A luta entre a Cruz e o Crescente no Marrocos

VISTA GERAL DA SITUAÇÃO NO PROTETORADO

J. Nevez

CASABLANCA, março — Apresentar em poucas linhas um apanhado das causas e das possibilidades de êxito dos movimentos nacionalista e comunista no Marrocos pode, na verdade, passar por uma temeridade. Vou contudo me aplicar a essa tarefa, não pelo desejo fútil de enfrentar a dificuldade, mas afim de pôr os leitores brasileiros ao corrente, o mais objetivamente possível, do que se passa no Protetorado francês.

Abordemos o tema essencial: o nacionalismo e o comunismo. Permiti que eu agrupe essas duas correntes sob o nome de "fenômenos anti-franceses". Poderia chamá-los de "anti-cristãos", pois é incontestável que, para um marroquino, os franceses são antes de mais nada cristãos. Infelizmente, é bem certo que na realidade eles nem sempre o são; mas apesar disso o nome genérico aplicado aos franceses pelos marroquinos, é o de "roumi", isto é, romano, ou ainda o de "neçrani", ou seja, nazareno. E isso é assas significativo.

Todo ódio contra o francês será, portanto, de origem religiosa; será o ódio do muçulmano contra o Infiel.

Inicialmente, precisemos os fatos: apenas uma minoria de marroquinos odeia a França. Num total de perto de 8 milhões de habitantes indígenas, uns 20.000 estão inscritos em partidos anti-franceses. Outros... 15.000 estão sob a influência de organismos que preconizam a independência mas admitem uma colaboração francesa no terreno técnico. A estes dados, acrescentemos uma plebe citadina, indiferente nos períodos de calma, mas que, como acontece em todas as regiões do Islã, não hesitaria, em caso de perturbações e de se sentir certa da impunidade, em entregar-se à pilhagem dos bairros franceses, não tanto por ódio, como por atavismo de anarquia e de rapina. Refiro-me sobretudo a Casablanca, onde, de 450.000 muçulmanos, 30.000 se deixariam levar por agitadores hábeis e resolutos.

O resto da população é favorável à França. Acontece mesmo, sobretudo nas regiões rurais, que sua atitude seja de muita simpatia para com ela. No estrangeiro, não se faz idéia do caos em que encontramos o Marrocos quando da assinatura do Tratado de Protetorado, em 1912. Porém muitos marroquinos são suficientemente razoáveis para se lembrarem da anarquia que reinava então (1).

Seria contudo uma ilusão tomar por base somente uma classificação tão esquemática da população. Não nos esqueçamos de que o Marrocos é um país muçulmano, e, pois, nele a opinião pública é fluida e muito sujeita às paixões, podendo-se ver, de um dia para outro, a uma exaltação vibrante suceder uma total indiferença; aos ímpetos de fanatismo religioso seguem-se períodos de fatalismo.

Mas, sobretudo, o Marrocos é religiosamente uma nação do Islã, e, etnicamente, uma região bérbere.

Se há uma nação pouco conhecida, é certamente a dos bérberes (2). Antes do Protetorado, as tribos bérberes não estavam submetidas ao Sultão, e viviam independentes, em suas montanhas. Guerreiros valorosos, se tivessem tido a menor organização comum o Marrocos ter-se-ia tornado um Império Bérbere, como já o fora por duas vezes entre os séculos X e XIII. Ferozmente hostis a qualquer penetração árabe (o que não significa islâmica), tinham repelido todas as tentativas dos Sultões Alauitas de lhes impor tributo, com exceção de duas: a de Moulay Ismail e a de Moulay Hassan, com dois séculos de intervalo, conseguindo logo, porém, recobrar a independência.

Além disso, aconteceu-lhes diversas vezes de se lançarem nas planícies árabe-marroquinas, de aí realizar vastas "razzias", e até mesmo de tomar alguma cidade e saqueá-la. De cada vez, satisfeitos com o resultado, regressavam às suas montanhas, e o entusiasmo comum que dali os arrancara se extinguia nos particularismos e nas disputas de tribo contra tribo.

Assim, o que domina a história dos bérberes é o seu caráter independente e anárquico. Considerando-se que a parcela árabe na etnografia do Marrocos não ultrapassa 20%, percebe-se qual seja a influência desses traços no mais profundo da mentalidade marroquina.

Por outro lado, enquanto país do Islã o Marrocos possui, subjacente, o ódio do Infiel. É verdade que, na hora atual, o marroquino aceita de bom grado o fato de estar submetido a cristãos, tanto mais que estes o tratam com justiça. Deus é que deu força aos franceses; portanto, essa força é um aspecto da vontade de Deus. Submeter-se a ela é, em certo sentido, reconhecer a Onipotência divina, ato essencialmente religioso. Além do que, o Alcorão previu essa eventualidade, estabelecendo como única condição a total liberdade do culto muçulmano.

Mas, se porventura algum dia essa força diminuir, a Ordem divina de submissão aos cristãos se tornará caduca, e, portanto, lodo o bom muçulmano deverá retomar a Guerra Santa, a "Djihad" (3). Muitos amigos sinceros da França colocariam então o dever religioso acima de suas simpatias terrenas.

Da mesma forma, o instinto de independência anárquico dos bérberes voltaria à tona contra os franceses, reservando-se para, após a partida destes, recusar qualquer submissão a um soberano — o sultão — que apenas estes conseguiram lhes impor.

É este um dos aspectos originais, e quase incompreensíveis para alguns — em particular, para os norte-americanos — de nossa presença no Marrocos. Enquanto formos fortes, contaremos com amigos sinceros e que não hesitarão em se comprometer por nós. Se algum dia nossa força desaparecer, só atrairemos desprezo e ódio.

Estudemos agora a minoria anti-francesa. Um fato se impõe: o barulho que ela faz. Realmente, é só ela que fala do protetorado francês no Marrocos. Mas, há uma circunstância estranha, que à primeira vista pareceria indicar que essa minoria exprime um descontentamento geral: não há partidos pró-franceses.

Eis-nos mais uma vez em presença de um fato do Islã: as minorias proclamam em alta voz os seus ódios, enquanto que as maiorias calam os seus sentimentos. Os franceses vivem em segurança por todo o país. Quando circulam pelos "souqs", ou feiras rurais ou pelos bazares das cidades, seus sorrisos são muito mais frequentemente recebidos também com sorrisos, do que com caras fechadas. Se o ódio dominasse nas relações mútuas, a vida dos franceses seria impossível.

Contudo, à Organização das Nações Unidas chegam apenas brados de protesto. Unicamente essa minoria anti-francesa dá-se a conhecer. É só através dela que os americanos, os ingleses, os russos, as nações árabes, e infelizmente muitos políticos franceses, conhecem o Marrocos.

Esta minoria pode ser dividida em dois elementos distintos: um grupo intelectual burguês que clama pela independência para instaurar uma monarquia absoluta ou constitucional, ou até mesmo uma república parlamentar, da qual teria as rédeas; e de outro lado, um grupo proletário que também pede a expulsão dos franceses, mas tendo em mente o estabelecimento de um regime comunista.

Vê-se que ambos os grupos políticos colocam como ponto de partida a denúncia do Protetorado. Portanto, a despeito das antinomias que os separam no campo ideológico, na prática são aliados quanto à primeira parte de seu programa. Voltaremos ao assunto.

(1) O sultanato era pouco mais do que um mero título. O Sultão reinava apenas sobre a décima parte do território, o "blad el makhzen", ou região do Governo. O resto do país, o "blad el siba", não reconhecia sua autoridade, e às vezes ignorava até mesmo sua existência. Era a região da insubmissão, que apresentava um emaranhado de tribos independentes entre si.

(2) Observemos rapidamente que, na origem, o Marrocos era povoado sobretudo por bérberes, As invasões árabes islamizaram suas tribos (elas eram cristãs, Santo Agostinho era bérbere), mas não conseguiram submetê-las politicamente. Recusando-se a abandonar seus costumes para adotar o "chrâa", ou direito muçulmano, os bérberes se refugiaram nas montanhas, abandonando a planície aos árabes e às raras tribos arabizadas. Daí procede a distinção clássica entre os marroquinos árabes ou arabizados das planícies, e os marroquinos bérberes das montanhas.

(3) Como é sabido, constitui dever dos muçulmanos relativamente aos povos infiéis, que eles devem converter ou trucidar.


VERDADES ESQUECIDAS

A demasiada compaixão pode ser excessiva crueldade

SANTA CATARINA DE SIENA

De uma carta a Gerard du Puy, Abade de Marmoutier, escrita às vésperas do Grande Cisma do Ocidente:

Ai de mim! Ai de mim! Os membros de Cristo se corrompem porque ninguém os castiga. Nosso Senhor tem particular aversão a três vícios: a impureza, a avareza e o orgulho que reinam na Igreja de Cristo, isto é, nos que só pensam nos prazeres, nas honras, nas riquezas. Estes vêem os demônios do inferno arrebatar as almas... e não se inquietam com isso, porque eles mesmos são lobos e traficam com a graça divina. Seria mister uma justiça forte para castigá-los: a demasiada compaixão é às vezes uma grande crueldade."