NOSSA 1ª PÁGINA
A Crucifixão: quadro de pintor desconhecido, do sec. XV, no Palácio da Justiça de Rouen.
Popule meus, quid feci tibi?... Ego te exaltavi magna virtute, et tu me suspendisti in patibulo Crucis — Oh meu povo, que te fiz eu?... Exaltei-te a um grande poder, e tu me suspendeste no patíbulo da Cruz: da liturgia da Sexta-Feira Santa.
... ET TU ME SUSPENDISTI IN PATIBULO CRUCIS
CUNHA ALVARENGA
Na Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo nos é dado contemplar em toda a sua extensão, os abismos a que pode atingir a maldade dos homens. O Verbo Eterno veio ao que era seu, mas os seus não O receberam. Traz-nos a Divina Promessa da Redenção e é escorraçado, é perseguido como um criminoso, é saturado de opróbrios e morto em uma cruz. Ao mesmo tempo nessa grande tragédia contemplamos o mistério insondável do infinito amor de Deus, as riquezas entesouradas no seio da Igreja e que Jesus Cristo adquiriu com Seu Sangue. Eis porque nos diz a Santa Igreja que Seus filhos se gloriam de uma Cabeça coroada de espinhos, "o que é prova evidente de que a verdadeira gloria e grandeza não nascem senão da dor" (Encíclica "Mystici Corporis").
E nesta quadra litúrgica em que vemos assinalada a hora do poder das trevas, desejamos levar os nossos leitores a fazer conosco algumas reflexões sobre o seguinte tema: assim como o Redentor do gênero humano foi perseguido, caluniado, atormentado por aqueles mesmos que vinha salvar, assim a sociedade por Ele fundada também neste ponto se parece com o Seu Divino Fundador. Nos tempos atuais, diz o Santo Padre Pio XII, "a Igreja de Deus não só é soberanamente desprezada e perseguida por aqueles que, abandonada a luz da sabedoria cristã, voltam miseravelmente às doutrinas, usos e costumes do antigo paganismo, mas frequentemente é desconhecida, descurada, aborrecida por muitos cristãos, que se deixam seduzir pelas aparências, pelas falsas doutrinas, ou arrastar pelos atrativos e corrupção do mundo" (doc. cit.)
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Já os Atos dos Apóstolos, as Epístolas, o Apocalipse nos premunem contra o perigo das heresias. "Do mesmo modo que entre o povo tem havido falsos profetas, assim também haverá entre vós falsos mestres, que introduzirão heresias perniciosas e negarão o Senhor que os resgatou, atraindo sobre si perdição repentina" (II Pedro 2,1). Diz o Espírito Santo à Igreja de Éfeso: "Uma coisa, porém, tens: é que detestas as obras dos nicolaítas, que também eu detesto" (Ap. 2,6). E à Igreja de Pérgamo: "Também tens aí uns adeptos das doutrinas dos nicolaítas" (Ap. 2, 15). Santo Irineu menciona os nicolaítas como uma seita de gnósticos da classe ofita. É também aos gnósticos que São Paulo visa em sua Epístola a Timóteo: "Diz claramente o Espírito que, em tempos posteriores, uns quantos hão de apostatar da Fé, dando ouvidos a espíritos embusteiros e doutrinas de demônios. Aderirão a mestres mentirosos, ferreteados pela própria consciência" (I Tim. 4, 1-2). E o previne no fecho da Epístola: "Ó Timóteo, guarda o bem que recebeste; foge do mundano e vão palavreado e das questões sobre o que falsamente chamam "conhecimento"; alguns que dele fizeram profissão apostataram da Fé" (I Tim. 6, 20-21). Nos tempos apostólicos já essas seitas gnósticas se haviam difundido largamente: "Muitos sedutores se têm espalhado pelo mundo. Negam que Jesus Cristo apareceu em carne" (II João, 1,7),
... Inimigos da Encarnação do Verbo, herdeiros dos cultos demoníacos que se perdem na noite do paganismo, estabelecem os gnósticos a oposição entre o espírito e a matéria. Tentam se elevar acima da natureza e achar a salvação através da gnose, não na fé acompanhada pelas boas obras, mas no conhecimento secreto, com que Lúcifer tentou a Adão e Eva no paraíso. À doutrina ortodoxa de que o homem foi remido do pecado pela Encarnação do Verbo, substituíam a de que o espírito humano deve ser resgatado da matéria através do conhecimento religioso, a gnose. Segundo eles, diz-nos Santo Irineu, o fim de todas as coisas será quando os homens espirituais forem formados e aperfeiçoados pela gnose ou ciência. Então, tendo toda a seiva espiritual recebido sua perfeição, os homens espirituais, despojados de suas almas e tornados puros espíritos, entrarão no Pleroma, ou plenitude divina, onde nada de animal persistirá. Então o fogo que se acha oculto no mundo aparecerá, incandescerá, consumirá toda a matéria, e se consumirá com ela, até se extinguir completamente (S. Iren., Ad. Haeres. 1,1).
"Negam que Jesus Cristo apareceu em carne", diz São João. Com efeito, foi o segundo Cristo, filho do Demiurgo, diziam eles, que passou por Maria, como por um canal. A Virgem Santíssima não seria Mãe de Deus, pois o Salvador, saído do Pleroma com as perfeições de todos os eons, descera nesse Cristo em seu batismo. Mas se retirou quando ele se apresentou a Pilatos, de modo que foi somente Cristo-homem que sofreu a morte na cruz.
Ademais, entre outros sinais, diz São Paulo, os gnósticos negam o casamento. Entendendo ser a matéria má em si mesma, procuravam desfazer-se dela. Daí proibirem o matrimônio como fonte de novos seres materiais, caindo assim nos maiores horrores da licenciosidade, conforme testemunho do próprio Apóstolo. Daí, também, proibirem a posse dos bens terrenos, e praticarem o coletivismo, como os ebionitas, uma das seitas gnósticas dos tempos apostólicos. Daí se rebelarem contra a autoridade religiosa ou civil, que emana da Lei, portanto de um princípio inferior à ordem dos puros seres espirituais.
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Ao descrever, em sua História das Variações das Igrejas Protestantes, as seitas da Idade Média, faz Bossuet uma reflexão impressionante. Depois de haver observado que o maniqueísmo (ou gnosticismo), do qual essas seitas não passavam de mera continuação, é a única heresia que foi predita pelas Sagradas Escrituras em seus caracteres particulares, acrescenta ele: "Por que, entre tantas heresias, o Espírito Santo não quis marcar expressamente senão essa? Os Padres se admiraram disso, e deram ao fato as razões que lhes foi possível excogitar em sua época: mas o tempo, fiel intérprete das profecias, nos descobriu a causa profunda dele, e ninguém mais se admirará de que o Espírito Santo haja tomado um cuidado tão particular em nos premunir contra essa seita, depois que se viu que foi ela que por mais tempo e mais perigosamente infectou o Cristianismo: por mais tempo, porque tantos séculos tem durado; e mais perigosamente, porque, sem irromper com ruído como as outras esteve oculta tanto quanto lhe foi possível dentro da própria Igreja... Após Marcion e Manes, a detestável seita sempre teve sua sequência funesta... Era particularmente a heresia dos últimos tempos e o verdadeiro mistério de iniquidade, como o denomina São Paulo. Quando ela foi extinta em todo o Ocidente, viu-se enfim chegar o termo fatal do desencadeamento de Satanás... Os restos do maniqueísmo, muito bem conservados no Oriente, se derramaram sobre a Igreja latina... Uma fagulha acendeu um grande incêndio, e o braseiro se estende quase que por toda a terra" (Hist. des Variations des Egl. Prot. liv. IX).
Como um de seus sinais distintivos, valeu-se sempre o gnosticismo da idéia da evolução, ou otimismo utópico, baseando-se em uma tríplice gradação, cada vez mais perfeita, no sentido da História. De início, houve o reino sombrio do Criador e Legislador judaico, depois o Evangelho da Redenção e da Fé, enfim a Gnose seria a vitoria sobre todas as imperfeições.
Na proliferação de erros religiosos e sociais, podemos entrever, através das idades, a permanência desse monstro. O montanismo, por exemplo, no fundo não passou de gnosticismo, apesar de sua forma um pouco diferente. Dividia essa seita a evolução da humanidade em três fases: a infância, em que predominava a idéia do Pai, e que era formada pela Lei e pelos Profetas, do mesmo modo que a juventude, inaugurada pelo Evangelho de Cristo, não seriam senão etapas transitórias. A idade adulta, final, seria a do puro domínio do Espírito. Mas onde o montanismo mais se identificava com o gnosticismo era quando dividia a humanidade em três classes, segundo os graus de sua cultura intelectual e religiosa: os carnais ou hílicos, os semiperfeitos ou psíquicos, e os completamente perfeitos ou pneumáticos. Tertuliano nos faz conhecer com que desdém e desprezo estes últimos olhavam os psíquicos, ou seja, os católicos.
A mesma tendência de espírito aparece mais ou menos na formação
(continua)