(continuação)
será jansenista a não ser à maneira de Rastignac, de Fitz-James, de Montazet".
APPOLIS, com seu estudo, contribuiu grandemente para o esclarecimento da situação religiosa da França no século XVIII.
Há, porém, um tópico em seu artigo que parece exigir de nós uma explicação. Appolis, colimando mostrar, à luz dos documentos, a evolução que teve a questão jansenista após a bula "Unigenitus", evolução no sentido liberal para uma tolerância sempre maior para com o erro, pretende que os próprios Papas Bento XIII e Bento XIV se tenham deixado levar pela corrente intermediaria. Seriam eles mesmos conspícuos representantes da terceira força.
Ora, embora ambos estes Pontífices tenham sido homens inclinados às concessões, bem que em diverso grau ("Il — Bento XIV — sembla poursuivre de plein gré la politique de concessions que Benoit XIII avait paru plutôt subir" — Hist. Gen. de 1'Eglise, L'Ancien Régime, Paris, 1920, pg. 127/8 ), nem um nem outro chegou ao ponto de pactuar com a heresia, como deixa entender, ainda que não o afirme, Appolis no seu artigo.
Bento XIII, ardoroso Dominicano (mesmo depois de Papa beijava a mão ao Geral de sua Ordem), favoreceu, sem dúvida, a posição teológica dos Pregadores. Não, porém, com sacrifício de outras doutrinas com iguais foros de cidadania na Santa Igreja. O breve "Demissas preces" de 6 de novembro de 1724; suplicado pelo Geral dos Pregadores, aos quais é endereçado, contem uma exortação a que desprezem, com magnanimidade, as calúnias levantadas contra suas opiniões doutrinarias, especialmente quanto à graça por si mesma eficaz, e à predestinação anterior à previsão dos méritos. Não declara, no entanto, nem que a posição de Molina deva ser condenada, nem que são os molinistas os autores das calúnias contra os Dominicanos. O breve deixa entrever suficientemente que são os Jansenistas os aludidos caluniadores da Ordem. Não se poderia, pois, apelar para este breve como se nele houvesse uma condenação da doutrina molinista.
Quanto ao elogio da doutrina de Santo Agostinho e Santo Tomaz sobre a graça, é bom notar que o Papa distinguia bem a doutrina tradicional da Igreja que, desde Bonifácio II, vê em Santo Agostinho o Doutor da Graça, e as deturpações do "Augustinus" de Jansênio que os port-royalistas faziam passar como a doutrina do santo Bispo de Hipona. Talvez mesmo por isso, o breve de Bento XIII contem um elogio da bula "Unigenitus", que qualifica de sentença extremamente salutar e sabia de Clemente XI.
Também Bento XIV, como medida disciplinar, atendeu às exigências da Corte de França no sentido de mitigar a aplicação das penas cominadas contra os desobedientes à bula "Unigenitus". Por maiores que fossem, no entanto, as concessões do Papa, este não cedeu às instancias do Rei a ponto de declarar que a bula “Unigenitus” não devia ser tida como "regra de fé". E, de fato, na circular endereçada pelo Papa à Assembléia do Clero, ainda que a expressão "regra de fé" não ocorra, o mesmo pensamento é apresentado em outros termos. Tão grande, aí se diz, é a autoridade desta bula, e tão sincero respeito, aceitação e obediência exige ela, que nenhum fiel, sem perigo de sua salvação eterna, pode negar-lhe a obrigatória submissão, e fazer-lhe, de qualquer modo, oposição. Segue-se a pena contra as pessoas notoriamente desobedientes à bula "Unigenitus".
Foi apenas isto que Luiz XV concertou com Bento XIV. É verdade que no próprio decreto real sobre a circular de Bento XIV, o Rei, "motu proprio", declarava que a bula "Unigenitus" não era regra de fé. Isto se fez, porém, sem o consentimento do Papa, e contra a sua intenção, como, se deduz das tratativas entre a Corte francesa e a pontifícia. Não se pode, pois, daí deduzir que o Papa pretendeu favorecer a terceira força, ou seja a heresia, uma vez que Appolis demonstra muito bem que a terceira força era cripto-jansenista.
E se alguém observar que o Pontífice nada disse após tão desleal atitude do monarca, é mister lembrar-se de que Bento XIV se achava enfermo, e provavelmente não foi informado da maneira pouco real com que agiu Luiz XV. É possível também que tenha julgado melhor não avivar novamente toda uma questão que só com muita dificuldade poderia levar a termo no depauperamento em que estava.
ESTAS observações demonstram quanto são nefastas as consequências de uma política de paz de pântano. A paz só é real quando alimentada pela seiva da verdade. Do contrario, é uma superfície de tênue verniz sob o qual a divisão das inteligências alimenta e aviva convulsões por vezes vulcânicas. Para manter a paz na França, Fleury evitou o mais possível o triunfo da verdade sobre o erro, mediante sua política de pseudo equilíbrio entre uma e outro. Vinte e poucos anos mais tarde, a situação era tal, que ao Rei e ao Papa não pareceu mais possível a aplicação pura e simples dos ensinamentos pontifícios. É que nascera o liberalismo em matéria de religião. Fleury alimentara no seio da França a víbora que iria envenená-la em 1789.
Plinio Corrêa de Oliveira
A Serva de Deus Maria Clotilde de Saboia Napoleão (1843-1911), insigne não só por seu nascimento e por sua alta distinção pessoal, como também por sua virtude, será talvez elevada às honras dos altares, pois já se processa a causa de sua beatificação. Pela nobreza de seu porte representa ela o tipo característico da dama cristã no século passado, toda feita para a vida de sacrifício, principalmente no lar, para as grandes dedicações da mãe e da esposa segundo o espírito da Igreja. Apesar de muito feminina, espelha em seu todo uma firmeza notável, que não exclui, aliás, uma grande bondade. Em suma, pode ser tida como expressão autentica do verdadeiro ideal feminino.
* * *
Ana Pauker representa o arquétipo da mulher conformada segundo as normas do comunismo. Grosseira, masculinizada, não denotando nem o recato nem a dedicação que a situação da mulher na sociedade exige, é a virago desabrida e sem sentimentos, própria para a era de brutalidade e mecanicismo cujo advento o neo-paganismo moderno prepara.
Luiz Mendonça de Freitas
Durante os séculos XIX e XX realizou-se no campo da civilização material um progresso de tal envergadura como jamais fora dado ao homem apreciar. Este progresso é tão generalizado que muitas pessoas são tentadas a transpor para plano social e moral o que observam no campo material. Tal atitude levaria a crer que todas as instituições sociais dos nossos dias são o produto de uma evolução permanente através dos tempos. Este seria portanto o caso dos atuais meios de previdência social, os quais se encontrariam hoje, no pináculo de seu desenvolvimento, com os modernos institutos de aposentadoria com milhares de associados e manejando fortunas que se cifram em bilhões.
Tal concepção só em parte é verdadeira. A organização social nem sempre segue uma linha de progresso ininterrupto. Sabemos por exemplo que o Império Romano terminou em um caos socialista que a civilização cristã medieval rejeitou. No século XIII, a sociedade estava constituída em grupos hierarquicamente organizados, dos quais os indivíduos eram células vivas.
Em nossos dias a sociedade foi nivelada por baixo. Deixou de ser um corpo orgânico para se transformar num amontoado mecânico de imensas massas de indivíduos.
Progredimos? Estamos no auge de uma evolução? Não. Regredimos ao ponto de partida da civilização cristã, ao estágio que os romanos haviam atingido e a Idade Média superado: ao socialismo de Estado.
Seria tarefa demasiado árdua tratar em um artigo de todos os fatores de desagregação que agem ainda em nossos dias para solapar os fundamentos da civilização católica e suas instituições inspiradas no direito natural. Focalizaremos apenas um aspecto desse processo: o aniquilamento do papel desempenhado pela família nos hábitos de previsão.
Família não envolve somente a ideia de parentesco entre pessoas vivas que tenham entre si laços de consanguinidade ou afinidade. Este, que é o conceito moderno, é demasiado restrito. Família inclui não só a geração presente mas também os antepassados. Na Idade Média este todo constituía um verdadeiro Estado em miniatura, com seu rei — o pai, representante, em sua esfera, da autoridade divina, com suas tradições, seus costumes, seus objetivos particulares, que se perpetuavam nos descendentes não só através da transmissão de suas qualidades morais mas também de seu patrimônio econômico conservado íntegro. Os manuais de história, inspirados em princípios revolucionários procuram desacreditar uma tal concepção afirmando que só a nobreza era ciosa de seus antepassados e tradições. Não deve ser para nós nenhuma surpresa saber que é na nobreza que vamos encontrar mais vivo este espírito. Pois ela é a classe por excelência destinada a servir de modelo para todas as demais. É nela que devemos procurar o exemplo de todas as virtudes levadas ao mais alto grau. Mas isto não quer dizer que no povo esta organização familiar não fosse também desenvolvida. Quem é que manejando objetos confeccionados por artesãos europeus já não descobriu que tal encadernador de livros trabalha de acordo com segredos que foram descobertos por seus antepassados, há muitas gerações, e cuidadosamente guardados e transmitidos de pais a filhos até ele? Que tal marceneiro, pintor, fabricante de instrumentos musicais etc., têm noticias de seus maiores às vezes bem longínquos, que foram precursores, em suas cidades, dos ofícios que eles hoje exercem? Os exemplos poderiam ser multiplicados e bastaria um pouco de paciência para encontrá-los às mancheias.
Famílias numerosas e unidas eis o meio pelo qual se perpetuavam essas tradições. Quando os pais envelheciam tinham os seus últimos dias confortados pela presença de numerosos filhos que podiam mantê-los sem dificuldades.
É a criação de um patrimônio que consolida este modo de vida. Mas esse patrimônio poderá o pai de família criá-lo sem a propriedade de bens permanentes transmissíveis por herança a seus filhos? A propriedade é o complemento necessário da família e a sua maior defesa contra as surpresas da má fortuna, como o afirmou Leão XIII. Suprimi-la ou trabalhar para a sua supressão é batalhar pelo advento do socialismo, pois só ela fornece garantias contra a tirania do Estado centralizador. "A autoridade pública opera contra a justiça e contra a humanidade quando, sob o nome de impostos, sobrecarrega desmedidamente os bens dos particulares", lê-se na Rerum Novarum,
Não só o acervo de conhecimentos profissionais se transmitia de geração a geração, mas também o patrimônio laboriosamente acumulado. A cada nova geração cabia conservar e aumentar com o seu trabalho este capital que constituía poderoso apoio para a velhice.
Mas o movimento revolucionário que se abateu sobre a civilização ocidental acabou colocando-a em bem miserável situação. Sobre a sociedade magnificamente estruturada em grupos orgânicos que a Idade Média construíra, passou o rolo compressor da Revolução.
Que sucedeu à organização familiar tão solidamente constituída? Minaram-se os seus fundamentos. Criaram-se condições que obrigaram correntes consideráveis de população a se transferirem dos campos para as cidades, a emigrarem para outros continentes. E as grandes metrópoles foram o receptáculo destas correntes humanas. A pessoa se dissolve no todo coletivo, suas ações passam a ser reflexo de um ser gigantesco e caprichoso, a massa incapaz de movimento próprio mas susceptível de ser manejada de fora.
Que foi feito da organização profissional corporativa que tanto apoio prestara aos artífices e operários durante séculos? Foi suprimida, o Estado esclarecido não precisava de intermediários entre ele e os súditos.
Tudo isto feneceu ou está em vias de desaparecimento. O indivíduo ficou só, diante do Estado onipotente. A necessidade de se manter em certo nível social obriga-o a uma luta constante que absorve todas as suas energias e o transforma no que chamamos hoje um "homem dinâmico", isto é, um autômato.
Para as pessoas que se conformam com estes característicos dos dias atuais, a previdência estatal se apresenta como a mais eficiente ou mais cômoda forma de garantia do futuro.
Apontá-la como única solução é errado.
Outras épocas da história conheceram soluções mais compatíveis com a dignidade humana. Ao fazermos esta referência temos em mente o período áureo da civilização cristã, o século XIII. Nesta época, embora não existissem Institutos de aposentadoria, não ficavam os indivíduos desamparados. Ao contrário, a família, como a descrevemos, fortemente apoiada na propriedade particular, e o sistema das corporações de oficio constituíam vigorosos "sistemas" de previdência criados sem a intervenção do Estado.
Devemos considerar a previdência estatal como solução provisória, talvez mesmo necessária em um mundo quase sem classes, mas nunca como ideal, pois a ação dos Estado neste campo, como em vários outros que não são especificamente de sua alçada, deve ser supletiva, ou seja, manifestar-se apenas onde a iniciativa dos particulares for insuficiente.
A previdência estatal é uma forma atenuada de socialismo de Estado. Tem o efeito de preparar o terreno para a implantação deste, por dois métodos: criando um desestímulo à aquisição da propriedade privada; e habituando os indivíduos a verem no Estado, o senhor onipotente Provedor de toda a sociedade.
Não ignoramos as dificuldades que se apresentam para a aplicação concreta dos princípios da doutrina social católica ao mundo atual. Uma organização social não pode ser feita sob medida. A vida, geralmente, não se ajusta a esquemas traçados em gabinetes. Mas se é impossível criar do dia para a noite uma civilização inspirada nos ensinamentos da Igreja, é por outro lado possível impedir que os inimigos de Deus se aproveitem da atual conjuntura para instaurar no mundo uma civilização pagã. Para isto é necessário que o católico consciente das suas responsabilidades seja intransigente na defesa dos princípios do direito natural, fundamentos necessários de qualquer sociedade cristã. Entre estes avulta em importância o direito à propriedade particular, base e sustentáculo da solidariedade econômica da família, devendo por isso ser denunciada e combatida a tempo a ação nociva dos impostos crescentes sobre a propriedade e as leis restritivas do direito de herança.
C. A. de Araújo Viana
ENTRE os chamados "mestres" da arte moderna, Picasso ocupa um lugar de primeira grandeza. Além de criador do cubismo, seu espírito inquieto o levou aos mais variados estilos e às mais desencontradas escolas. E em todas essas fazes os seus admiradores e críticos acham margem para exclamações consagradoras. Assim, por exemplo, o conhecido crítico de arte inglês prof. Herbert Read declara que "desde sua juventude Picasso mostrou a prodigiosa infalibilidade de um gênio" (Journal of the Royal Society of Arts, Jan. 18, 1946).
Esse mesmo crítico chega a nos assegurar que, em um certo momento de sua criação artística, Picasso projeta em suas telas imagens de seu subconsciente, pintando em estado de transe.
Não se trata de sátira. A sátira, diz o professor Read, é uma arma intelectual, e Picasso não é um artista intelectual, segundo suas próprias e expressas declarações. É ele um artista que, "por intensa concentração de suas faculdades intuitivas, mergulhou profundamente sob a superfície de sua percepção consciente, para explorar o terreno do subconsciente coletivo". E que será que Picasso foi pescar nessa tenebrosa descida ao "subconsciente coletivo"? "É nesse terreno que achamos, de acordo com o mais profundo psicólogo de nosso tempo, os sintomas específicos das desordens psíquicas da sociedade. São os esforços e conflitos desse insondável caos que acham suas compensações nos horrores físicos da guerra e da perseguição. Desse caos Picasso arrancou suas imagens perturbadoras — imagens que são arquétipos, espectros da floresta da noite em que nós todos vagamos, na qual nós todos nos perdemos a menos que salvos por nossas próprias forças de auto-integração" (artigo citado).
* * *
Tudo isso é muito confuso, mas assinalemos alguns pontos altos. Picasso é um gênio. Como tal é infalível. Costuma pintar em estado de transe. Desce então ao terreno profundo do subconsciente coletivo. Ali acha os sintomas específicos das desordens psíquicas da sociedade. Essas horríveis imagens pintadas em estado de transe são espectros do subconsciente coletivo. Picasso refletiria em suas telas as desordens psíquicas da sociedade, de modo que o que se nos afigura um emaranhado grotesco de linhas, veremos se também nos colocarmos em estado de transe, que é a materialização pictórica dos "esforços e conflitos desse insondável caos que acham suas compensações nos horrores físicos da guerra e da perseguição".
Que pensa, porém, o próprio Picasso a respeito de tudo isto? A resposta nos dá Giovanni Papini em uma entrevista imaginaria com o criador do cubismo. Vem ela em "Il libro nero" recentemente publicado pelo autor de "Gog e Magog". Transcrevemos apenas sua parte final.
"Pouco a pouco as novas gerações, apaixonadas da mecânica e do sport, mais sinceras, mais cínicas e mais brutais, deixarão a arte nos museus e nas bibliotecas, como incompreensíveis e inúteis relíquias do passado.
"Um artista que vê claro neste fim próximo, como aconteceu comigo, o que pode fazer? Tarefa árdua demais seria a de mudar de profissão, e perigosa do ponto de vista alimentar.
"Existem, para ele, somente dois caminhos: procurar divertir-se e procurar ganhar dinheiro.
"Desde que a arte não é mais aquilo que alimenta os melhores, o artista pode desabafar como quiser em todas as tentativas de novas fórmulas, em todos os caprichos da fantasia, em todos os expedientes do charlatanismo intelectual.
"Na arte o povo não mais procura a consolação e a exaltação: todavia os delicados, os ricos, os vadios e os destiladores de quintessências procuram o novo, o estranho, o original, o extravagante, o escandaloso. Eu, do cubismo até hoje, satisfiz esses senhores e esses críticos com todas as mutáveis bizarrias que me ocorreram, e quanto menos me compreendiam, tanto mais as admiravam. E à força de divertir-me com essas brincadeiras e com essas acrobacias, com os quebra-cabeças, com os arabescos, com os "rebus", tornei-me célebre rapidamente. E a celebridade significa, para o pintor, vendas, lucro, fortunas, riquezas. E agora, como você sabe, sou célebre e rico. Mas quando estou só, de mim para mim, não tenho a coragem de considerar-me um artista no grande sentido antigo da palavra. Verdadeiros pintores foram Giotto e Ticiano, Rembrandt e Goya: eu sou apenas um divertidor do público, que compreendeu seu tempo e explorou o melhor que pôde a imbecilidade, a vaidade e a cupidez dos seus contemporâneos. É uma amarga confissão a minha, mais dolorosa do que lhe possa parecer, mas tem o mérito de ser sincera".
* * *
Este auto-retrato imaginário nos parece bem fiel. Mas se partisse do próprio pintor de "Guernica" seria mais explícito, para ser realmente sincero. Seus quadros não são apenas malabarismos e extravagâncias para satisfazer o gosto depravado da época. Têm muito de diabólico. Se não pinta em transe, em comunicação com o demônio, Picasso pelo menos dele nos comunica a inquietação e a fealdade.
O que não excluiria a auto-confissão de charlatanice. Pois não é o demônio o pai da mentira?
J. de Azeredo Santos
AFIRMOU certa vez Stafford Crips que o fato mais importante ocorrido após a segunda grande guerra fora a crescente ascendência do esquerdismo em todos os quadrantes do orbe terrestre. Ora, o sinal, a marca característica do esquerdismo é o socialismo. E as chamadas direitas totalitárias que desfraldam, aberta ou dissimuladamente, a bandeira do socialismo ou do estatismo coletivista, não passam de pseudo-direitas que aduzem águas para o mesmo moinho do esquerdismo universal. Diante do papel do nacional-socialismo hitlerista e do socialismo fascista na última conflagração mundial, razão de sobra tinha Goebbels para, em dramática alocução radiofônica pronunciada na antevéspera da queda de Berlim, declarar que a causa do nazismo estava ganha, qualquer que fosse o resultado do embate armado, pela implantação do socialismo em todo o mundo.
Não foi outra a ajuda do socialismo francês à custa da vitória da revolução esquerdista mundial. A derrota da França pode ser levada ao acervo do esquerdismo francês com toda a sua campanha de greves e de entraves à preparação daquele país para o conflito que se avizinhava. O mesmo podemos dizer dos tempos atuais. Por toda a parte as "frentes populares" de cunho esquerdista de antemão se entregam à ignóbil tarefa de preparar a derrota da Europa ocidental diante do perigo de uma invasão soviética. É o que se dá também com o trabalhismo fabiano das Ilhas britânicas e com um certo sindicalismo suspeito, como o que na América do Norte leva à greve os operários das indústrias de aço no momento em que as forças do mundo livre sentem cada vez mais próximo o momento do choque com as hordas do imperialismo moscovita. E desde os acordos secretos feitos pelas nações unidas com a Rússia, o guarda-chuva do espírito de Munique passou a ser usado como arma diplomática contra o sr. Stalin, do mesmo modo que Chamberlain o havia brandido contra Hitler.
Todo esse trabalho de desagregação interna do mundo ocidental pelo esquerdismo proteiforme, que tem fortes aliados na corrupção exercida pelos frangalhos que ainda perduram dos chamados governos liberais e por uma sociedade hedonista que se nega a viver o drama do futuro sombrio que nos aguarda, toda essa imensa obra de sabotagem consciente e organizada vem demonstrar que o problema da luta contra o comunismo não se reduz ao esquema simplista dos que querem encará-lo como uma luta nitidamente delineada entre a América do Norte e a União das Republicas Socialistas Soviéticas.
É preciso que nos capacitemos de que o socialismo não é produto autóctone da Rússia. É mercadoria importada do ocidente europeu, que naquele país encontrou ambiente propicio ao seu impressionante desenvolvimento na corrupção político-social decorrente de vários séculos de afastamento da igreja russa da Cátedra da Verdade.
Já no século passado, há mais de cem anos, houve pensadores católicos com bastante clarividência para prever o papel que estaria reservado à Rússia no drama do totalitarismo socialista que haveria de empolgar e escravizar o mundo. Um desses pensadores foi Donoso Cortês. Dizia ele a 30 de janeiro de 1850:
"Não é minha opinião, entretanto, que a Europa nada tenha que temer da Rússia. Muito pelo contrário; mas para que a Rússia aceite uma guerra geral, para que a Rússia se aposse da Europa, tornar-se-ão necessários antes três acontecimentos que não são somente possíveis, mas ainda prováveis.
"Tornar-se-á necessário, de início, que a Revolução, após haver dissolvido a sociedade, dissolva os exércitos permanentes. Em segundo lugar, que o socialismo, despojando os proprietários, extinga o patriotismo, porque um proprietário despojado não é, não pode ser patriota (desde que a questão seja levada até esse termo, até essa angústia, todo patriotismo morre no coração do homem). Em terceiro lugar, torna-se necessário que se realize a confederação poderosa de todos os povos eslavos sob a influência e o protetorado da Rússia. As nações eslavas contam oitenta milhões de habitantes. (Isto em 1850. Hoje, só a URSS, inclusive a parte asiática, dispõe de 200 milhões de habitantes. Sem contar os territórios ocupados atrás da cortina de ferro, em que poloneses, búlgaros, servo-croatas, romenos, checos, eslováquios, morávios perfazem outros 100 milhões). Pois bem, quando a Revolução houver destruído na Europa os exércitos permanentes; quando as revoluções socialistas tiverem extinguido o patriotismo na Europa; quando, no oriente europeu, se achar consumada a grande federação dos povos eslavos; quando no Ocidente não houver senão dois exércitos, o dos espoliados e o dos espoliadores, então a hora da Rússia soará; então a Rússia poderá passear tranquilamente, de arma em punho, pela Europa; então o mundo assistirá ao maior castigo que haja registrado a história" (discurso sobre a situação geral da Europa, pronunciado na Câmara de Deputados de Espanha).
A essas palavras proféticas Louis Veuillot acrescentava os seguintes comentários:
"Longe de temer a Rússia, muitos nela esperam. Esses tais não estudaram sua política em relação aos católicos, ou não a levam em conta. O governo russo pode participar do erro que nele vê o inimigo e vencedor do socialismo. Esse erro não muda em nada a natureza das coisas. Entre o despotismo moscovita e o socialismo europeu há uma afinidade profunda. Isoladamente, eles agem do mesmo modo e um para o outro; um dia não terão senão uma única e mesma ação.
"Quando, de uma parte, o socialismo houver destruído o que deve naturalmente destruir, isto é, os exércitos permanentes pela guerra civil, a propriedade pelos confiscos, a família pelos costumes e pelas leis; e quando, de outra parte, o despotismo moscovita houver crescido e se achar fortificado como deve naturalmente se fortificar e crescer, então o despotismo absorverá o socialismo, e o socialismo se encarnará no Czar; essas duas apavorantes criações do gênio do mal se completarão uma pela outra. Após haver dado ao Czar seus aliados mais úteis, o socialismo, que não tem nem Deus nem pátria, lhe fornecerá seus mais impiedosos instrumentos. Senhores do mundo, eles esmagarão o mundo com uma cadeia que as almas levarão, como os corpos, e nada de semelhante terá sido visto sobre a terra. Os socialistas ajudarão o Czar a encurralar a consciência, que é a liberdade, em seu último refúgio. Eles lhe denunciarão todo pensamento bastante audaz para não o adorar; e lhe darão, sob seus pés, essa igualdade da degradação, que é o sonho e o suplício de sua inveja.
"Assim será castigado o orgulho da civilização filosófica, assim gemerão, sob o jugo do homem, esses Titãs da ciência e da razão humanas, que empreenderam sacudir o jugo de Deus" (in Introdução às obras de Donoso Cortês, 1862).
Eis o significado profundo da Carta Apostólica do Santo Padre Pio XII aos povos da Rússia e a sua consagração ao Imaculado Coração de Maria, "... porque contra a revolução e o socialismo não há senão um remédio radical e soberano: o catolicismo, única doutrina que representa contradição absoluta da doutrina revolucionária e socialista. Que é o catolicismo? Sabedoria e humildade. Que é o socialismo? Orgulho e barbárie" (Donoso Cortês, doc. cit.).
Nesse quadro soturno de angústias e de sofrimentos para o Corpo Místico de Cristo, que é a Sua Igreja, em que a túnica inconsútil do Redentor da humanidade é dilacerada por toda a parte pelas discórdias, pela apostasia, pela volta ao vômito do paganismo, em que a terça parte socialista do mundo é um deserto no que diz respeito à ação oficial da Santa Igreja, e o resto do mundo cristão assiste, inerme, aos conciliábulos dos herdeiros espirituais dos fariseus, herodianos e saduceus que na noite da Quinta-Feira Santa tramaram o martírio do Filho de Deus, e que agora tentam completar sua obra sinistra no Ocidente cristão, valha-nos a esperança desse grande retorno dos novos oprimidos ao Caminho, à Verdade e à Vida.
Somente haverá Paz para a humanidade quando, reunidos em um só rebanho e sob um só Pastor, os povos hoje escravizados por de traz da cortina de ferro, cantarem com a Igreja Universal: -- "Príncipe dos Apóstolos, tu partiste e tu seguiste o Mestre dizendo-lhe: Morrerei contigo; contigo viverei uma vida feliz; tu foste o primeiro Bispo de Roma, a honra e a gloria da grandíssima cidade; sobre ti se firmou a Igreja" (da Liturgia da antiga Igreja russa).