maiores sacrifícios a fim de realizar em si mesmos estas virtudes. É supérfluo encarecer quanto este movimento de alma predispunha os espíritos a julgar sadiamente das coisas, e a realizar o “rationabile obsequium” do ato de fé.
Na história de todas as conversões, encontra-se qualquer coisa disto, mais ou menos explicitamente, mais ou menos marcadamente; e em todo o caso, sem que alguém professe admiração pelo ideal de perfeição moral praticado e ensinado pela Igreja, a conversão, em todos os tempos, é impossível. De onde decorre ser altamente desejável que este ideal seja bem conhecido pelos não católicos.
O mesmo se poderia dizer, mutatis mutandis, dos católicos. Também para nós, católicos, uma “conversão” é possível. Convertemo-nos quando passamos de uma vida má, ou pelo menos tíbia, para uma vida fervorosa. Esta conversão implica sempre em uma mais perfeita prática dos Mandamentos. E, por sua vez, o católico só se resolve a esta prática quando, tocado pela graça, se sente penetrado de compreensão e admiração do que seja a virtude cristã. Sem que alguém admire uma virtude, não é capaz dos sacrifícios – muitas vezes heroicos – que sua prática supõe. De outro lado, impossível é que conheçamos e admiremos uma virtude, sem que experimentemos o desejo de a realizar em nós. Assim, pois, o afervoramento dos fiéis – tema de importância suma em um país como o Brasil, em que a população é quase unanimemente católica, mas em que os católicos em sua grande maioria não têm fervor – depende também de um conhecimento exato, e de uma profunda admiração pela santidade.
A conversão dos infiéis, o afervoramento dos fiéis, nisto se compendia todo o esforço do apostolado cristão. Se para um e outro ponto é de capital importância que se conheça e admire a santidade como a Igreja a ensina, é evidente a importância da seguinte pergunta: a generalidade dos homens, a generalidade dos fiéis gostaria de ser católicos fervorosos e completos? Em caso negativo, porque não? Sabem eles o que é um católico na plena acepção do termo?
Tornemos mais nítidos os contornos da questão. CATOLICISMO é especificamente uma folha para orientação da opinião católica. Seus leitores supõe-se que sejam católicos, com um nível de instrução religiosa e de fervor superior à média. Seria, pois, descabido perguntar-lhes se sabem no que consiste o ideal de perfeição moral ensinado pela Igreja. Consideremos um brasileiro mediano qualquer, ou seja o primeiro homem que encontramos diante de nós na rua, ao lado do qual nos sentamos no engraxate, ou que viaja a nosso lado no autolotação. E perguntemos a esse brasileiro mediano qual é a seu ver a fisionomia moral de um homem que se deixe influenciar inteiramente pela Igreja, pensando como Ela pensa, frequentando assiduamente os Sacramentos, praticando à risca Sua moral. A maior parte das pessoas medianas a quem nos dirigirmos nos fitará no primeiro momento, um pouco surpresa e perplexa com a pergunta, pensará talvez um minuto ou dois, e responderá com toda a naturalidade: “... é claro, um tal homem ficaria um carola”.
Convém não exagerar. Não queremos afirmar que a imensa maioria dos brasileiros de mentalidade religiosa standard respondesse assim. Mas é certo que em um muito grande número de casos a resposta será esta. “Um carola”, um “beato”, o que vem a ser isto? A pergunta apresenta grande interesse. Pois, para todos estes numerosíssimos brasileiros, existe a ideia de que se eles próprios se tornarem muito católicos ficarão “carolas” ou “beatos”. E sua atitude perante a Igreja será, portanto, influenciada a fundo pelo que pensarem a respeito de “carolice” e “beatice”. Pois dado que “carola” e “beato” lhes parecem coisas nefandas, consideram nefando ficar muito católicos. E, pelo contrário, dado que a “carolice” e a “beatice” lhes parecessem coisa decorosa e atraente, seriam propensos a se afervorar.
A questão, posta assim, penetra de tal maneira na trivialidade da vida quotidiana, é tão pouco acadêmica, tão pouco livresca que fará sorrir os sociólogos de gabinete. É natural. Não há coisa que um sociólogo de gabinete mais despreze, do que a realidade objetiva, crua, palpitante, a realidade – não dos romances, nem das academias, nem da literatrice sociológica – mas da vida quotidiana, em sua autenticidade absoluta, em seu aspecto prosaico, em seu sabor de verdade. Deixemos pois de lado os sociólogos de gabinete, deixemo-los com seu sorriso e sua sociologia, em seu gabinete, e vamos nós à realidade.
Para a categoria de brasileiros de que falamos, a personalidade do carola ou do beato, outros diriam do “maricas”, se define mais ou menos assim:
1 – Ele se orienta muito mais pelo sentimento do que pela razão. Não tem propriamente opiniões, mas impressões. Crê, precisamente por isto. Sua fé seria um modo de satisfazer as aspirações de seus sentimentos. E não propriamente um “rationabile obsequium”.
2 – Por isto mesmo, também, é muito “bom”, esmoler, compassivo. Nunca se irrita, porque toda e qualquer irritação é defeito espiritual. Não luta, não combate, nem sequer para se defender: seria pecado. Não fala contra nenhum erro, nenhum vício: poderia ofender a alguém, e sempre que se causa desgosto a alguém, é sinal de que se pecou contra a caridade. Ademais, falar mal de quem quer que seja supõe anteriormente pensar mal. E sempre que fazemos de outrem um juízo desfavorável cometemos o pecado de juízo temerário.
3 – O carola entende muito de orações, pequenos fatos eclesiásticos, enfim tudo quanto se passa dentro do templo ou na sua vizinhança imediata: a sacristia, as associações religiosas, etc. Entretanto, fora disto nada lhe interessa. Nem política, nem economia, nem administração, nem ciências, e nem sequer os campos mais altos da cultura religiosa: filosofia, teologia. Quando muito abrirá exceção para a vida dos Santos. Mas neste caso procurará livros de gênero literário, que acentuem a todo o momento o lado emotivo e sentimental.
4 – Em matéria de caridade, será muito propenso a tudo quanto diga respeito à beneficência material. Curar ou diminuir dores materiais, é coisa de que certamente ele entende. Mas apostolado, salvar almas, curar dores espirituais, eis aí o que lhe parece secundário!
Tudo isto constitui, no conjunto, o que depreciativamente se poderia chamar um “rato de sacristia”.
Que pensar de um católico assim? Em sua personalidade se congrega caracteristicamente tudo quanto há para o homem do século XX de mais desprezível. Em primeiro lugar, porque o “carola”, bem ou mal, é um idealista, e, de certo modo pelo menos, um homem de Fé. Ele possui todas as grandes qualidades essenciais que o pagão do século XX abomina: puro de costumes e de linguagem, calmo, desapegado dos bens da terra, honesto, é ele a antítese mais flagrante do homem dinâmico, brasseur d’affaires, ou businessman, que vive não para o Céu mas para esta terra; que deseja antes de tudo e acima de tudo enriquecer, honestamente se possível; que depois de um dia de trabalho agitadíssimo, encontra tempo e disponibilidades mentais para frequentar as boites, os night-clubs, os dancings em que ficará até altas horas. Para um homem que endeusou assim a lascívia e o dinheiro, do que pode valer um “pobre coitado” que só pensa em Deus, seus Anjos e Santos?
Não é de espantar se, tudo somado, o “carola” seja, para o homem de negócios, para o sibarita, uma espécie de palhaço.
Não podemos passar adiante, sem dizer nossa opinião acerca desta crítica. Se devêssemos escolher entre os dois extremos, preferiríamos mil vezes o carola. Pois este ao menos não ofende gravemente nem a Deus, nem à Igreja, nem ao próximo. De outro lado, se a mentalidade hodierna, em lugar de ser dominada pela sensualidade e pela ganância, não tivesse senão os defeitos do “espírito carola”, o mundo de hoje estaria talvez mais atrasado. Mas pelo menos não estaria, como está, às portas do abismo.
Mas, isto não obstante, se não concordamos em ver no carola um palhaço, somos obrigados a dizer com toda a sinceridade que vemos nele uma caricatura. Triste e perniciosa caricatura do que o verdadeiro católico deverá ser.
Segundo a doutrina católica, a Lei de Deus preceitua para o homem um procedimento em harmonia com a própria natureza humana. Assim, desde que o homem conforme todos os seus pensamentos e seus atos à Lei de Deus, deve forçosamente vencer tudo quanto moralmente o limita, o deforma, o degrada; e deve desenvolver tudo quanto realiza plenamente sua personalidade.
Assim, o fruto verdadeiro e próprio da piedade consiste em estimular de todos os modos a inteligência e a vontade, em elevar, afinar e disciplinar a sensibilidade. E um homem assim enriquecido em sua personalidade, quando posto diante das tarefas e das lutas da existência quotidiana, não pode deixar de se afirmar de modo excepcional, na adversidade como no sucesso.
É certo que para o bom católico o centro da vida é a Igreja, com Seu magistério, Sua vida de oração e de apostolado, de sorte que não só este seja o polo de atração constante de seu pensamento, o móvel último de suas ações, mas o ponto de vista do qual considerará toda a vida.
Mas – note-se este particular – quanto mais alto o mirante, tanto mais vasto o panorama. A fé, longe de estreitar as vistas do fiel, amplia imensamente seu campo de visão. Política, economia, sociologia, História, artes, ciências, em tudo isto sua inteligência vê mais claro, precisamente porque vê mais do alto.
E porque o católico vê tão bem, tão de cima, tão a fundo, é ele não um homem de impressões sentimentais e cambiantes, mas um homem de convicções rijas, sadias, razoáveis, fecundas; em uma palavra, um homem de princípios.
Homem de princípios firmes implica em dizer homem de vontade forte. O católico tem que possuir uma têmpera exímia de realizador e de lutador. Pois os princípios o obrigam a uma luta constante, em que deve aprender, não só a discernir entre bons e maus, mas a desmascarar a maldade disfarçada em virtude, e a abater a impiedade cínica e insolente.
A este respeito, cumpre acrescentar que nada é mais falso do que imaginar que o católico jamais deve irritar-se. A ira, em si, é um movimento de sensibilidade – uma “paixão” diz a Filosofia – como os demais: nem bom nem mau. Será bom se vibrar conforme a razão, e mau se vibrar contra a razão. Se uma pessoa se irrita sem motivo, comete uma imperfeição. Se, de outro lado, tem justa causa para irritar-se, e permanece átona, também cai em imperfeição.
Comparando-se um homem estruturado segundo estes princípios, com o “carola”, bem se compreende como este é a mera caricatura daquele.
E de outro lado, quantas almas há, que entenderiam mais a Igreja, e ambicionariam mais a virtude, se se lhes explicasse que nossa Religião não tem por fruto próprio e normal formar carolas, mas homens como os que acabamos de descrever.
O Santo é um fiel que praticou em vida, em grau heroico, todas as virtudes que a Igreja ensina. Canonizando-o, a Igreja proclama reconhecer na pessoa dele a imagem fiel e autêntica do espírito católico. Por isto a leitura de qualquer vida de Santo – exceção feita das que, com intenções presumivelmente boas, desfiguram o Santo apresentando-o como um carola – confirmaria
(continua)