MONT SAINT MICHEL, “MARAVILHA DO OCIDENTE”

QUEM viaja pela França, aproximando-se do mar entre Avranches e Saint-Malô, vê surgir no horizonte uma fantástica visão: um imenso monte, encimado por edifícios, sobre os quais se assenta uma igreja, que lança, para o céu, do alto de sua torre, uma enorme flecha, sobre a qual pousa uma gigantesca estátua de S. Miguel Arcanjo.

É o Mont Saint-Michel, santuário do Príncipe da Milícia Celeste, centro universal de peregrinações, onde a piedade cristã, durante séculos, tem vindo impetrar o auxílio do vencedor de Lúcifer; fortaleza invencível da França, nunca conquistada pelo inimigo; monumento, admirável de elegância e majestade, do gênio artístico e da piedade da Filha primogênita da Igreja e por isso chamado "a maravilha do Ocidente".

Sua história, gloriosa como a da nação que o edificou, remonta à era dos Merovíngios, quando a civilização medieval começava a nascer pelo esforço dos Santos que, suscitados pela graça, formavam aos poucos os povos na doutrina e na vida cristã.

A APARIÇÃO DE S. MIGUEL ARCANJO

No início do século VIII, o Monte Tumba, como então se denominava o majestoso rochedo, era habitado por eremitas. Eles haviam ali construído duas pequenas capelas, dedicadas a Santo Estevão e São Sinforiano, e levavam uma vida consagrada à oração e às mortificações.

Governava nessa época o bispado vizinho de Avranches Santo Aubert. Da ilustre família dos Genetas, dotado de grande cultura, desde moço se encaminhara para o serviço de Deus, onde, contam as crônicas do tempo, "se comportava de tal modo em todas as suas ações, que era tido antes por um anjo do céu que por um homem mortal". Sua eleição para o episcopado deu-se em circunstâncias milagrosas; o Clero e o povo, reunidos na Igreja, após uma semana de jejum e orações para impetrar as luzes do Espírito Santo, ouviram uma voz tonitruante que lhes dizia: "Aubert, o Presbítero, será vosso Pontífice".

Certa noite o Santo Bispo teve em sonhos uma visão. S. Miguel Arcanjo lhe apareceu, ordenando-lhe que edificasse no Monte Tumbo uma igreja em sua honra, pois queria ser lá venerado como o era no Monte Gargano, na Itália. Santo Aubert ficou profundamente surpreso, e, depois de muito hesitar, julgou não dever dar crédito à aparição, que mais lhe parecia ser uma ilusão do demônio.

Alguns dias após, o Arcanjo apareceu-lhe novamente. Com ar severo, reafirmou que sua vontade era que se construísse uma igreja onde havia indicado; e que Santo Aubert deveria obedecer sem mais demoras. Mas este continuou em dúvida; pôs-se entretanto a rezar e jejuar com maior intensidade, pedindo a Deus que o elucidasse.

Pela terceira vez S. Miguel lhe apareceu em sonhos. E repreendendo-o por sua incredulidade, tocou-lhe na testa com o dedo. Reiterou suas ordens, e acrescentou que a igreja deveria ser construída no local exato onde encontrassem preso um touro, que um ladrão havia escondido no Monte.

Ao acordar, Santo Aubert tinha na testa uma concavidade, exatamente no lugar em que S. Miguel o havia tocado. Não tendo mais nenhuma dúvida, reuniu seu Clero e narrou-lhe o sucedido. Suas palavras produziram um grande júbilo. Todos se sentiam comovidos pela graça excepcional com que Deus os honrava; de terem o Príncipe da Corte celeste como especial protetor.

Puseram-se logo a caminho do local indicado, cantando hinos e salmos, e o povo, informado da aparição, juntou-se a eles com igual alegria. Depois de terem caminhado três horas, chegaram ao pé do Monte: Santo Aubert subiu primeiro, e chegando ao cimo, encontrou o que o Arcanjo lhe dissera. O touro, preso ali, marcava o sitio dá futura igreja, que foi logo abençoado.

A PRIMEIRA IGREJA É CONSTRUÍDA

SANTO AUBERT, reunindo um grande número de trabalhadores, fez iniciar sem demora a edificação da igreja. Tendo decidido permanecer no monte até que ela fosse terminada, ficava durante os trabalhos, sentado numa pedra que por muito tempo foi conservada em sua honra. Assim foi construída a primeira igreja, que era pequena, simples e piedosa.

O santo Bispo estava entretanto embaraçado por não ter nenhuma relíquia de S. Miguel para expor à veneração dos fiéis. Foi quando o Arcanjo novamente lhe apareceu, dizendo-lhe que enviasse dois clérigos ao Monte Gargano, onde obteria as relíquias desejadas. Neste monte, no sul da Itália, estava situado o único santuário da Europa consagrado a S. Miguel, que ali aparecera no ano de 493, deixando como testemunho de sua presença, um véu violeta e a marca de seus pés sobre uma pedra.

Os mensageiros enviados por Santo Aubert, depois de seis meses de viagens, chegaram ao Monte Gargano, onde foram recebidos pelo Abade, o qual se rejubilou ao saber que S. Miguel queria ter outro santuário no Ocidente, tratou-os com muito carinho e deu-lhes uma parte do véu e da pedra da aparição. Cheios de gratidão, os dois clérigos apressaram-se a regressar à França com seu precioso tesouro, que pelo caminho operou muitos milagres, sobretudo restituindo a vista aos cegos.

No dia da dedicação da igreja, quando Santo Aubert, à frente de uma grande assembléia de Bispos, senhores feudais e povo, iniciava a cerimônia, correu a noticia de que os mensageiros estavam para chegar. O Santo Bispo, terminada a dedicação, partiu em procissão ao seu encontro, recebeu as relíquias depois de tê-las incensado, e conduziu-as em meio de hinos de alegria para o santuário. Foi então celebrada com grande pompa a Santa Missa.

Após a cerimônia, Santo Aubert anunciou que instituiria doze cônegos na nova igreja, e que doaria para a sua manutenção as terras que herdara de sua família. Foi assim solenemente iniciado o culto ao Príncipe da Milícia Celeste no Monte que ele próprio se dignara escolher.

O Bispo Aubert viveu ainda muitos anos, governando a diocese de Avranches. Quando morreu, seu corpo foi levado, debaixo da tristeza profunda de todo o seu povo, para a igreja de S. Miguel, onde foi sepultado. A veneração dos fiéis, durante séculos, honrou solenemente seus santos despojos, que infelizmente se perderam durante a Revolução Francesa, quando a Abadia foi saqueada. Seu crânio, porém, foi salvo da pilhagem; está atualmente na Catedral de Avranches, e pode-se ver a marca que S. Miguel imprimiu ao tocar-lhe.

CENTRO DE FERVOR E PEREGRINAÇÃO

O PEQUENO santuário erguido por Santo Aubert adquiriu com o tempo grande importância. Em 966 Ricardo I, Duque da Normandia, anexou-lhe uma Abadia, substituindo os cônegos por monges beneditinos, — trinta a principio, mais tarde sessenta. Seu sucessor Ricardo II, cujo casamento fora celebrado no Monte, fez aos monges ricas doações. O mosteiro foi sendo assim consideravelmente ampliado, uma imponente igreja foi construída. A energia e a santidade dos primeiros Abades elevaram a um alto nível a vida religiosa da comunidade. Com Robert de Torigny, que a governou em meados do século XII, a Abadia se tornou um dos grandes centros religiosos e intelectuais da França.

O Mont Saint Michel atraia, desde o século XI, inumeráveis peregrinações. A França erguia-se então ao chamado da Primeira Cruzada, e a devoção ao Príncipe dos Exércitos Celestes redobrava de intensidade. O acesso ao Monte era difícil; a maré, extremamente rápida, ameaçava os peregrinos; e quando ela se afastava, as areias movediças podiam tragá-los. "São Miguel do perigo do mar", era o nome com que o santuário era conhecido; porém, naqueles tempos de fé profunda, não somente homens validos, mas mulheres e velhos, às vezes até legiões de crianças, enfrentavam ao som de cânticos religiosos todos esses riscos para venerar o Arcanjo.

Às peregrinações a Abadia do Mont Saint-Michel deveu sua prosperidade. Os fiéis levaram-lhe uma infinidade de pequenos donativos, a que se acrescentavam as grandes doações dos reis e senhores feudais: terras, florestas, colheitas, até caixas cheias de ouro depositadas sobre o altar. Uma pequena cidade de estalagens e albergues foi sendo construída no sopé do Monte. A Abadia tornou-se uma das mais ricas da França, e esta riqueza permitiu, no século XIII, a construção dos edifícios que até hoje maravilham o mundo.

A EDIFICAÇÃO DA "MARAVILHA" GÓTICA

Em 1203, os bretões que sitiavam o Monte por ocasião da guerra com João sem Terra, não podendo conquistá-lo, incendiaram-no quase inteiramente. O rei Filipe Augusto, para reparar o desastre e reconciliar-se com os monges, tornados seus súditos pela anexação da Normandia à França, fez-lhes grandes donativos. O Abade Jourdain empreendeu então a construção do atual edifício do mosteiro. Corria o glorioso século XIII, apogeu da Idade Média. O mesmo élan de que nasceram as Cruzadas fazia surgir da terra as catedrais, expressão da grandeza de alma e da religiosidade do povo cristão. A abadia gótica do monte é um dos mais admiráveis empreendimentos do século de ouro da História.

A obra era extremamente difícil: devido à estreiteza do espaço, foi necessário construir uma série de edifícios superpostos: as salas inferiores baixas e maciças, com colunas grossas, suportando o peso das que se lhes superpunham, elegantes e altivas. Obra hercúlea, toda em pedra, que levou trinta anos para sua realização.

0 edifício terminado assombrou de tal modo os contemporâneos, que estes não hesitaram em chamá-lo "La Merveille", a Maravilha. Suas salas góticas exprimem a serenidade e a elevação da vida medieval; o claustro, com colunas finas e delicadas, reflete o equilíbrio e a harmonia da alma cristã.

S. Luiz, rei de França, visitou em 1254 a Abadia recém-construída, e enriqueceu-a com régios presentes.

RESISTÊNCIA HERÓICA DA FORTALEZA MONACAL

A GUERRA dos Cem Anos se aproximava. A França iria conhecer o período mais sombrio de sua história.

O Mont Saint-Michel, bastião da costa francesa, situado em lugar de grande importância estratégica, já de há tempos vinha sendo circundado de muralhas. A Abadia, fortificada, se tornava ao mesmo tempo um mosteiro e uma praça-forte; o Abade era superior dos religiosos e comandante dos soldados.

Durante a invasão inglesa, o Monte permaneceu sempre fiel à coroa de França. Suas fortificações, reforçadas pelo Abade Robert Jolivet, tomaram a configuração que têm até hoje — quando este, ao saber que os ingleses haviam ocupado Rouen, em 1419, julgou perdida a causa francesa, passou-se para o campo do rei da Inglaterra, e veio com as tropas inglesas atacar a fortaleza. Foi então que o Monte conheceu as horas mais heróicas de sua crônica. Sob o comando do Capitão Louis d'Estouteville, os monges e a guarnição de 119 cavaleiros normandos recusaram-se a abrir as portas aos ingleses, e suportaram um cerco de quinze anos, resistindo a todos os ataques, passando pelas maiores privações. Chegaram a organizar três sortidas que causaram graves perdas aos sitiantes, e nunca se renderam.

S. Miguel Arcanjo, que apareceu a Joana d'Arc, chamando-a para salvar sua pátria, não permitiu que seu santuário fosse jamais ocupado pelos inimigos da França, da qual ele é o Anjo protetor.

DECLINIO DO ARDOR ESPIRITUAL

DURANTE esta heróica resistência o coro da igreja desabou. Terminada a guerra, o novo Abade, Cardeal d'Estouteville, irmão do defensor do Monte, empreendeu sua reconstrução, ao mesmo tempo que se empenhava por obter a abertura do processo de reabilitação de Joana d'Arc. A obra, após uma longa interrupção, ficou terminada em 1521: é o atual coro em estilo flamboyant, que se ergue, majestoso e impregnado de espírito sobrenatural, como coroa da "Maravilha do Ocidente".

A instituição, em 1516, dos Abades comendatários, que, nomeados arbitrariamente pelo poder real, viviam na corte sem se interessar pela vida religiosa de seu mosteiro, levou a comunidade do Monte à decadência. Assim mesmo, por ocasião da guerra contra os protestantes o Monte permaneceu inexpugnável, repelindo os ataques do famoso capitão huguenote Lorges de Montgomery.

Em 1622 os antigos monges foram substituídos pelos beneditinos reformados de S. Mauro. Estes pouco a pouco restabeleceram o fervor e o gosto dos estudos na Abadia, se bem que ela não reconquistasse o brilho e o prestígio dos séculos anteriores. Infelizmente os mauristas, mutilaram a igreja e a "Merveille" ao adaptarem-nas para seu uso.

A Revolução Francesa varreu a Abadia com um tufão de impiedade: os monges se dispersaram, o mosteiro foi saqueado, as relíquias profanadas, e o edifício transformado durante setenta anos em prisão, o que resultou em novas e maiores mutilações.

Depois, por doze anos a Abadia foi novamente ocupada por religiosos. Nessa época se celebrou a Coroação de S. Miguel pelo Episcopado francês, cerimônia que reuniu vinte mil peregrinos. Em 1877, porém, os monges tiveram que deixar definitivamente o Monte, ao se iniciarem os trabalhos de restauração, que aliás restituíram aos edifícios sua fisionomia medieval.

SÍMBOLO E PROMESSA DA VITÓRIA DA IGREJA

O MONT SAINT-MICHEL é hoje um museu, guardado por funcionários do Serviço de Monumentos Históricos da França. Suas paredes proclamam ainda a glória do passado, mas são apenas um esqueleto de pedra, cuja alma foi extirpada pela impiedade contemporânea. O ódio infernal que em nossos dias se atira com violência nunca vista sobre a Igreja, parece exultar com o triunfo que conseguiu profanando o santuário do Príncipe da Milícia Celestial.

Mas S. Miguel vela pela Igreja, da qual é o guardião, como vela pelo Monte onde quis que a Igreja o venerasse. A estátua no cimo da flecha da Abadia, que o representa revestido de uma armadura medieval, erguendo a espada para fulminar o dragão infernal, não é apenas um símbolo: é sobretudo uma promessa.

Tenhamos confiança em seu poder, e esperemos ardentemente pelo dia em que, sob as ordens da Rainha do Céu, ele virá aniquilar o poder das trevas e implantar na terra o reinado de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Civilização Cristã.

Neste dia o Mont Saint-Michel renascerá para a vida monástica, para. a devo, 06 dos fiéis, para o louvor do Anjo da Paz, para a maior glória de Deus.

O claustro da Abadia


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

A "QUESTÃO DOS CLÁSSICOS"

Fernando Furquim de Almeida

O golpe de Estado de 2 de dezembro de 1851, transformando o Príncipe-Presidente Luís Napoleão no Imperador Napoleão III, tornou mais profunda a cisão entre os católicos e precipitou a constituição da corrente liberal chefiada por Mons. Dupanloup.

Depois de passados os ressentimentos da luta provocada pela lei Falloux, Montalembert se aproximou novamente de Veuillot, e a possibilidade de reconciliação dos dois grandes líderes levava a esperar o ressurgimento do Partido Católico. Ao tomar posse na Academia Francesa, Montalembert pronunciou um discurso de orientação vigorosamente ultramontana, que lembrava o antigo chefe do movimento que tantas glórias conquistara na campanha contra a Universidade.

O segundo império foi a princípio apoiado por Montalembert e Louis Veuillot. Ambos estavam iludidos, e não tardaram a reconhecer seu próprio erro. Mas enquanto Veuillot se manteve numa posição de caráter nitidamente católico, combatendo o regime naquilo que era contrário aos princípios da Igreja, Montalembert se atirou nos braços da oposição liberal e renegou novamente seu passado ultramontano, com a publicação do livro "Des intérêts catholiques au dix-neuvième siècle", que pode ser considerado o marco inicial do liberalismo católico na França.

O "Univers", nessa época, já tinha uma influência considerável sobre a opinião católica. Louis Veuillot transformara-o, de pequena folha circunscrita à Arquidiocese de Paris, em um grande diário de repercussão nacional. Expondo clara e corajosamente os princípios católicos — exclusivamente estes — e defendendo a Igreja onde quer que o erro se apresentasse, sua leitura não deixava ninguém indiferente. Recebido com entusiasmo pelos católicos, era combatido e temido por quantos se afastavam da ortodoxia.

Enquanto não liquidasse com um adversário desse porte, o liberalismo religioso não tinha possibilidades de se propagar. Como vimos, tinham fracassado todas as tentativas de fundação de outra grande folha católica em Paris, assim como as repetidas intervenções de Mons. Sibour contra o "Univers". A posição de Veuillot no jornal era sólida, e já não era possível afastá-lo de sua direção. Da frente única contra ele, o chefe incontestável era Mons. Dupanloup, que não deixou escapar nenhuma oportunidade para combater o órgão de Veuillot. Sua campanha era sistemática e organizada.

Em 1853, Mons. Gaume, Vigário Geral da Diocese de Nevers, publicou um livro, "Le ver rongeur des sociétés modernes", no qual sustentava que a leitura dos clássicos pagãos era nociva à formação da juventude, e em seu lugar preconizava o estudo dos clássicos cristãos nas escolas secundárias, principalmente nos seminários menores.

O Cardeal Gousset, Arcebispo de Reims, apoiava a tese de Mons. Gaume; e Mons. Parisis, Bispo de Arras, até já executara em sua diocese a reforma por ele sugerida. O livro, no entanto, provocou discussão entre os católicos. Veuillot se alinhou entre seus defensores.

Mons. Dupanloup, antes de ser nomeado Bispo de Orléans, dirigira o seminário menor de Paris e procurara torná-lo um colégio modelo, que servisse tanto para os jovens que se destinavam ao sacerdócio como para aqueles que apenas desejavam uma boa cultura humanista. Daí a orientação clássica que imprimira aos estudos do seminário. Renan, que foi seu aluno, afirma ser esta o resultado da fé absoluta de Mons. Dupanloup nos estudos clássicos, que considerava parte da Religião.

Émile Faguet, na biografia que escreveu do Bispo de Orléans, mostra que este se sentia visado pelo livro de Mons. Gaume, pois "era o maior humanista do mundo, e no seminário menor da diocese de Orléans fazia representar em grego Philocteto e Édipo em Colona". Por outro lado, as opiniões a respeito dos clássicos se dividiam entre os próprios ultramontanos. A ocasião parecia, assim, propícia para dar um golpe de morte no "Univers", que tanto embaraçava o liberalismo católico que então se formava.

O Bispo de Orléans não podia deixar passar essa oportunidade, e entrou nos debates de modo espetacular. O livro de Mons. Gaume, expondo idéias perfeitamente suscetíveis de serem discutidas com serenidade — mais tarde diria Veuillot: "se os partidários da adoção dos clássicos católicos no ensino da juventude se enganavam, seu erro não era tão perigoso, e parecia fácil guardar moderação ao refutá-los" — passou a ser o centro de um debate ardente e apaixonado, conhecido pelo nome de "questão dos clássicos". Para pôr-lhe fim, foi mister a intervenção da Santa Sé através da encíclica "Inter-multiplices", que trata dos vários problemas que então agitavam os católicos franceses.


NOVA ET VETERA

MENTALIDADE DE TERMITAS

J. de Azeredo Santos

ALÉM dos católicos revolucionários, que se colocam claramente no campo esquerdista, vendo no coletivismo uma etapa de progresso sobre a atual ordem de coisas capitalista, temos também aqueles que procuram ser imparciais e equilibrados, os que não admitem que se fale contra o regime socialista sem que por equidade se distribuam as mesmas bordoadas ao regime capitalista.

Ora, uma coisa é pugnar por um regime ideal de produção fundado nas bases cristãs da organização social, segundo o pensamento da Igreja, e outra é ajudar, indiretamente embora, a faina dos que procuram destruir o que ainda resta de responsabilidade pessoal na atual ordenação econômica, quando se vê que o usufrutuário imediato dessa teoria da terra arrasada é o socialismo que invade a sociedade humana por todos os lados.

Nem capitalismo, nem socialismo, preceituam para nossos dias certos católicos que procuram permanecer neutros e equidistantes no mundo da lua, fechando os olhos à realidade prática que nos rodeia.

Menos ingênuos, e portanto mais responsáveis pela confusão que causam com sua atitude, são aqueles católicos que, embora vendo claramente que o socialismo é o herdeiro presuntivo do capitalismo liberal segundo os plano da seita que gerou a ambos, apregoam "ser o socialismo, como sistema econômico (desde que seja apenas um sistema econômico e não uma filosofia materialista da vida), mais compatível com a cristianização da sociedade do que o capitalismo".

FUNDAMENTOS BÁSICOS DO REGIME CAPITALISTA

Segundo este modo de ver, mereceria o regime capitalista ser mais combatido que o socialista. Vejamos, entretanto, como tal posição se afasta do pensamento da Igreja. Com efeito, como já vimos no último rodapé, o regime socialista é condenável em si mesmo, em sua própria essência, como regime econômico que vai contra a lei natural. O mesmo não acontece com o regime capitalista, que em si não é condenável, diz Pio XI, tanto que "Leão XIII pôs todo o empenho em ajustar essa organização econômica às normas da reta ordem: por onde é evidente que ela em si mesma não pode ser condenada. E, na realidade, não é por sua natureza viciosa; mas viola a reta ordem quando o capital escraviza os operários ou a classe proletária com o fim e com a condição de desfrutar a seu arbítrio e vantagem a empresa e mesmo toda a economia, desprezando a dignidade humana dos operários, o caráter social da economia e a própria justiça social e o bem comum" (Enc. "Quadragesimo Anno").

Em seus elementos básicos e essenciais, o regime capitalista não é, portanto, condenável. Fundamenta-se ele na instituição da propriedade privada, que é de direito natural. Fundamenta-se na liberdade de iniciativa, isto é, no direito que tem o homem de dispor livremente, dos seus bens de consumo e produção, respeitada a lei moral. Supõe a distinção entre o capital e a trabalho, isto é, como diz Pio XI, "aquela maneira de proceder no mundo econômico pela qual uns concorrem com o capital e outros com o trabalho, como o mesmo Pontífice (Leão XIII) definia com uma expressão feliz: Não pôde existir capital sem trabalho, nem trabalho sem capital". E nisto em nada fere a justiça, uma vez que as duas partes respeitem mutuamente seus direitos e deveres. Outra característica do regime capitalista é o espírito de lucro e a tendência à acumulação de capitais. O lucro, conservado dentro de justos limites, é lícito e se baseia na operosidade e na poupança, ou seja, no fato de o homem produzir não somente para seu próprio consumo imediato, mas também para estabelecer trocas com outros produtores e fazer reservas para o futuro, o que constitui a anemia da previdência social. O mesmo se diz do acúmulo de capitais, ou da riqueza. Entram aqui em jogo, para tornar condenáveis os excessos do regime capitalista, não essas características em si mesmas consideradas, mas as paixões humanas, a cobiça, a usura, a procura desenfreada dos prazeres e do mando, que levam o acúmulo de capitais a se tornar tão vultoso que fere o próprio bem comum.

UM DILEMA INEXISTENTE

Frisava Pio XI não ser o regime capitalista "o único modo vigente de organização econômica; existem outros, dentro dos quais vive uma multidão de homens, muito importantes por seu número e por seu valor, — por exemplo, a profissão agrícola; nela a maior parte do gênero humano, honesta e honradamente, acha seu sustento e bem estar" (Enc. "Quadragesimo Anno"). Só os esquerdistas, obcecados pela luta de classes, é que estabelecem o dilema capitalismo-socialismo e não vêem a variedade da nossa realidade econômica e como, por exemplo, o regime em que capital e trabalho estreitamente colaboram, é livremente praticado em diversos e extensos setores da hodierna economia, sem falar no testemunho da História quanto a outras formas de organização econômica.

A ordenação capitalista foi, porém, se estendendo pelo mundo moderno, "tanto que mesmo a economia e a condição social dos que se acham fora de sua esfera de ação estão invadidas e penetradas por ela, sentem suas vantagens ou inconvenientes e defeitos, e deles de algum modo participam" (Enc. citada).

Ora, quais são os defeitos do capitalismo apontados por Pio XI como passíveis de correção? Veremos que aquilo que no regime capitalista é excrescência que pode e deve ser extirpada, é da própria essência do, socialismo.

DITADURA SOCIAL ATRAVÉS DA ECONOMIA

Com efeito, que cita Pio XI em primeiro lugar ao enumerar os males do capitalismo hodierno? "Primeiramente, salta à vista que em nossos tempos não se acumulam somente riquezas, senão também se criam enormes poderes e uma prepotência econômica despótica em mãos de muito poucos. Muitas vezes não são estes nem donos sequer, mas apenas depositários e administradores, que regem o capital à sua vontade e arbítrio" (Enc. citada).

Ora, que é o socialismo senão essa mesma "prepotência econômica despótica em poucas mãos" de meros administradores? Que é o socialismo senão o "predomínio sobre o poder público" através da economia? Que é a ordenação socialista senão a entrega da vida econômica a "potentados extraordinariamente poderosos", tipo Malenlcov, Perón ou Attlee, "donos absolutos da vida econômica", e que "governam a concessão dos bens e os distribuem a seu gosto"? Dir-se-ia que os manipuladores da máquina burocrática socialista, fabiana ou comunista, "administram o sangue do qual vive toda a economia, e que de tal modo têm em sua mão, por assim dizer, a alma da vida econômica, que ninguém poderia respirar contra sua vontade". Estas palavras, aplicadas por Pio XI aos excessos do regime capitalista, não são o retrato fiel do domínio socialista sobre a sociedade humana, abstração feita da imposição de uma filosofia de vida que, como já dissemos, apenas representa uma agravante do erro socialista?

CARACTER IMPESSOAL DA ORGANIZAÇÃO SOCIALISTA

Em resumo, o que Pio XI sobretudo condena no capitalismo é a prepotência econômica despótica em mãos de muito poucos, o que impede o homem de "contribuir, com sua voluntaria colaboração e responsabilidade pessoal, à manutenção e desenvolvimento, também pessoal, da vida social" (Pio XII na rádio-mensagem do Natal de 1952). Esse caráter impessoal da organização da vida social, típico do socialismo, que atenta em primeira linha contra a pessoa humana "fonte e meta da vida social, imagem de Deus em seu mais íntimo ser" (ibidem).

A economia como arma política e de opressão dos povos, eis o que representa o ápice dos malefícios do capitalismo na voz da Igreja. E termina Pio XI sua condenação dos excessos do regime capitalista dizendo que "a livre concorrência se destruiu a si própria". Daí "a prepotência econômica suplantou o mercado livre". Toda a economia se tornou dura, cruel, implacável. Ao que se podem acrescentar os "danos gravíssimos que nasceram da confusão e mistura lamentável das atribuições da autoridade pública e da economia". Ora, que é o socialismo senão a extinção radical do mercado livre? Que é o socialismo senão o poder econômico confundido com o poder político? E a menos que se mude a natureza humana, o que impedirá esse desmedido poder econômico de se tornar duro, cruel, implacável, como de fato acontece onde o socialismo já lançou seus tentáculos?

Corresponde, portanto, ao trabalho inconsciente das térmitas fazer coro com os socialistas no seu afã de demolir até as suas bases a atual ordenação econômica alicerçada na propriedade privada, na responsabilidade pessoal, na liberdade de iniciativa. Corrijamos os excessos do regime capitalista, essa demasiada concentração do podar econômico que vem preparando as veredas para o socialismo. Mas tenhamos o cuidado de não destruir o que no capitalismo existe e não lhe é exclusivo, mas representa o substrato de toda e qualquer ordem econômica fundamentada na lei natural.