O PECADO ORIGINAL E A "MORAL NOVA"

Mariano Costa

Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, por duas vezes já, neste ano, condenou a chamada "Moral Nova", liberal, existencialista: a 23 de Março, em Sua mensagem aos educadores católicos e, mais recentemente, a 18 de Abril, em discurso proferido aos membros da Juventude Feminina Católica, reunidos em congresso mundial na Cidade Eterna (*). Segundo esta moral, que se vem forjando há tempos com as novas doutrinas evolucionistas e panteístas, o homem não se deve preocupar, na sua vida ética, com os parágrafos das leis ou com os cânones das normas e regras abstratas, mas sim, com toda sinceridade, colocar-se diretamente diante de Deus, sem fingimento e sem constrangimento, e agir de acordo com as circunstancias reais e concretas. O que Deus olha, dizem, não é a ação em si, mas a intenção com que é feita. Em palavras claras: cada um deve esforçar-se por agir sempre com a simplicidade da criança que brinca e faz travessuras, não para ofender a seu pai, mas para divertir-se. Se o homem considera a Deus como Pai, pode e deve viver diante de Deus como um filho que dá largas à sua natureza, não para ofende-lo e desgosta-lo, senão para afirmar a sua própria personalidade. Não é pretender realizar o que ninguém até agora conseguiu: fruir de todos os bens da terra e, depois, os do Céu? Além de ir de encontro a muitos princípios da sã razão e da Revelação, a "Moral Nova" se fundamenta sobretudo na negação do Pecado Original.

Lembrei-me, por isso, de apresentar aos leitores de "CATOLICISMO", em resumo, algumas considerações cheias de palpitante atualidade d' dois autores muito conhecidos nos meios católicos, sobre a negação do Pecado Original como fundamento dos erros modernos: Mgr. Henri Delassus em "Vérités Sociales et Erreurs Démocratiques" e A. Blanc de Saint-Bonet em "L'Amour et la Chute".

Uma questão-chave: "os primeiros movimentos da natureza são sempre retos"?

Assim como há princípios e ideias-mães, dos quais procedem por via de consequência muitos outros, assim também há erros, verdadeiros agentes de morte, dos quais decorre por sua vez uma serie e um cortejo de outros erros dissolventes. Importa, por isso, conhecer esses agentes de morte, porquanto, arrancadas tais raízes, com elas serão ao mesmo tempo arrancados dos espíritos e dos corações todos os outros erros. Ora, a negação do Pecado Original é um dos erros capitais do nosso tempo. Na França, introduzido pelas Lojas Maçônicas Inglesas no sec. XVIII, foi professado em todos os seus livros por J. J. Rousseau e adotado enfim como o princípio indiscutível pelos revolucionários de 1789, 1830, 1848 e 1870. Rousseau, em carta dirigida ao Arcebispo de Paris, afirmava: "O princípio fundamental de toda a Moral, sobre o qual tenho dissertado em todos os meus escritos... é que o homem é um ente naturalmente bom, amante da justiça e da ordem; que não há absolutamente perversidade original no coração humano, e que os primeiros movimentos da natureza são sempre retos". De todos os dogmas cristãos aquele que os revolucionários mais atacaram foi o do Pecado Original, estimando que assim fariam ruir a base do Cristianismo e de toda a ordem social. A 24 de Fevereiro de 1882, afirmava sem rebuços o maçon Courdavaux, na cidade de Arras, diante de seus irmãos da loja "La Constante Amitié": "A causa liberal é intimamente ligada à questão religiosa. No fundo de quase todos os debates políticos do dia encontramos a afirmação ou a negação da verdade do Catolicismo. Ora, a base essencial do Catolicismo é o Pecado Original, sem o qual Cristo não teria necessidade de vir. Negar este dogma é portanto atacar o Catolicismo no seu próprio fundamento". E sabemos que os inimigos da Igreja o fizeram e fazem com fidelidade a perseverança.

A religião católica incompreensível sem o pecado original

De fato, negada a verdade da queda primitiva do homem, já não se entende a Religião Católica. Que significação teria a história do Antigo Testamento, com todo seu cortejo de leis e cerimonias? Que seria para nós Jesus Cristo senão um homem, dotado, sim, de todas as virtudes, mas simplesmente homem? E os Sacramentos, sobretudo o do Batismo, não assumiriam todo o ridículo de uma farsa? Afirmada a bondade nativa do homem, na frase clássica de Rousseau — "o homem nasce bom, a sociedade o deprava" — que se entenderia pela pregação de Jesus quando nos manda mortificar a carne, com suas concupiscências, tomar a cruz, fazer penitencia e renunciar a nós mesmos? Se o homem nasce bom, deve gozar de absoluta liberdade para fazer tudo o que entender, pois esta liberdade absoluta não é senão um bem natural e portanto só pode produzir o bem. Para que, pois, todas essas leis coercitivas de nossa liberdade, para que a educação da criança, para que as instituições? E não são precisamente estes os frutos amargos da civilização moderna toda baseada em tais princípios deletérios?

A causa da decadência europeia: negação do pecado original

No começo deste século e já no fim do passado, escritores franceses denunciavam o erro da bondade nativa do homem como o causador da ruina da França. Um deles, Le Play, desejando descobrir a primeira causa da decadência de seu país e também da Europa em geral, percorreu em viagem de estudo todas as nações europeias e foi até a Ásia e a África. Sua conclusão foi que a fonte estava no erro pregado por Rousseau, oposto ao ensino da Igreja, sobre o estado em que se encontra o homem no seu nascimento. Verificou Le Play que todos os costumes e todas as leis que contribuíram para a prosperidade dos povos e das famílias têm seu ponto de partida na crença da perversão original da humanidade, e que a negação deste fato abriu a porta a todas as ideias, a todas as leis e a todas as praticas que iniciaram e que precipitaram a decadência da sociedade hodierna.

Com efeito: se o indivíduo nasce em estado de perfeição, seria um atentado contra a ordem natural restringir-se sua liberdade; seria violar a justiça tolerar-se a desigualdade de condições; enfim, onde estes dois abusos tivessem sido consagrados pelas instituições, o homem de caráter, o bom cidadão teria não somente o direito, mas o dever de se revoltar contra elas. De onde a revolta contra todo freio, o desprezo de toda tradição, por mais antiga e venerável que pareça. De outro lado, a crença na bondade nativa do homem enfraqueceu as forças morais da sociedade. Pois se o homem é bom, para 'que esforços no sentido de sua perfeição moral? Basta, para atingi-la, dar largas a todos os apetites. Por isso dizia Le Bon: "Esta ideia sacudiu as bases das antigas sociedades, criou a mais formidável das revoluções e lançou o mundo ocidental em uma série de convulsões cujo termo é impossível prever". Mas nós já estamos colhendo seus últimos frutos.

Basta abrir os olhos para notar a existência do pecado original

A erro tão grosseiro e de tão funestas consequências oponhamos a verdade da queda original, que antes de ser um dogma de fé é uma conclusão de nossa razão tirada da experiência quotidiana. Efetivamente, como explicar este enigma que aquele que recebeu razão para conhecer a verdade, vontade para fazer o bem, coração para se unir ao Eterno Amor, viva ao contrario mergulhado no erro, detido pelo mal, acorrentado às coisas cá de baixo? Não é de experiência quotidiana que o espirito do homem caminha penosamente sobre as pegadas da verdade e espontaneamente se deixa enveredar pelo caminho do erro? Que sua vontade não segue senão com esforço os ditames da lei e, ao contrário, se fixa constantemente no mal? Que seu coração, quando se abre ao bem, é muitas vezes mais levado pelo interesse do que pelo amor? Como explicar que

o homem, criado para Deus, chega não só a se afastar de Deus, mas até a odiá-lo? Como explicar semelhante contrassenso? Dizer com Rousseau que o homem, bom de nascença, foi corrompido pela sociedade? "A mais grosseira das ' amas, como a mais perspicaz das mães, pode ver a cada instante que a propensão para o mal é predominante na criança. Os grandes pensadores, que observaram pessoalmente a infância, chegaram à mesma conclusão. Enfim, todos os mestres que formaram homens eminentes não o conseguiram senão reprimindo com solicitude constante, as inclinações viciosas de seus discípulos" (Le Play). Darwin, esse homem que tanto interrogou a natureza, impôs-se a si mesmo o cuidado de estudar dia por dia a um de seus filhos. Ora, antes que este tivesse atingido a idade de dois anos, Darwin já tinha podido encontrar e consignar no seu diário, em meio a instintos de bondade, de inteligência e de afeto, um cortejo de maus sentimentos, cólera, temor, inveja, respeito humano, dissimulação e mentira (Cfr. Darwin, Esquisse d'un Enfant, 1877).

Se Deus não faz senão a perfeição e se a perfeição é o caminho natural de toda existência, que concluir? O homem, no qual a fonte da perfeição está esgotada, teria violado a lei de sua existência... se teria desviado do seu fim e, pois, se teria lançado na rampa da destruição.

O que a fé nos ensina sobre o pecado original

Mas o que a nossa razão esboça nas suas conclusões, a nossa fé o confirma de maneira irrefragável. O Livro da Sabedoria diz que todas as criaturas eram sãs na sua origem; não foi senão o pecado que trouxe o desequilíbrio e a desordem dentro e fora do homem. Adão, em Togar de lançar para Deus seu coração, voltou-se para si mesmo. Apressado em gozar, não • quis esperar até ter conquistado a felicidade. Não quis passar pelas condições de criatura e começou a tomar posse de si mesmo. Quereria a felicidade sem Deus. Ora, os bens sobrenaturais com que Deus o havia enriquecido, não pertenciam somente a Adão, mas a toda a espécie humana, que nele estava contida e encerrada. Por isso, viciando em si a natureza humana pelo seu pecado, tinha de transmiti-la assim viciada a todos os seus descendentes. Destarte, todos os homens a partir de Adão, tornam a direção que o pecado original imprime.

Em cada um de nós, pois, a todas as horas de nossa existência, se encontra o resultado da obra de Deus, da obra de Adão e de nossa própria obra. E é assim não só com relação ao indivíduo, senão também com relação às famílias e às nações. Daí, a lamentação de David, o Rei profeta: "Eu conheço a minha iniquidade, pois o meu pecado está sempre contra mim".

A "Moral Nova", revivescência do modernismo panteísta

Relembrando verdades e princípios por demais conhecidos e cediços, não queremos senão apontar o caminho por onde devemos julgar aquilo que agora se apresenta com o nome de "Moral Nova". Aliás, de novo nada trás; talvez uma certa maneira insinuante de se infiltrar nos espíritos modernos, tão superficiais e irreflexivos! A "Moral Nova" se pode bem interpretar se a qualificarmos de nova tentativa do demônio para desencadear no homem as forças da concupiscência e acender no seu espirito a chama do orgulho: convencer ao homem que ele é "deus" e que os frutos de sua natureza são divinos. Não pensemos, porém, que esta moral seja uma doutrina isolada. Ela é a consequência lógica de todo um corpo de doutrina místico-panteísta, renovação objetivamente mais grosseira e, ao mesmo tempo, mais sutil do Modernismo condenado no começo deste século pelo Bem-aventurado Pio X. Ele de novo ergue a cabeça e tenta envolver de uma vez todo o Catolicismo no seu dogma, na sua moral, na sua disciplina e no seu culto, imprimindo-lhe outro espirito e orientação, completamente opostos ao espirito que lhe imprimiu seu divino Fundador, Nosso Senhor Jesus Cristo.

(*) Publicados em Catolicismo, respectivamente no número anterior e no presente.


"ELA TE ESMAGARÁ"...

Julia de Freitas Guimarães Ablas

Lemos no capitulo III, versículo 15, do Gênesis, as seguintes palavras que o Senhor dirigiu à Serpente, as quais evidenciam a missão de Maria através dos tempos: "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua posteridade e a sua. Ela te esmagará a cabeça e tu armarás traições ao seu calcanhar".

Como vemos, é o próprio Deus quem afirma a existência de uma inimizade' irreconciliável entre Maria SSma. e Satanás, entre os filhos diletos de Nossa Senhora e os sequazes de Lúcifer. Nada mais compreensível, pois a soberba do demônio, que também pelo orgulho levou nossos primeiros pais à desobediência a Deus, foi fragorosamente esmagada pela humildade e obediência da Virgem-Mãe Imaculada, Corredentora da humanidade.

No seu admirável Tratado da Verdadeira Devoção, diz S. Luiz-Maria Grignion de Montfort que esta inimizade se tornará mais exacerbada ainda no fim dos tempos, quando os inimigos de Deus, os filhos de Belial ou os amigos do mundo (o que vem a ser a mesma coisa), armarão terríveis ciladas e perseguições aos filhos verdadeiros de Maria, os quais serão pequenos e desprezados pelo mundo, mas serão grandes pela santidade de vida, pelo zelo apostólico, e sobretudo pela proteção d'Aquela "que é terrível como um exército posto em campo".

Facilmente poderemos verificar, — basta para tanto focalizar o ambiente que nos cerca, — a onda crescente de paganização do nosso século, a ação organizada do mal em todos os setores da vida particular e pública, a recrudescência dos ataques da impiedade contra a Igreja Católica e suas instituições. Não falemos nas perseguições comunistas contra os países católicos, multiplicando mártires entre os Bispos, Sacerdotes, Religiosas e fiéis: - observando mais atentamente, veremos que o trabalho de sedução, de sapa, é de consequências muito maiores e mais desastrosas que a perseguição pela força tirânica...

Refletindo, portanto, sobre o atual estado das sociedades, somos obrigados a concluir que as baterias inimigas vêm se assestando com audácia e perseverança diabólica contra a família, a escola e a propriedade privada, — três instituições sobre as quais repousa o edifício social erguido durante séculos pela ação civilizadora da Igreja de Jesus Cristo.

Como filhos fiéis de Maria que desejamos sempre ser, há muito que compreendemos, que sentimos mesmo, a realidade dessa luta surda, fruta da inimizade irredutível entre as potencias infernais e a Virgem Nossa Senhora. Há muito que com grande tristeza ouvimos ecoar aquele brado do ímpio e revolucionário Voltaire:

"Pour écraser l'infâme qui se croit triomphant,

Arranchons-lui la femme, enlevons-lui l'énfant..."

Para destruir a civilização católica e sobre as ruas ruínas erguer a cidade naturalista, as forças do mal multiplicam duros golpes, terríveis traições contra a mulher, a criança, a família cristãmente constituída.

Senão vejamos: a moda despudorada e provocante, a propaganda cínica do mal através do cinema, do rádio, dos jornais, revistas, anúncios, etc. O desrespeito à santidade do matrimonio, as investidas divorcistas, a exaltação do prazer e do vício ao mesmo tempo em que se ridiculariza a virtude, sobretudo a virtude da pureza... O falseamento da verdadeira liberdade — que é para o ser racional a liberdade de fazer o bem, — o endeusamento da libertinagem. A promiscuidade dos sexos, nas praias, nas piscinas, nas escolas, nas diversões: tudo, em torno de nós, é um contínuo incitamento ao pecado, à revolta contra a lei de Deus e contra toda autoridade, ao desprezo dos , mais sagrados deveres, à inveja, ao ódio, à anarquia moral, intelectual e espiritual.

* * *

Consola-nos, entretanto, a afirmação do próprio Deus, — a qual, aliás, se acha inscrita no brasão de' zeloso Pastor diocesano de Campos: "Ipsa conteret!" Sim. "Ela te esmagará", Aquela que "todas as gerações proclamarão bem-aventurada" — a Virgem Imaculada "em cujo seio encerrou-se Quem os céus não podiam abranger", e que, "sozinha, venceu todas as heresias em todo o mundo", Ela esmagará a cabeça da serpe infernal e de seus asseclas.


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

Uma profecia que se cumpre

Fernando Furquim de Almeida

Em 1835, encontraram-se em um hotel de Londres dois jovens franceses, que desde então se ligaram por uma estreita amizade. Um era legitimista e voltava de uma visita ao velho rei Carlos X; o outro, bonapartista, estava a serviço do ex-rei José, irmão de Napoleão I. Eram o Conde de Falloux e Fialin de Persigny. Em suas discussões, o Conde de Falloux não levava a sério a esperança que seu amigo alimentava, de uma restauração dos Bonapartes no trono de França, o que levou Persigny a dizer-lhe profeticamente: "Seus olhos ainda se abrirão. O Príncipe Luís reinará e o Sr. fará parte de seu primeiro ministério".

Alguns anos mais tarde, Persigny é detido numa das tentativas de revolução promovidas por Luís Napoleão. O Conde de Falloux vai visitá-lo na prisão. Ao sair, o prisioneiro lhe escorrega na mão um papel: é o endereço da casa onde se acham os uniformes preparados para a entrada triunfal do príncipe em Paris. O Conde de Falloux consegue fazer com que desapareçam esses uniformes, destruindo assim o que, nas mãos do governo de então, seria uma prova esmagadora de culpabilidade contra Luís Napoleão e seus amigos.

Luiz Napoleão exige a presença de Falloux no ministério

Em 1849, eis Luís Napoleão na presidência da república com o apoio eficaz do Partido da Ordem. Thiers pretendia dominar o príncipe-presidente, e foi sob sua direção que se desenvolveram as negociações para a formação do primeiro ministério do novo governo. O Príncipe Luís, no entanto, fazia uma imposição: queria como seu ministro o Conde de Falloux. Além de ser o pagamento de uma dívida de gratidão e um desejo de Persigny, ainda se devia levar em conta que o Conde de Falloux era um dos "notáveis da rua Poitiers", legitimista, um nome político já respeitado, e traria para o seu governo o apoio do Partido Católico.

Nova interferência do Padre Dupanloup

As primeiras démarches se chocaram com a recusa formal do Conde de Falloux. Porém, mais uma vez entrou em cena o Padre Dupanloup. Foi ele quem conseguiu convencer o jovem líder legitimista a aceitar o convite para o ministério. O próprio Falloux conta em suas memórias como foi vencida sua resistência:

"Tinha a meu serviço um vandeano, Marc Séjon, que todos os meus amigos conheceram e estimaram com o nome familiar de Marquet. Filho de um guarda-caça de meu pai, tinha nascido e se educado em minha casa. Não se podia levar mais longe do que ele a paixão política e o devotamento pessoal. Contra minha vontade, ele me seguira nos dias da insurreição de julho. Estava seguro de seu inviolável respeito pelas ordens que lhe desse. Confiei-lhe, portanto, meu plano de campanha, recomendando que me mandasse um fiacre às nove horas à rua Saint Dominique (à casa de Madame Swetchine), proibindo-lhe revelar a quem quer que fosse o segredo de meu refúgio.

"Tudo correu bem até as oito e meia, e já conversava alegremente, como um homem que acaba de escapar de um grande perigo, quando a porta do salão, que eu sabia rigorosamente fechada, se abriu bruscamente e apareceu o Padre Dupanloup. Desculpou-se em poucas palavras com Madame Swetchine, e me disse:

— Estou em sua casa desde as seis horas, suplicando em vão a Marquet, em nome dos mais graves interesses, dizer-me onde poderia encontrá-lo. Impiedosamente ele me deixou sem jantar. Mas, vendo que se aproximava a hora de sua volta, pôs-me no fiacre que vinha buscá-lo, e aqui estou.

— Muito bem, e que quer o Sr. de mim?

— Fazê-lo sentir o peso de sua responsabilidade. Levaram sua recusa ao Príncipe Luís, e este respondeu friamente: ‘Compreendo o que isso significa. Na idade do Sr. de Falloux, não se recusa voluntariamente uma pasta ministerial. É seu partido que não lhe permite aceitar. É portanto uma declaração de guerra. Queria ter meu ponto de apoio nos conservadores. Como ele me falta, devo procurá-lo em outros lugares. Hoje o partido legitimista levanta uma bandeira, amanhã será a vez do partido orleanista. Não posso ficar no ar, e vou pedir à esquerda o concurso que a direita não me quer prestar. Verei esta tarde Mr. Jules Favre’.

— Eis aí, meu amigo — acrescentou o Padre Dupanloup — a situação que sua teimosia criou. O Sr. vai abandonar a Itália às sua convulsões, deixar o Papa sem socorro e entregue a seus piores inimigos, tornar a jogar na anarquia a França que não aspira senão a se libertar dela, e cobrir de confusão os mais eminentes representantes do partido conservador.

"Fiquei aterrado com o quadro da situação exposta pelo Padre Dupanloup. Madame Swetchine não dizia nada.

— Mas quem disse tudo isso? — perguntei.

— Primeiro o Sr. Molé, e depois o Sr. Montalembert, que está jantando a dois passos daqui, em casa de Mme. Thayer, e suplica de vê-lo.

— Muito bem, leve-me a ele.

"Deixei Mme. Swetchine na maior ansiedade, porque ela conhecia bastante bem o fundo de minha alma, para compreender a extensão do meu sacrifício. Madame Thayer, filha do general Bertrand, aliava uma grande distinção a uma grande piedade. Estava muito ligada com a ação e os desejos dos católicos. Assim que me viu entrar, o Sr. Montalembert exclamou:

— Fizemos mal em ceder. Devíamos prever isso. Repare, eu lhe suplico que repare, se ainda for tempo.

Todo o salão fez eco a essas palavras.

Falloux impõem uma condição para participar do ministério

— Muito bem — respondi — eu não luto mais por minha própria conta, mas tenho condições a impor, tanto por vós como por mim. Vamos imediatamente à casa do Sr. Thiers, enquanto o Padre Dupanloup volta à casa do Sr. Molé.

"O salão da Praça Saint Georges começava a se encher. O Sr. Montalembert entrou só, e segredou ao Sr. Thiers que eu o esperava na sala vizinha. Ele acorreu logo, com as duas mãos estendidas.

— Não me agradeça ainda — disse-lhe eu. — Vim procurá-lo porque os padres me enviaram (usei de propósito esta expressão, para colocá-lo logo diante da dificuldade). Aceito o ministério se o Sr. me prometer preparar, sustentar e votar comigo uma lei de liberdade de ensino. Senão, não.

— Prometo, prometo — respondeu o Sr. Thiers com efusão. — E acredite que não é uma promessa que me custe. Conte comigo, porque minha convicção é a mesma que a sua. Meus amigos liberais e eu estávamos no mau caminho no terreno religioso. Devemos reconhecê-lo francamente. Mas agora deixem-me procurar imediatamente o Príncipe Luís, que recebe neste momento conselhos detestáveis, e talvez dentro de poucas horas já não fosse possível libertá-lo dessas influências funestas.

"O Sr. Thiers pediu licença apressadamente a seus visitantes. O Sr. Montalembert quis se encarregar, de minha parte, em pôr o Sr. Molé a par do que se passara em casa do Sr. Thiers. Eu tomei meu fiacre e cheguei em casa dizendo:

— Bem, pobre Marquet, vais entrar no ministério. Quem o diria!

— Certamente eu não — replicou ele tristemente. — Entretanto, como o Sr. o fez, estou certo de que é para o bem, e precisamos nos resignar".

É curioso que Falloux, amigo fiel do bonapartista Persigny, em uma idade naturalmente inclinada ao desejo de uma grande carreira — tinha então 37 anos — tendo recusado obstinadamente um ministério e não desejasse colaborar com o Príncipe Luís Napoleão na repressão da desordem que levara o Partido Conservador a apoiar a candidatura deste último à presidência, tenha imposto a lei de liberdade do ensino como única condição para se deixar vencer, apesar das cores trágicas com que o Padre Dupanloup pintava a situação do Papa. Tanto mais que ele se recusara na Câmara a fazer parte da comissão parlamentar de que dependia a aprovação dessa mesma lei.

Falloux, ministro da instrução pública

Enfim, o Conde de Falloux é ministro da Instrução Pública do primeiro ministério de Luiz Napoleão. Ele vai preparar a lei sobre a liberdade de ensino, redigida de tal modo que ainda hoje a França católica sofre as suas consequências. E essa lei é que liquidará completamente o Partido Católico.

Ao tomar posse, o Conde de Falloux encontrou em sua escrivaninha uma bela pasta de marroquim vermelho, com um cartão: "Da parte do Sr. de Persigny. Recordação de Londres, 1835".


NOVA ET VETERA

Dom Vital e o Regalismo

J. de Azeredo Santos

CERTOS exegetas da Questão Religiosa deixam em seus leitores a impressão de que a responsabilidade por esse lamentável conflito entre um Bispo católico e um Esta-

do também católico caberia em primeiro lugar à instituição do Padroado, de que se valia o regalismo para se imiscuir no campo espiritual. À Maçonaria tocaria apenas o papel secundário de precipitar o choque. E de modo indireto teria ela até prestado um benefício à Religião, pois dessa luta resultou a divisão dos campos, cessando o ambiente de confusão e ambiguidade entre a Igreja e o Estado.

As raízes remotas da questão religiosa

Aliás nem sequer poderia ser culpada a elite dirigente do país pelo fato de se filiar às Lojas, pois a incompatibilidade entre a Igreja e a Maçonaria seria, então, pouco conhecida.

Em homenagem à memória do grande Dom Vital, que há setenta e Quatro anos, a 4 de julho de 1878, falecia no Convento de "La Santé", em Paris, e cuja causa de beatificação se acha na fase do processo histórico, vejamos como é inconsistente semelhante interpretação dos fatos.

Em primeiro lugar, para agir com rigor histórico, seria necessário, para admiti-la, provar que as forças secretas não se achavam por detrás do regalismo e, portanto, minando a própria instituição do Padroado. Para ir mais longe, ainda está por ser estudada a conjuração dos legistas que, a partir sobretudo do ocaso da Idade. Média, e tendo em Nogaret seu modelo consumado, iniciam a obra sinistra de aniquilamento do papel da Igreja e da nobreza na vida política e social dos povos católicos, podendo ser considerados como os precursores do totalitarismo de nossos dias em seu aspecto jurídico. Essa convergência de ação não exclui, pelo contrário supõe uma unidade de orientação que bem poderia partir de uma senha comum a todos esses conselheiros dos príncipes cristãos.

As sociedades secretas e o regalismo

Mas não precisamos ir tão longe. Para provar que as forças secretas se achavam por detrás do regalismo e, no caso de Portugal e do Brasil, manobrando e deturpando a seu favor os privilegias ligados à instituição do Padroado, basta citar o seguinte trecho dedicado aos príncipes católicos na Carta Apostólica "Quo Graviora", com que o Santo Padre Leão XII renovou em 1825 a condenação das sociedades secretas, e que constitui uma previsão do conflito em que cinquenta anos mais tarde se veria envolvido o intrépido Dom Vital:

— "As circunstâncias do presente são tais que deveis reprimir as sociedades secretas não somente para defender a Religião Católica, mas ainda para vossa própria segurança e a de vossos súditos. A causa da Religião está hoje de tal modo ligada à sociedade que não é mais possível separa-las: pois os que fazem parte dessas associações não são menos inimigos de vosso poder que da Religião. Eles atacam a ambos e desejam vê-los igualmente derrubados, e se o pudessem, não deixariam subsistir nem a Religião nem o poder real.

"Tal é a perfídia desses homens astuciosos que, ao fazerem votos secretos para derrubar vosso poder, fingem querer estende-lo. Eles tentam persuadir-vos de que Nosso poder e o dos Bispos deve ser restringido e enfraquecido pelos príncipes, e que é preciso transferir a estes, tanto os direitos desta Sé Apostólica e desta Igreja principal quanto os dos Bispos chamados a participar de Nossa solicitude.

"Não é somente o adio da Religião que lhes anima o zelo, mas a esperança de que os povos submetidos ao vosso império, vendia cair as barreiras estabelecidas nas coisas santas por Jesus Cristo e Sua Igreja, serão levados facilmente, por esse exemplo, a trocar ou destruir também a forma de governo".

Testemunho de Dom Vital

Eis aí claramente indicado quem se achava por detrás do governo imperial do Brasil, fingindo querer estender o poder da coroa, mas na realidade tramando sua queda. Eis o que explica lambem atos odiosos desse governo, como o que despoticamente fechou as portas das Ordens Religiosas aos noviços, ferindo em pinto nevrálgico nosso desenvolvimento espiritual e transformando nossos velhos Conventos em furnas de morcegos.

E é o próprio Dom Vital quem também nos vai desfazer essa visão superficial da Questão Religiosa. Em sua reconhecida argucia, bem sabia o Bispo de Olinda que o liberalismo, que o cesarismo, que o regalismo eram manipansos forjados e orientados por quem tinha interesse em fazer progredir no mundo a subversão da vida social e política dos povos cristãos. Diz ele:

"Observando de ânimo repousado e desprevenida as feições e os característicos distintivos da perseguição insensata que no Brasil ora se move ao Episcopado e ao ensino católico, o pensador calmo e refletido conclui, Exmo. e Revmo. Sr., que ela se prende intimamente, como o elo à cadeia, a malha à rede, a essas tropelias sem número hoje exercidas nos dois hemisférios, contra o Catolicismo, pelo cesarismo, pelo liberalismo, pelo materialismo, de mãos dadas todos os três, e sob imediata direção das sociedades secretas de que são eles instrumentos manejáveis em extremo: e que aqui se obra de concerto com ordens vindas de além mar e se obedece à senha transmitida pelo supremo e façanhudo potentado da Maçonaria universal, o mais encarniçado inimigo e acérrimo perseguidor da Igreja Católica na época presente" (trecho de carta ao Arcebispo de Buenos Aires, a 2 de agosto de 1874).

Os verdadeiros termos da questão

Depois disso, que pensar dos que falam- no "paradoxo" da luta entre um Bispo católico e um Estado também católico? E que achar dos que procuram minimalizar o papel da Maçonaria no conflito, atribuindo suas raízes remotas às lutas entre a Igreja e o Estado que tinham por pivot o Padroado? E que dizer das repercussões da Questão Religiosa no problema da separação da Igreja e do Estado?

A resposta antecipada nos foi dada por Leão XII: os povos continuaram católicos, mas os Estados, em sua estrutura política, foram se mecanizando e laicizando, de modo que é até irrisão dar-lhes hoje o nome de católicos. A separação entre a Igreja e o Estado veio a reboque na ilharga dos novos regimes constituídos após a derrubada dos tronos, como havia previsto o Papa. E o regalismo no Brasil, tal como o galicanismo em França, são hoje exemplos históricos de instrumentos dóceis empregados pelas forças secretas para afastar dos tronos católicos aquilo que era a sua principal garantia de estabilidade: a influência da Igreja.

E quanto aos que querem atribuir ao fraco esclarecimento religioso-doutrinário a contaminação das elites dirigentes pela maçonaria, naqueles tempos, gritam contra essa enormidade todas as enxurradas de insultos, de calunias, toda a campanha tenebrosa de descrédito e de difamação conduzidas pelos emissários das Lojas contra a Santa Igreja na pessoa de seus denodados Bispos, culminando com a sua sacrílega prisão.

Se os atentados contra o Corpo Místico de Cristo, que é a Sua Igreja, não são capazes de suscitar toda a nossa indignação, é porque permanecemos mornos em relação às coisas de Deus: e o Espírito Santo nos vomitará de Sua boca.