Cunha Alvarenga
Em vez de pugnar por uma antinatural igualdade econômica, devemos professar o desapego evangélico das riquezas, delas usando para o bem.
Ao ensejo da festa litúrgica de São Tomás Morus, que a Igreja celebra a 6 de julho, queremos abordar o seguinte tema de palpitante atualidade: — qual seria o verdadeiro pensamento do grande Chanceler de Henrique VIII no que diz respeito ao problema da riqueza?
Torna-se oportuna essa indagação na época confusa em que vivemos, pois não somente os adeptos declarados de diferentes escolas socialistas, mas mesmo alguns intelectuais católicos costumam apresentar a célebre "Utopia" como a expressão definitiva do pensamento desse Santo no campo político-social.
Certos historiadores protestantes baseados sobretudo nesse livro, publicado pela primeira vez em 1516, portanto dezenove anos antes da morte do autor, procuram fazer de São Tomás Morus um verdadeiro reformador, no sentido luterano da palavra, apresentando-o como um espírito liberal, apóstolo da tolerância, que colocava lado a lado a ciência e a Religião.
Para tais historiadores, somente para o fim de sua vida é que São Tomas Morus se teria tornado ferrenhamente ortodoxo e intolerante, tanto em seus escritos quanto em suas relações com os hereges.
À vista dos graves erros contidos na "Utopia", se as ideias ali expostas forem tomadas ao pé da letra, também concorrem para reforçar a tese dos tais historiadores protestantes, quanto a um revigorar da ortodoxia no fim da vida de São Tomás Morus, aqueles que querem ver nesse livro a base de uma ordem social, não no mero campo da fantasia e da ficção, mas no terreno das realidades práticas, de tal modo que estaria no pensamento de seu autor propor uma verdadeira reforma da vida política e social da humanidade.
Assim, do lado católico podemos citar o sr. Alceu de Amoroso Lima, por exemplo, que considera a "Utopia' como a "Bíblia social da Idade Nova", com esta vaga advertência:
- "Seu livro (de Morus) deve ser lido cum grano salis. Nem todas as teorias, nele incluídas, devem ser aceitas. Algumas foram formalmente condenadas pela Igreja. Em linhas gerais, porém, é a base de uma ordens social baseada (sic) na justiça e no amor, como deve ser toda ordem social verdadeira" (Introdução ao livro "A Igreja e o Novo Mundo").
Outros vão mais além, e vêm em São Tomás Morus um propugnador do comunismo integral, ao lado de Platão e de Campanela. Mas não são apenas escritores acatólicos, como Max Beer, que arrolam esse grande Santo entre os teóricos do socialismo hodierno. Também filhos da Igreja, como o sr. Jacques Maritain, aumentam a confusão com afirmações do teor seguinte:
- "Entre os elementos originários do comunismo, há também elementos cristãos. S. Tomás Morus tinha ideias comunistas" ("Humanisme Intégral", p. 49).
Ora, se na realidade São Tomás Morus pretendia, pela "Utopia", fazer uma apologia do comunismo, e sendo esta doutrina político-social condenada pela Igreja que em 1935 o elevou à honra dos altares, podemos presumir que só uma posterior conversão explicaria tal canonização.
Mas não precisamos apelar para semelhante raciocínio. Basta que atentemos para o seguinte fato: será lícito tomar como o pensamento definitivo de um Santo as ideias expostas em um romance ou sátira, em que é difícil separar convicções de fantasias ou mesmo de simples pilhérias? De modo que a mais elementar honestidade na crítica literária nos manda, mormente em se tratando de um Santo, que pesquisemos seu verdadeiro pensamento não em uma obra isolada, sobretudo quando esta é de simples ficção, mas também em outras fontes, de preferência localizadas na fase em que sua atividade intelectual haja adquirido plena maturidade.
Ora, como sabemos, São Tomás Morus sofreu o martírio pela fé a 6 de julho de 1535. Seu maior livro, "The Confutation", foi iniciado em 1532, quando ainda Lorde Chanceler, e terminado em 1533 após haver se demitido do cargo.
Desse grande livro de controvérsia disse o Dr. James Gairdner, historiador não-católico, que a intenção de More ao escrevê-lo "foi a de preservar a ordem católica de vida como havia há muito existido na Cristandade Europeia" ("Lollardy and the Reformation in England", vol. 1., p. 508/509). Combate acirrada e minuciosamente a heresia protestante, então nascente, e uma de suas principais afirmações em tal obra é que "a ordem social e moral somente pode encontrar uma base duradoura na certeza religiosa, tal como Deus proporcionou a todos cristãos na conhecida Igreja Católica de Cristo" (ver estudo de W. E. Campbell, "St. Thomas More's longest Book", em "The Dublin Review", n° 446).
Por aí vemos a que frangalhos ficam reduzidos os argumentos dos que querem fazer desse atleta da Fé um precursor do interconfessionalismo liberal dos tempos modernos.
Mas nosso propósito principal, neste estudo, é analisar o verdadeiro pensamento de São Tomás Morus em relação ao problema da riqueza ou da distribuição dos bens deste mundo.
Tratou São Tomás Morus exaustivamente do assunto em uma obra que pode ser considerada como seu público exame de consciência e testamento literário: o "Dyalogue of Comforte agaynste Tribulation", seu último livro. Escreveu-o na prisão, durante os quatorze meses que precederam sua morte pela Fé.
Como em todos os regimes discricionários, então a verdade tinha que ser dita por meio de parábolas. De modo que São Tomás Morus expõe o resultado de suas profundas meditações na forma de um diálogo entre dois húngaros, Antonio e seu sobrinho Vicente, que discutem a ameaça de invasão dos turcos, armando-se mutuamente de tranquilidade e fortaleza contra a eminente catástrofe.
É evidente que o Grão Turco, que várias vezes aparece no diálogo, não é outro senão Henrique VIII, como se pode depreender da seguinte observação: "Não há, sob o céu, Turco tão cruel para o povo cristão quanto um falso cristão que cai de sua Fé".
No primeiro livro do conforto contra a tribulação, mostra o tio ao sobrinho como nos devemos alegrar com a tribulação com que Deus nos visita, o que procura demonstrar pela grande razão de temor que a fortuna continuada deve causar aos que a gozam neste mundo sem nenhum entrave. Ao que o sobrinho replica dando vários exemplos de homens prósperos e ricos que gozaram do favor de Deus, entre os quais Abraão, que foi homem de grande riqueza e prosperidade terrena. "Entretanto, diz ele, Abraão foi para tão alto que Lázaro, que morreu na tribulação e na miséria, o melhor lugar que encontrou para repousar no céu foi no seio daquele homem rico".
A isso o tio responde: "Nem eu disse, meu sobrinho, ou tencionei dizer que por uma indubitável regra a prosperidade terrena fosse sempre desagradável a Deus, ou a tribulação sempre saudável a todos os homens. Pois bem sei que Nosso Senhor dá neste mundo a cada categoria de gente uma forma peculiar de fortuna. Ele faz Seu sol brilhar tanto sobre o bom quanto sobre o mau, e Sua chuva cair tanto sobre o justo quanto
Continua