São João de Capistrano (conclusão)
UM FRADE DIPLOMATA E GUERREIRO
(continuação)
o que estamos dizendo. Mas em certos Santos nossa tese é particularmente saliente. É o caso de S. João de Capistrano, frade piedosíssimo, diplomata brilhante, orador sacro dos maiores de seu século, e um dos guerreiros mais famosos de seu tempo.
Nasceu João de Capistrano na Itália, em 1385. Sabe-se que seu pai era um guerreiro que acompanhou o Duque de Anjou em sua expedição à península, mas os historiadores não são concordes quanto à sua nacionalidade: se francesa ou alemã.
Desde cedo, consagrou-se João à vida pública, indo estudar leis em Perugia, onde foi aluno do famoso Pietro Ubaldo. Tal foi a consideração de que soube cercar-se, que pouco depois foi elevado à dignidade de governador da cidade, cargo durante cujo exercício lhe tocou, em 1416, representar Perugia nas difíceis negociações destinada a pôr termo à guerra em que se encontrava com a família Malatesta. Durante estas negociações, foi aprisionado. E, pouco depois, atendendo ao chamado de Deus, deliberou abandonar o século, fazendo-se franciscano.
Religioso exemplar, teve João a ventura de possuir como mestre de Teologia o grande São Bernardino de Siena, que influenciou a fundo seu espírito, e do qual hauriu uma ardentíssima devoção ao Nome de Jesus. Esta devoção fora propagada por São Bernardino com imenso êxito, e João foi seu continuador neste santo apostolado. Arguto, enérgico, percebeu com clareza que perigosos germens de decadência espiritual minavam naquele tempo a Ordem Seráfica. Por isto, foi dos mais ardentes propugnadores de uma reforma na Família de São Francisco. Para levar a cabo esta obra delicadíssima, e de caráter essencialmente religioso e espiritual, seus irmãos de hábito o elegeram em 1438 Vigário Geral da sua Ordem. Empreendeu ele então diversas viagens pelo exterior, a fim de estender e assegurar por toda a parte os benefícios da reforma. Foi durante uma destas viagens, que conheceu na França Santa Colette, que com exemplar austeridade reformava as Clarissas de seu país. São João de Capistrano estimulou-a para a realização de seu árduo apostolado, pois propugnava por toda a parte o espírito de mortificação e de austeridade.
Ao mesmo tempo, São João se revelou um orador sacro famoso. Em uma de suas prédicas, chegou-se a computar em 126 mil o número de seus ouvintes, dos quais muitos evidentemente não podiam escutar sua palavra, mas se contentavam com vê-lo, ou participar pelo menos da atmosfera do religioso entusiasmo que despertava. Sua fama de santidade espalhava-se ao longe. Por onde passava, postavam-se os doentes, à espera de uma cura por sua intercessão. E de tal maneira se generalizou a convicção de sua ação miraculosa, que certo dia foram mais de 2 mil os doentes aglomerados ao longo de seu caminho.
Sob todos estes aspectos, São João de Capistrano se nos afigura um homem da Igreja no sentido mais alto e completo da palavra. Insigne pela virtude, orador sacro empolgante, envolvido a fundo em negócios eclesiásticos de uma importância transcendente, como seja a reforma de uma grande Ordem Religiosa, revelava ele em todas estas atividades que seus dotes de homem de estudo, de governo, e de diplomata, longe de terem expirado sob o burel franciscano, haviam florescido admiravelmente para a maior glória de Deus. A santidade não fanara, mas elevara, desenvolvera, sua admirável personalidade.
Entretanto, São João de Capistrano, embora vivendo exclusivamente para a Igreja, seria chamado a prestar-lhe seus serviços em uma esfera mais próxima dos interesses temporais. A seu tempo, consumou-se a queda do Império Romano do Oriente, tendo sido conquistada a cidade de Constantinopla, em 1453, por Maomé II. O islamismo representava naquele tempo, para a Cristandade, perigo semelhante ao do comunismo em nossos dias. Inimigo da Fé, visava exterminá-la da face da terra. A seu serviço, tinha as riquezas, as armas, o poderio de um dos mais vastos impérios da História, qual era àquele tempo o dos turcos. A luta entre os muçulmanos vindos do Oriente, e os cristãos do Ocidente, não era apenas um choque entre dois povos, mas entre duas civilizações, mais do que isto entre duas religiões. Ora, com a queda de Constantinopla, abriam-se para os turcos os caminhos da Europa Ocidental. Maomé II não se deteve diante da brilhantíssima vitória que alcançou em Constantinopla. Prosseguiu pelos Bálcãs a dentro, visando atingir a Cristandade na Europa Central.
Ora, os europeus daquela época – parecidos nisto com os homens de nossos dias – preferiam não ver de frente os perigos, não tomar atitude, não lutar. Sensuais, dissolutos, com um fervor religioso muito decadente – preparava-se já a Renascença e o protestantismo – pouco se lhes dava do dia de amanhã, e menos ainda da eternidade. Queriam gozar somente o momento presente.
Como galvanizar contra o formidável poderio do Islã as forças dessa Cristandade decadente?
Tratava-se de agir sobre Príncipes e Reis, sobre Cardeais, Bispos e Clérigos, sobre fidalgos e sobre letrados, enfim sobre toda a massa da população, despertando a consciência de um perigo real, e aplainando as vias para uma geral colaboração no interesse da Igreja e da civilização cristã ameaçadas. Assim, tornar-se-ia por fim possível lançar contra Maomé II uma cruzada.
Para este trabalho titânico, o Papa Calixto III e o Imperador lançaram os olhos sobre São João de Capistrano, que já exercera com brilho as funções de Núncio Apostólico, a pedido do próprio Imperador.
Sempre recolhido, sempre devoto, sempre contemplativo, São João de Capistrano lançou-se de cheio na tarefa. Participou ele assim em 1454 da Dieta de Frankfurt, em que o Sacro Império tomou a Cruz para repelir os turcos, e sua ação diplomática foi decisiva para obter a coligação dos príncipes cristãos, divididos entre si por questões temporais de toda ordem.
O comando da expedição foi confiado a um nobre húngaro que se tornara ilustre em lutas anteriores, e que mais tarde adquiriu imortalidade na luta contra os turcos. Hunyade, auxiliado por São João de Capistrano, caminhou com as tropas cristãs em direção aos infiéis. O encontro decisivo deu-se na altura de Belgrado. Faltando a Hunyade quem capitaneasse a ala esquerda de seu exército, disto se encarregou São João de Capistrano, que se houve com raro acerto e vigor. Quando terminou a batalha, jaziam no campo mais de cem mil guerreiros muçulmanos, e Maomé II estava em fuga. A Igreja conquistara admirável triunfo, a investida turca estava rechaçada.
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Humanamente falando, que homem foi em seu século maior do que São João de Capistrano? Santo, orador, estadista, diplomata, Geral de uma Ordem Religiosa importantíssima, e por fim guerreiro, foi exímio em tudo. E o segredo de sua grandeza está precisamente na santidade, no auxílio da graça que lhe permitiu vencer os defeitos da sua natureza, e aproveitar admiravelmente todos os dons sobrenaturais e naturais que Deus lhe dera.
Pode haver algo de mais diferente do “carola” que descrevemos linhas atrás?
Não é bem verdade que muita gente teria mais desejo de ser ardentemente católica se compreendesse que a Igreja não forma carolas, mas homens no esplendor da natureza elevada e dignificada pela graça?
Plinio Corrêa de Oliveira
Nossos leitores reconhecerão de pronto nos clichês que hoje publicamos, o traje típico da mucama baiana e a indumentária, também típica, de um elegante de botequim nos dias que correm: dois trajes populares entre os quais se pode estabelecer uma comparação.
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No traje da baiana, nascido das exigências da vida quotidiana, se refletem admiravelmente a índole, os dotes, o gênero de encanto próprio de uma raça, bem como as características de certo lugar e de certa época.
Em várias de nossas cidades, generalizou-se um tipo de elegante de botequim suburbano, com uma indumentária que é em suas linhas gerais a de nossos dias, mas com certos pormenores peculiares; calca comprida estreitando junto ao tornozelo; cós da calça quase à altura do coração; jaquetão excessivamente longo, chapéu de copa baixa e abas largas. Se o elegante é branco, usa o famoso penteado "rabo de pato". Se é preto alisou o cabelo em um "cabelisador". A mucama é o que é: com toda a razão sente-se digna e feliz. Nosso elegante, preto ou branco, procura aparentar um dinheiro e uma situação que não possui. O traje da mucama é a moldura de uma personalidade. O traje do elegante é a moldura de uma personalidade que não tem.
É que o traje da mucama nasceu de uma época em que a moda não estava padronizada para todos, e em que cada qual se sentia bem como estava.
E nosso pobre "elegante", louro, moreno ou negro, é filho de uma época em que a moda se estandardizou, e os trajes já não têm nenhuma relação com os indivíduos. De uma época em que ninguém vive satisfeito com o que é, e por isto vive de imitar. Qual a razão do ridículo de nosso elegante? Em última análise, em estado agudo, o ridículo inerente a toda a imitação.
Cunha Alvarenga
O "Syllabus" de Pio IX seria um documento de valor quase puramente histórico. As suas 80 proposições se refeririam a coisas absolutamente superadas, a ideias de que ninguém mais se lembra... Quando nele se condena a proposição segundo a qual "o Romano Pontífice pode e deve reconciliar-se e transigir com o progresso, com o liberalismo e a civilização moderna", isto era como que uma espécie de dobre de finados à "civilização moderna" que então morria. Extinta essa civilização, estariam vivendo a Igreja e a humanidade dias de ressurreição. É o que, em resumo, afirma o sr. João Camilo de Oliveira Torres em crônica que, sob o título de "A Ressurreição", aparece em "O Diário" de Belo Horizonte, de 16 de janeiro do corrente ano.
De modo que, de acordo com essa apreciação histórica, a Igreja e a humanidade não se achariam à véspera de uma Sexta-Feira Santa, mas de um Domingo de Páscoa. Os dias da Paixão teriam culminado com a Revolução Francesa e com o subsequente liberalismo, não passando o "Syllabus" do atestado de óbito dessa "civilização moderna" já irremediavelmente morta, o que equivale a dizer que suas proposições não se referem à nova ordem de coisas que começa a instaurar-se na sociedade de nossos dias.
Resta saber se é realmente esta a perspectiva oferecida pelos Soberanos Pontífices que governaram a Igreja nestes últimos tempos.
Comecemos por indagar o que foi, na verdade, objeto das condenações de Pio IX pelo célebre "Syllabus". Segundo resumo das subdivisões encontrado no próprio original, trata esse documento: — do panteísmo, naturalismo e racionalismo absoluto; — do racionalismo moderado; do indiferentismo e do latitudinarismo; — do socialismo, do comunismo, das sociedades clandestinas, das sociedades bíblicas, das sociedades clérico-liberais; dos erros contra a Igreja e Seus direitos; — dos erros sobre a sociedade civil, seja em si mesma, seja em suas relações com a Igreja; — dos erros sobre a moral natural e cristã; — dos erros sobre o matrimônio cristão; — dos erros sobre o poder temporal do Romano Pontífice e, finalmente, dos erros que se referem ao liberalismo de hoje.
Por esta simples enumeração, fica patente que nos achamos diante de erros que ainda perduram com toda a perniciosidade e até mais agravados na sociedade de nossos dias. Através da diversidade das correntes que os professam e dos diferentes aspetos de que se revestem esses variados erros, podemos entrever o caráter unitário de toda a trama. E nessa coesão de falsos princípios que caracterizam a "civilização moderna" na frase de Pio IX, releva notar o velho erro religioso do panteísmo, que seria de novo condenado pelos últimos Papas, sobretudo por Pio X, na "Pascendi", e por Pio XII, gloriosamente reinante, na "Mystici Corporis" e na "Mediator Dei". Erro religioso que é o ideal da grande conspiração que vem sendo urdida contra a Igreja e contra a Cristandade, e que se extravasa pelo campo social e político. Tanto o totalitarismo da direita, quanto o da esquerda são frutos monstruosos do panteísmo de Fichte, de Schelling, de Hegel. Tanto o "Todo Poderoso" de Hitler, quanto o materialismo histórico de Stalin se filiam à mesma entidade panteística.
Mas se por aí já se pode considerar o "Syllabus" como a condenação antecipada do totalitarismo moderno no que ele tem de mais profundamente mortífero e satânico, os próprios aspectos práticos de que se reveste o pan-Estado moderno, coletivista e tirânico, seriam citados e ferreteados nesse atualíssimo documento. Assim, o dogma da absoluta soberania do Estado, proposição não somente liberal, mas também e sobretudo totalitária, nele aparece da seguinte forma: — "O Estado, como Origem e fonte que é de todos os direitos, tem direito [poder da Igreja, e que tenha por único] sem limites" (Proposição 39). Nada para admirar, pois o liberalismo, na sua essência e não em seus acidentes, se acha no cerne do totalitarismo hodierno.
Com ponto de partida naquela proposição dos direitos ilimitados do Estado, governado pela vontade do povo e não pela razão, e por vontade do povo se há de entender, no sentido revolucionário, a vontade de uma "clique" de iniciados e aventureiros que tomam de assalto a direção da vida política dos povos pela demagogia e pela propaganda, ou mesmo por golpes armados que caracterizaram a implantação violenta dos regimes nascidos da Revolução Francesa, no mundo inteiro, — com ponto de partida na soberania absoluta do Estado, vêm, como consequência, as outras proposições com que o liberalismo haveria de lançar as bases do moderno Estado totalitário: — citemos, por exemplo, a preterição totalitária, segundo a qual "o poder eclesiástico não deve exercer sua autoridade sem a vênia e o assentimento do governo civil" (Proposição 20 do "Syllabus"). Se o Estado é a fonte de todos os direitos, daí também decorre que "a Igreja não tem um direito natural e legítimo de adquirir e possuir" (Proposição 26). E daí os modernos confiscos dos bens eclesiásticos, na Itália de Cavour, na França de Valdeck Rousseau, no México de Calles, na Espanha de Azaña e da "Passionaria", na Alemanha nazista, no império soviético de toda a Europa oriental e de vastíssimas porções da Ásia. E tanto, no mundo de hoje, quanto no de 1876, perdura o princípio liberal e totalitário de que "a imunidade da Igreja e das pessoas eclesiásticas nasceu do direito civil" (Proposição 30 do “Syllabus”). E tanto ao tempo dos bispos galicanos, quanto na época do "Cristianismo positivo" do 3º Reich, para não citar a farsa burlesca de um Salomão Ferraz, continua a exercer efeitos perniciosíssimos o falso princípio segundo o qual "podem estabelecer-se igrejas nacionais subtraídas e inteiramente separadas da autoridade do Romano Pontífice" (Proposição 37 elo "Syllabus").
Essa intervenção totalitária apanha também em suas malhas a família, a começar pelo ato que lhe dá legitimamente origem, que da altura de um Sacramento, entre cristãos, cai para a situação de mero contrato inteiramente sujeito ao poder do Estado: — "Por força do contrato meramente civil pode existir verdadeiro matrimônio entre cristãos; e é falso que o contrato matrimonial dos cristãos seja sempre sacramento ou que seja o próprio contrato nulo se não há sacramento" (Proposição 73). Mais ainda: — "O vínculo do matrimônio não é indissolúvel por direito natural, e em vários casos pode a autoridade civil sancionar o divorcio propriamente dito" (Proposição 67 do "Syllabus"). Quem será suficientemente temerário para dizer que em nossos dias tais proposições se acham ultrapassadas e superadas? Por acaso presenciamos a ressurreição da família e do Sacramento que lhe dá origem, com o repudio das uniões livres, do divórcio e de outros males que a corroem em sua estabilidade e santidade? E sobre o laicismo escolar, sobre o crescente monopólio educacional do Estado, será que nossos sentidos nos enganam e que por toda a parte presenciamos a ressurreição da escola como a deseja a Igreja, estando os católicos plenamente compenetrados de que não podem "aprovar um sistema de educação que esteja separado da Fé católica e do poder da Igreja, e que tenha por único objeto, ou ao menos principal, a ciência das coisas naturais e o que se limita à vida social deste mundo" (Proposição 48 do "Syllabus").
O coletivismo socialista, monstro que deita sua sombra ameaçadora sobre todo o orbe, cada vez mais destrói a instituição da família conforme a concebe e a modela a Igreja, para deixar diante do Esteado apenas os indivíduos desagregados em massa informe.
O panteísmo, diz Bossuet, não é outra coisa senão o ateísmo disfarçado. Eis porque esse erro, espraiando-se da órbita religiosa para o campo político e social, haveria de fazer de nossa época a quadra histórica do Cristianismo que presencia a ressurreição dos Estados policiados do paganismo, em que o poder civil é o soberano absoluto de todas as coisas, dissociado da Igreja, pois de acordo com a fórmula hoje prevalente praticamente em todos os países, é vivido o princípio errado segundo o qual "deve separar-se a Igreja do Estado e o Estado da Igreja" (Proposição 55 do "Syllabus). Em que pesem as estranhas ideias do sr. Maritain e de seu grupo sobre o moderno pluralismo, ou sobre as "mensagens mais ou menos fracas" das seitas separadas do seio da Igreja, é este o crime específico dos Estados modernos. Com efeito, diz o Cardeal Mercier, "o principal crime que o mundo expia neste momento, é a apostasia oficial dos Estados. Hoje, os homens investidos da missão de governar os povos são ou se mostram, com bem poucas exceções, oficialmente indiferentes a Deus e a Seu Cristo. Não hesito em proclamar que essa indiferença religiosa, que põe no mesmo pé a Religião de origem divina e as religiões de invenção humana para as envolver todas no mesmo ceticismo, é a blasfêmia que, mais ainda que as faltas dos indivíduos e das famílias, atrai sobre a sociedade o castigo de Deus" (Pastoral de 1918).
E não nos venham com disquisições eruditas sobre a tese e a hipótese, pois o próprio fato de vir à tona essa discussão demonstra os lamentáveis tempos em que nos encontramos e quão longe nos achamos da ressurreição da plena influência da Igreja na vida dos Estados.
Mas voltemos à perspectiva pontifícia e vejamos se, segundo ela, a Igreja e a sociedade estariam livres das trevas do liberalismo e dos tormentos da perseguição do Sinédrio, como resultado da condenação dos erros no "Syllabus" de Pio IX.
Certos escritores eivados de liberalismo
(continua na página seguinte)
J. de Azeredo Santos
Em nosso último rodapé fazíamos alusão à ameaça de intervenção estatal no campo da economia privada, mediante o plano de unificação da previdência social, que além de se propor cobrir por meio de seguros sociais todos os riscos normais da existência humana, estende sua ação sobre o campo econômico propriamente dito, mediante o fornecimento de casas, escolas, hospitais, gêneros alimentícios, medicamentos, etc., através dos institutos de previdência social, as chamadas autarquias do seguro social, unificadas por meio do Instituto dos Serviços Sociais do Brasil em um verdadeiro plano Beveridge tapuia, ainda em estado de hibernação, mas que periodicamente dá sinal de vida, pela publicação de levantamentos censitários do ponto de vista previdencial realizados em todo o território nacional.
Chamamos também a atenção de nossos leitores para a recente legislação federal em que essa ameaça se esboça em linhas mais acentuadas, pois por meio deles são criados organismos estatais destinados a realizar essa intervenção governamental no campo da economia privada, não só mediante o controle dos preços e da circulação das utilidades, mas também através da compra e venda de gêneros alimentícios e de vários outros bens de consumo, sob alegação de lutar contra a exagerada alta do custo da vida.
Ninguém em sã consciência pode combater a necessidade de sábias medidas no sentido de promover o bem estar social, sobretudo em uma época de desequilíbrio como a que atravessamos. Mas é esse mesmo desejo ardente de reconduzir a sociedade aos seus verdadeiros quadros que nos leva a ver com apreensão os rumos legislativos que estão sendo imprimidos à previdência e à segurança social não somente no Brasil, mas em vários outros países exteriores à cortina de ferro.
Dizíamos, na parte final de nosso último comentário, que somente éramos movidos pelo desejo de pugnar pela defesa da doutrina social católica, que não se coaduna com essas incursões socialistas e totalitárias. Convidamos, assim, os nossos leitores a meditarem conosco, a propósito deste importante tema, estas sábias palavras do Santo Padre Pio XII:
"Ouvem-se agora os homens empregar frequentemente esta expressão: segurança social. Se isto quer dizer precisamente segurança por meio da sociedade, tememos muito que o casamento e a família aí encontrem um dano. Que dano? Tememos, não somente que a sociedade civil se ocupe de uma coisa que, de si, é estranha às suas atribuições, mas também que o sentido da vida cristã e o próprio plano de sua organização sejam com isso feridos e mesmo golpeados de morte... Para os cristãos e, em geral, para todos que creem em Deus, a segurança social outra coisa não pode ser senão uma segurança em uma sociedade e com uma sociedade que considera a vida natural do homem e a origem e o desenvolvimento da família como o fundamento sobre o qual se apoia a própria sociedade para exercer regularmente e seguramente todos os seus encargos e obrigações."
"Em meio do período tão desastroso que acabamos de atravessar, a família, apesar dos múltiplos golpes que sofreu, mostrou de quanto poder de resistência se acha dotada. Ela possui, com efeito, nela própria, uma força inata, bem superior à de todas as outras instituições humanas. Eis porque, se se deseja trabalhar ativamente para a salvaguarda da sociedade humana, torna-se necessário nada negligenciar para salvar e amparar a família, e torná-la capaz de se defender a si própria..." (Alocução de 2 de novembro de 1950).
Como se vê, Pio XII considera essa segurança social, quando pertencente à órbita estatal e instrumento do providencialismo coletivista, como um organismo destinado a golpear de morte o sentido da vida cristã e o próprio plano de sua organização.
Com efeito, administrador do bem comum, do ponto de vista temporal, o Estado deve proteger e garantir os direitos individuais e coletivos. Em épocas excepcionais como a nossa, compreende-se mesmo que sua ação seja maior do que em períodos normais. Não se conclui daí, entretanto, que o Estado deva normal e definitivamente prover a tudo em todos os domínios da atividade humana. Pelo contrário, não deve ele substituir-se à livre iniciativa de seus súbditos, permanecendo sempre em vigor o sábio principio da subsidiariedade, segundo o qual no que uma sociedade mais simples, ou menor, pode fazer, a mais complexa, ou maior, lhe deve deixar livre campo. Trata-se de uma lei de economia social, que se acha no próprio plano da organização natural da sociedade humana, realidade complexa que escapa àqueles que se deixam guiar geometricamente pelos falsos cânones de uma eficiência e dê uma técnica puramente mecanicistas.
E assim como o Estado procede ilícita e injustamente quando estabelece, como na Alemanha nazista ou na Rússia soviética, o monopólio da educação da mocidade, usurpando os direitos da família, do mesmo modo age totalitariamente quando pretende substituir por uma pan-corporação estatal os vários órgãos associativos de iniciativa privada, e outras entidades destinadas a promover e realizar os variados misteres peculiares às variadas classes e profissões, bem como a previdência e a assistência social que a estas são próprias.
Isto sem falar no ponto mais importante, frisado pelo Santo Padre Pio XII, que é a própria família considerada como célula social e econômica capaz de se defender a si própria, liberta, portanto, das filas do racionamento estatal, da escola leiga obrigatória, do serviço médico burocratizado e compulsório de direito ou de fato, dos conjuntos residenciais puramente de aluguel e pertencentes ao Estado, e da estandardização do próprio lazer com as colônias de férias coletivas...
A segurança social deve brotar da própria vida social apoiada na vida natural do homem no seio das famílias. É nesse desenvolvimento orgânico da família que se deve apoiar a sociedade para o exercício regular e seguro de todos os seus encargos e obrigações. Deve, portanto, o Estado promover medidas gerais no sentido de tornar as famílias livres e não escravas da administração pública, mediante o acesso à propriedade privada e ao livre florescer de todas as suas atividades honestas, inclusive as econômicas, ao contrário dos entraves administrativos e fiscais que são a nossa crescente tragédia de todos os dias.
Ademais, não somente em sua vida moral e cultural, mas até mesmo em sua vida econômica e administrativa, a sociedade humana necessita de tradições, isto é, da transmissão viva das experiências adquiridas. O saber, a cultura de um povo não se improvisam. E a instituição social mais apropriada para o cultivo de sãs tradições é a família, mesmo porque é ela, como bem acentua Pio XII, que mais perdura, devido à sua superior força inata, nos embates e vicissitudes por que passa a sociedade humana.
Infelizmente não são poucos os entraves existentes, que dificultam enormemente o verdadeiro papel da família na vida social. Quem fala em sociedade, levanta forçosamente, de modo direto ou indireto, a questão da autoridade, pois não se concebe sociedade sem autoridade.
E a família é uma sociedade com uma hierarquia natural, à frente da qual se acha o pai, que é o chefe nato do grupo familiar. Se o desenvolvimento da família deve ser o fundamento sobre o qual se há de apoiar a própria sociedade para exercer regularmente e seguramente todos os seus encargos e obrigações, é bem de ver que a autoridade em um tal conglomerado orgânico de famílias há de exercer-se com o amor e a naturalidade do tratamento de pai para filhos. Se se despreza essa hierarquia social que se baseia no próprio plano da organização natural da sociedade humana, ou esse conceito paternal da superioridade social, cai-se em sua caricatura, que é o "paternalismo" do Estado coletivista ou da horda, como está acontecendo com a sociedade contemporânea. A denominação de "Pai" que as massas embrutecidas dão a Stalin e a outros ditadores é bem um indicio desse desvio, desse masoquismo de uma sociedade paganizada que prefere beijar a vara de ferro daqueles que a conduzem como um rebanho de animais, a aceitar a superioridade social derivada do desenvolvimento normal e livre das famílias.
Pelo contrário, o "paternalismo" que devemos combater é esse que quer tirar às famílias as suas atribuições próprias, e inclusive e principalmente as de seu chefe natural. Com efeito, o pai de família é que incumbe prover às necessidades do grupo familiar, e não ao Estado.
O papel supletivo, de que tanto se fala e abusa hoje em dia, e que somente se impõe quando a família de fato não puder prover a si própria, cabe em primeiro lugar ao grupo profissional e às demais instituições de órbita privada que a cercam. Somente depois de esgotados esses recursos no próprio âmbito da vida familiar e social, e em casos extremos de necessidade social, é que se justifica a intervenção direta do Estado nesses problemas, e de preferência em caráter transitório, pois o normal é que a família, é que a sociedade caminhem por suas próprias pernas.
A linguagem dos documentos pontifícios é clara neste sentido. Mas aos poucos a opinião pública vai sendo trabalhada pela política do fato consumado. Inventam-se necessidades da época, faz-se anelo a uma hipotética evolução da conjuntura econômica e social, quando o fato que não escapa aos observadores perspicazes é que essa mesma gradativa intervenção estatal na vida econômica e social dos povos é um dos mais poderosos instrumentos tendentes a agravar os problemas de nossa época, pois com esse artificialismo jurídico e administrativo vão sendo lentamente golpeados de morte o sentido da vida cristã e o próprio plano de sua organização, criando a confusão pela colisão dessas medidas umas contra as outras, agravados os nossos males pela cupidez e pela corrupção que avassala todos os quadrantes da vida publica, constituindo um triste exemplo que se espraia de alto para baixo na vida social.
A impressão que causa o Estado moderno, totalitário ou em vias de o ser, é de uma oligarquia de algumas dezenas de aproveitadores de leis e decretos, para os quais trabalha e luta todo um rebanho de milhões de escravos.