P.04-05

AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES

Heresiarcas de hoje e de outrora

Plinio Corrêa de Oliveira

O ângulo de visão doutrinário em que nos situamos no confronto de hoje é o de Leão XIII em sua profunda e luminosa Encíclica sobre a História, intitulada "Parvenu à la vingt cinquième année".

Ensina o grande Pontífice que todo o progresso do Ocidente cristão jamais teria existido sem a ação sobrenatural da Igreja. Foi Ela que elevou a humanidade ao alto nível moral que atingiu na Idade Media; foi Ela que ensinou aos povos os princípios da sabedoria política e social de que decorreu o aparecimento da civilização justamente dita cristã; foi em Seu regaço que a teologia, a filosofia, as artes e a vida de sociedade floresceram.

A eclosão do protestantismo no século XVI representou a primeira revolta vitoriosa da humanidade contra a Igreja de Deus. A Igreja prega a submissão da razão à Fé; a subordinação do povo fiel à Hierarquia Sagrada; a pureza dos costumes em sua forma mais sublime, isto é o casamento monogâmico e indissolúvel e a castidade perfeita para os que não vivem no estado de casados. O protestantismo ensinou a escravização da Fé à razão, do governo eclesiástico ao povo, aboliu o celibato dos clérigos e instaurou o divórcio. A Revolução francesa foi, no séc. XVIII, o prolongamento do protestantismo. Proscreveu todos os cultos, proclamou a soberania da razão, estendeu o divórcio aos países católicos, e colocou todos os poderes civis na dependência do povo soberano, precisamente como o protestantismo colocara na dependência do povo os órgãos de direção eclesiástica. O comunismo é, nos séc. XIX e XX o prolongamento e o paroxismo desta tendência: igualdade absoluta até no terreno econômico, ateísmo radical, amor livre. Em suma, três revoluções que são apenas três etapas na marcha do mundo para um abismo profundo.

* * *

Como é natural, estas sucessivas catástrofes foram produzindo gradualmente seus efeitos nos ambientes, nos costumes, em todo o transformar-se da civilização. As heresias e os heresiarcas, considerados em ordem cronológica, foram sendo cada vez mais depravados de alma ou de corpo, mais escandalosos, piores. É que à medida que c processo de decomposição se acentua, mais ativos se tornam seus sintomas. E à medida que a impiedade se torna ou se supõe mais estável em seu triunfo, tanto mais livremente vai mostrando sua verdadeira fisionomia.

Aqui temos, pelo pincel de Lucas Cranach Senior, um grupo de homens com toda a aparência exterior da gravidade, da compostura, do recolhimento: da esquerda para a direita, Lutero, João Ecolampadio, Frederico o Magnânimo, Eleitor da Saxônia, Zwinglio e Melanchton, ou seja, os homens que inundaram de sensualidade a Alemanha, a Suíça, o mundo. Mas ainda havia entre os próprios hereges resíduos de moralidade, remanescentes de influência católica: o povo não seguiria lideres religiosos que não conservassem algumas aparências de recolhimento e gravidade.

Estes resíduos de influência católica ao que estão reduzidos atualmente, em certos ambientes? Praticamente a zero. E o espírito dos heresiarcas - que é o mesmo em todos os séculos e para todas as doutrinas - se mostra hoje muito mais cinicamente à luz do sol.

Nosso outro clichê mostra um heresiarca do século XX, o famoso "Father divine", que obtém os sufrágios entusiásticos do povinho miúdo de nossos dias, como os obtinha do povinho de seu tempo o demagogo astuto que foi Lutero. O rosto do FATHER DIVINE resplandece da alegria de viver. Todo seu corpo parece saturado de bem-estar. Sua jovem e alva noiva dá idêntica impressão.

É que o espírito de revolta da sensualidade vivia a medo e às ocultas no séc. XVI. E no séc. XX tão grande é sua vitória, que se mostra sem rebuços. A fé, a pureza, estas, infelizmente, se imaginam na contingência de viver às ocultas...


CAMPANHA ANTICOMUNISTA NA RÚSSIA

Tomou novo impulso recentemente a propaganda dos russos anticomunistas na Alemanha Oriental. Assim, já mais de uma vez desconhecidos colocaram sub-repticiamente na parte traseira do automóvel de algum oficial soviético, estacionado a um canto de rua, um papel com o apelo: "Levemos a morte aos tiranos! Libertemos os trabalhadores!” e, bem visível, o tridente, símbolo dos anticomunistas russos. O carro ia conduzindo o manifesto até que caísse sob as vistas de algum policial.

Folhas com semelhantes dizeres também foram encontradas ultimamente no campo soviético de exercícios em Letzlinger Heide, no campo de tiro da artilharia soviética perto de Königsbrücks, e na grande caserna “Heiderand", em Halle. Para impedir a continuação desta propaganda, a autoridade soviética mandou instalar, em fins de novembro, poderosos refletores para iluminar os campos durante a noite.

Mais expressiva vitória dos anticomunistas russos foi, entretanto, o aparecimento de tais boletins em Leningrado, e depois em Moscou nos edifícios ainda em obras da nova universidade. Este fato é considerado de grande importância visto que tomam parte nos trabalhos dessa construção, além de operários profissionais, também estudantes que, cursando a universidade, dedicam "voluntariamente" dois ou três dias da semana a tal mister. Há razão, portanto, para acreditar que o apelo da organização dos russos antissoviéticos tenha chegado ao conhecimento não só dos operários, mas também dos estudantes.

Na Alemanha oriental a propaganda anticomunista está se estendendo por todas as guarnições militares, bem como se faz sentir nos trens que partem para a Polônia.


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

Vacilações e queda de um grande líder

Fernando Furquim de Almeida

De ascendência inglesa e educado pelo avô materno, que era protestante e profundamente infectado de liberalismo, Montalembert concebera a ilusão de que o ultramontanismo, de que era adepto sincero e fervoroso, fosse conciliável com os fermentos de liberdade que sua educação lhe introduzira na mentalidade. Aristocrata até a medula dos ossos, não podia aceitar a democracia de Lacordaire nem a república de Lamennais. Mas o que correspondia a todas as suas aspirações era o programa de governo que "L’Avenir" lançara através de uma série de artigos publicados em 1831. Realmente esse programa conservava muita coisa dos tempos áureos de Lamennais, o que não é de se estranhar, de vez que, embora bastante revolucionário, o jornal era cauteloso ao expor seus planos de reforma.

Em resumo, a monarquia seria conservada, mas controlada pela elite do país, cuja formação obedeceria a um critério mais de acordo com a Revolução. Seriam abolidos os departamentos, e a França novamente dividida em províncias e comunas, divisão esta mais natural e mais consentânea com as realidades geográficas e sociais. Os habitantes de cada comuna elegeriam o conselho de notáveis, isto é, um conselho formado pelos concidadãos mais honestos, esclarecidos e aptos para governá-los. Esse conselho, que seria presidido por um comissário real, ocupar-se-ia da administração da comuna.

Os notáveis das comunas elegeriam por sua vez os notáveis das províncias, os quais delegariam seus poderes a uma comissão que, também sob a presidência de um comissário real, governaria a província. De seis em seis meses os notáveis de cada província reunir-se-iam para traçar as diretrizes do governo provincial. Os comissários reais teriam uma função moderadora. Assegurariam a execução das leis e coibiriam abusos dos notáveis contra o povo que os elegera.

O poder central seria legislativo e executivo. O legislativo teria duas câmaras: uma, a dos comuns, eleita pelos notáveis das comunas; a outra, o senado, pelos notáveis das províncias. O poder executivo, exercido pelo rei, nomearia os comissários reais, disporia do exército e da marinha e trataria, com exclusão de qualquer outro órgão, da política exterior.

Montalembert imaginava que se o Catolicismo francês abandonasse inteiramente o galicanismo, se voltasse a ser ensinada em toda a sua pureza a doutrina católica e se a aristocracia sacudisse o torpor a que estava entregue, os notáveis escolhidos seriam naturalmente os católicos e os aristocratas, tão logo fosse instaurado o governo preconizado por "L’Avenir". E bastaria que eles não falhassem à sua missão, que a França estaria salva.

Durante o reinado de Luís Felipe, Montalembert se dedicou entusiasticamente à tarefa de reerguer os católicos e a nobreza. Par do reino e chefe incontestável do Partido Católico, sua obra foi de tal porte, sua atuação tão magnífica e seu ultramontanismo tão sincero, que depois de sua defecção em benefício dos católicos liberais nenhum dos líderes ultramontanos — como Monsenhor Pie, D. Guéranger e Luiz Veuillot — se referia a ele senão com a tristeza que causa uma grande perda.

Foi a revolução de 1848 o início da derrocada de Montalembert. Acreditava de tal forma que a liberdade viria como ele a sonhava, que o estabelecimento da república o lançou no desalento. Já vimos o seu encontro com Luís Veuillot, e como este procurou animá-lo para que não abandonasse a luta. Nada reflete melhor o seu estado de espírito do que as cartas que nessa época escreveu ao grande restaurador da Congregação Beneditina francesa, D. Guéranger, Abade de Solesmes, então seu amigo e confidente.

Tendo-o D. Guéranger cumprimentado por sua eleição para a Câmara dos Deputados, Montalembert responde nos seguintes termos:

"Meu amigo, plenus sum sermonibus, e isso há três meses e todas as vezes que penso no Sr. Tenho muito que lhe dizer, e sucumbo com o peso de tudo que desejaria derramar no seu coração de monge e amigo. É forçoso que o Sr. tenha compreendido muito mal a revolução de fevereiro, para ter podido desejar a minha eleição. Quanto a mim, fiquei desolado desde o início, e cada vez mais me desalento quando contemplo a Assembleia e a situação. Não há nada, absolutamente nada, que eu possa fazer no meio dessa horrorosa e vergonhosa débacle. No fundo não sou um homem de luta nem de revolução; sou um homem de estudo, e se necessário, de reconstrução. Meu tempo já passou; minha carreira está encerrada. Nada mais tenho a fazer senão mergulhar-me num retiro, se o mundo ainda o permitir, e lá fazer, desfazer e refazer o meu "Monasticon". É possível que suba à tribuna da Câmara, mas será com a convicção de sofrer um fracasso bem mais triste que o do Padre Lacordaire.

"Veja, meu amigo, nada mais está de pé neste país. Ei-lo julgado, e julgado por esse famoso sufrágio universal. Acreditei de boa fé na transação, tentada pela restauração e pela monarquia de julho, entre o passado e o futuro, entre o bom senso e a loucura. Agora tudo está destruído, e temo que nada mais seja possível. Pode ser que o excesso do mal e a ruína material tragam uma aparência de reação monarquista. Mas não é daí que pode surgir uma regeneração moral e intelectual. Acho que rolaremos gradualmente até o fundo do abismo, onde nos esperam os gregos do Baixo Império, a Ásia Menor, a África e as repúblicas espanholas da América.

"Resta a Igreja. Sim — como diz o Sr. tão bem — amo e aprecio mais do que nunca esta pátria imperecível que não nos será roubada. Mas estou alarmado com o clero. Não viu os discursos de certos curas de Paris, que qualificam Nosso Senhor Jesus Cristo de "divino republicano"? É sempre o mesmo espírito de adoração servil da força leiga e do poder vencedor. Infelizmente o espírito galicano se complicou e se envenenou com as tendências demagógicas, que infeccionaram o clero até um grau que eu não podia suspeitar. Entretanto, espero e creio que a Igreja sairá triunfante dessa nova prova.

"E o Sr. e esse pusillus grex de Solesmes, como podem resistir a tal tempestade? E Pio IX? Não, na verdade tenho muita coisa a lhe dizer, e nunca poderei fazê-lo. Peço somente que reze muito por mim e me escreva tantas vezes quantas puder. Não pode imaginar a que grau de abatimento estou reduzido. É absolutamente necessário que eu troque de divisa ("ne peur, ne espoir"), porque tenho um medo excessivo do futuro e estou completamente sem coragem. Minha mulher é muito mais corajosa do que eu. Em breve seremos todos varridos pelos comunistas ou pela ditadura. Adeus, meu amigo, saiba que conto mais do que nunca com sua afeição, e que mais do que nunca tenho dela necessidade".

D. Guéranger não deixou de animar o amigo. Lembrou-lhe sua atuação, sua vocação de apóstolo, a necessidade que tinha a Igreja de seu concurso, de sua influência sempre crescente, enfim procurou levantar de todos os modos o moral de Montalembert. Daí esta carta a D. Guéranger, que fazia prever um maravilhoso retorno do grande líder ao ultramontanismo:

"Eu não pensei em tudo isso (carreira, influência, etc.) quando em 1830 entrei na liça para defender a Igreja e a verdadeira liberdade. Hoje, não quero mais pensar nessas coisas. Nunca tive senão uma finalidade: servir e professar a verdade a expensas de minha ambição, de meus interesses, de meus próprios gostos. Tanto quanto em 1830, não separo a verdade da liberdade, mas sei hoje o que então não sabia: que a liberdade — a verdadeira, a santa liberdade, a liberdade do bem, a única que a Igreja autoriza e defende — é incompatível com a democracia, com a revolução, em uma palavra, com o espírito moderno".

Infelizmente, porém, surge nesse momento o Padre Dupanloup com a célebre distinção entre a hipótese e a tese, e Montalembert prefere aos conselhos de D. Guéranger a tutela do futuro Bispo de Orléans. O campeão do ultramontanismo francês, seu verdadeiro chefe até 1848, será daí por diante um soldado do "catolicismo liberal", até morrer ingloriamente em 1870, chamando o Papa de ídolo do Vaticano.


NOVA ET VETERA

Revolucionários em profundidade

J. de Azeredo Santos

A "Cidade fraternal" do sr. Jacques Maritain é uma Sociedade composta por criaturas na orfandade ou de pais desconhecidos. Com efeito, não tem sentido a noção de fraternidade, se se exclui a correspondente noção de paternidade. Ora, numa sociedade pluralista, composta por crentes e descrentes, reunidos em grupo político que não reconhece a Deus por Pai, em nome de que entidade ou princípio se invoca essa noção de fraternidade?

Um símile imperfeito

Tal prevenção contra a paternidade é mesmo uma ideia fixa do autor de “Humanismo Integral” levada até ao campo da autoridade. Diz ele: — "Pode-se dizer que essa concepção da autoridade tem seu tipo não mais no regime beneditino, mas, antes, no regime dominicano. A Ordem dos Pregadores se acha no seio dos tempos modernos como a Ordem Beneditina se achava no seio da Idade Média: uma sociedade de irmãos, em que um deles é escolhido como chefe pelos outros" ("Humanisme Integral", pag. 214). Ora, acontece que o símile não é perfeito, pois se trata de uma Ordem religiosa, que reconhece plenamente a Paternidade Divina e todas as consequências que Dela dimanam no que diz respeito à autoridade. Pode variar em seus acidentes a escolha da autoridade na Ordem Beneditina e na Ordem Dominicana não, porém, em sua essência. Em ambos os casos a autoridade é, exercida como reflexo da Autoridade Divina, pois todo o poder vem de Deus, sobretudo quando se trata do campo sobrenatural. A este respeito nos devemos lembrar que cabe ao Representante de Deus na terra os títulos de "Patriarca universal", de "Pai dos pais" e de "Pai comum da Cristandade", para somente citar alguns.

Mas o mesmo podemos dizer do campo temporal. Nascem os homens no seio das famílias, onde existe uma hierarquia natural, a cuja frente se encontra a figura do pai. E a sociedade humana não passa de um conglomerado hierárquico de famílias, onde a autoridade se exerce através dos respectivos chefes.

Um direito natural doméstico

Ora, pressuposta a desigualdade natural dos homens, e portanto também das famílias, e tendo em vista a impossibilidade de as famílias desempenharem sozinhas suas variadas tarefas, nada mais justo e lícito que, por razão de recíproca utilidade, elas se ajudarem umas às outras. Eis porque diz Llovera que "ainda que criado por um contrato voluntário, se funda o famulato em uma necessidade social e, de certo modo, pode dizer-se que é uma instituição de direito natural doméstico" (Llovera, Sociologia, pag. 74).

Que nos diz, porém, Maritain Sobre o assunto? Falando a propósito do "direito de cada ser humano à liberdade pessoal, ou direito de dirigir sua própria vida como senhor de si mesmo, responsável perante Deus e perante a lei da cidade", afirma que esse direito não é somente oposto à escravidão propriamente dita, mas "comporta além disso uma aspiração ou um anseio oposto à servidão entendida em seu sentido mais geral, isto é, a essa forma de autoridade do homem sobre o homem, na qual aquele que é dirigido não o é no sentido do bem comum, pelo chefe encarregado desse trabalho, porém ao serviço do bem particular daquele que o dirige, alienando assim sua atividade e cedendo a outrem o bem (o fruto de sua atividade) que deveria ser seu; por outras palavras, tornando-se assim o órgão de outra pessoa" ("Os direitos do homem", pag. 138 e 139). E mais adiante: "O progresso contrariado da humanidade segue o sentido da emancipação humana, não somente na ordem política, mas também na ordem econômica e social, de tal maneira que as diversas formas de servidão, pelas quais um homem está ao serviço de outro para o bem particular deste, e como um órgão seu, sejam pouco a pouco abolidas à medida que a historia humana se aproxima de seu termo. O que supõe não somente a passagem a melhores estados de organização, mas também a passagem a uma consciência melhor da dignidade da pessoa humana em cada um de nós, e da primazia do amor fraternal entre todos os valores de nossa vida. Assim avançamos para a conquista da liberdade" (Obra cit., pag. 141 e 142).

O poder mágico do coletivismo

Como se vê, Maritain é contra a prestação de serviços domésticos ou individuais, considerando o serviço que uma criatura humana presta a outra para o bem particular desta como qualquer coisa de odioso e contrário à plena dignidade e liberdade da pessoa humana.

Para o maritainismo o coletivismo, ou o número, opera transformações prodigiosas. Tem-se que trabalhar para o bem comum e não para o bem particular de determinada pessoa, como se o bem comum não fosse a integração dos bens particulares dos componentes da sociedade humana. Assim, por exemplo, cozinhar ou costurar ou lavrar a terra em regime de salariado, ou de famulato, para determinada pessoa, constitui uma diminuição da dignidade e da liberdade da pessoa humana. Se se trabalha em uma cozinha coletiva, em cantinas-monstros, ou em ateliers de roupas pré-fabricadas, ou em fazendas sob o regime da copropriedade, então, como por encanto, entra a pessoa humana na plenitude da dignidade e da liberdade, tanto mais dignas e tanto mais livres quanto maior for o número daqueles para os quais cozinhamos, ou costuramos ou lavramos a terra...

Vejamos, porém, as transformações por que passa essa doutrinação social do sr. Maritain na ação prática de seus discípulos. Recentemente dizia o sr. Gustavo Corção, após frisar como o uso do uniforme e do avental fora da copa e da cozinha são marcas de servidão de tempos menos livres e menos dignos: — "Ainda nessa mesma linha nós devemos tomar consciência da seguinte colocação: a empregada não deve ser considerada como afetada ao serviço das pessoas e sim ao serviço da família. O capricho, a instabilidade de diretivas, as ordens personalíssimas, os serviços também de caráter pessoal, devem ser banidos de um lar verdadeiramente cristão".

"A empregada não deve ser usada para ajudar a patroa a vestir-se. A empregada não deve ser usada para trazer a bandeja de café na cama, salvo o caso de doença grave. A empregada não deve ser chamada para trazer o copo d’água, salvo em caso de paralisia. A empregada não deve ter as horas de serviço aumentadas para que os patrões se divirtam" (do artigo "Missionárias em profundidade", publicado em "O Diário" de Belo Horizonte, de 9 de fevereiro de 1952).

Mero jogo de palavras

Segue, portanto, o sr. Corção as pegadas de Maritain, mas não se situa rigorosamente dentro da linha justa do maritainismo, pois acha "razoável que a humanidade mais rústica nos cozinhe a comida e nos lave a roupa". Quando a cozinheira nos cozinha a comida e quando a lavadeira nos lava a roupa, estão ambas prestando serviço diretamente para nosso bem particular e não para o bem comum. E qual a razão disso? O próprio sr. Corção muito bem a expõe, com argumentos contrários à posição do sr. Maritain: "Qual é o motivo que fundamenta o nosso direito de ter uma cozinheira? É este: o de nos sobrar tempo para uma tarefa mais alta de que a própria cozinheira beneficie" (artigo citado). De modo que o criado de quarto de um ministro de Estado presta diretamente um serviço destinado ao bem particular do ministro de Estado e somente indiretamente ao bem comum, enquanto facilita de certo modo a tarefa mais alta de que o próprio criado de quarto se beneficia.

Só temos palavras de louvor para o que o sr. Corção diz no sentido de se prestar atenção não somente às necessidades materiais dos empregados domésticos, mas também e sobretudo às suas necessidades morais. Não é o empregado doméstico um simples traste que se usa em troca de uma remuneração material, mas criatura humana feita à imagem e semelhança de Deus, a quem, portanto, devemos amar como a nós mesmos. E foi a aceitação plena do ideal cristão de vida que acarretou o aparecimento da instituição do famulato, passando os membros da família que presta serviços a serem considerados como "criados", como alguém que nasce e se educa sob o mesmo teto.

Mas embora tal instituição nasça no seio das famílias, e se destine ao bem comum da sociedade doméstica, é mero jogo de palavras dizer-se que os serviços devem ser prestados àquelas e não às pessoas individualmente consideradas. Tanto no caso do famulato, quanto no caso do regime de empregados salariados, que hoje prevalece, os serviços são prestados aos elementos componentes da família, ao pai, à mãe, aos filhos, aos demais parentes e agregados, cada um com necessidades peculiares que devem ser atendidas pessoalmente.

O exemplo da Santa Igreja

E que mal há em que se peça um copo de água à criada, ou que esta ajude a patroa a vestir-se, quando a posição social desta o requeira? Se o autor das "Lições de abismo" tem predileção por determinado prato, que o resto da família abomina, será diminuir a dignidade ou a liberdade de sua cozinheira pedir-lhe que satisfaça o seu gosto personalíssimo? Ou achará mais consentâneo com a dignidade e com a liberdade da discípula de Vatel, empunhar ele mesmo a caçarola e resolver o caso por suas próprias mãos, para prejuízo de seus leitores?

Vejamos o exemplo que nos dá a Santa Igreja. Os gentis-homens, os camareiros dos príncipes da Igreja lhes prestam serviços personalíssimos. Dir-se-á que se trata da dignidade do cargo e não das pessoas. Mas, guardadas as devidas proporções, e dada a desigualdade da sociedade humana, é o que também acontece nos diferentes graus da hierarquia social. Ainda não há muito tempo meditávamos sobre este tema, ao vermos, na cerimônia da sagração de um Bispo, um Príncipe de sangue real, desempenhando o papel de padrinho, carregar o jarro de água e a toalha para o uso personalíssimo daquele que então era elevado à plenitude do sacerdócio.

Respeitemos nossos superiores e inferiores

Na urgente e necessária tarefa de cuidar com desvelo dos interesses morais de nossos serviçais, não devemos, portanto, por lenha na fogueira revolucionaria que insufla nas classes inferiores o sentimento de revolta contra toda e qualquer superioridade social. Si quisermos ser missionários em profundidade e não revolucionários em profundidade devemos ensinar que todo trabalho é digno se se destina um fim honesto e que a desigualdade de condição requer o exercício da virtude da obediência e a humildade. A humildade é a verdade, diz Santa Terezinha. Reconhecendo sincera e humildemente a nossa posição social, prestemos ao nosso próximo o serviço que ele tem direito de receber de nós, por jurisdição ou deferência, e por pessoal que seja. Não é o Vigário de Cristo na terra o "Servo dos servos de Deus"? Respeitemos tanto os nossos superiores quanto os nossos inferiores, eis uma das condições indispensáveis para a harmonia social.