OS "PADRES OPERÁRIOS": PADRES DESLOCADOS, OPERÁRIOS INAUTÊNTICOS
Em princípio, não fazemos transcrições. Entretanto, abrimos uma exceção para o presente artigo, que aborda com notável lucidez um dos pontos mais fundamentais da famosa questão dos "Padres-operários": qual o proveito real que a causa católica aufere para a salvação das almas e recristianização do operariado com a redução de alguns de seus Sacerdotes a um meio de vida absolutamente secularizado?
Como se verá por este artigo, tal proveito é nulo...
Como CATOLICISMO é responsável até pelos trabalhos assinados que publica, sentimo-nos na obrigação de fazer quanto ao presente trabalho algumas restrições.
Declarando embora ineficaz a ação dos "Padres-operários", o autor, talvez para manter sua linguagem num nível de serenidade absoluta, faz elogios irrestritos à boa fé e à abnegação de que dariam prova pelo simples fato de aceitarem a vida operaria, com os sacrifícios a ela inerentes. A apreciação é simplista. Não queremos entrar aqui no foro íntimo de tais Sacerdotes, quer considerados no seu conjunto, quer individualmente. Parece-nos entretanto que só por se fazer trabalhador manual, um Padre não dá necessariamente prova de abnegação. Um Sacerdote, de mentalidade naturalista, a quem repugne a atmosfera do presbitério, pode facilmente preferir a vida secularizada do operário. De outro lado, nem tudo se cifra numa questão de boa fé. Há também um importante problema sobre o bom espírito, a considerar no caso. Será uma demonstração de bom espírito o fato de um Sacerdote trocar a batina pelo blusão operário? Ou há grave risco de com isto se dar - pelo menos em certas situações psicológicas - largas ao mau espírito?
Caberia ainda uma observação sobre o plano em que se situa o autor. Ele considera, com razão, que uma reforma moral é a base da solução da questão operaria. Seria de se desejar que acrescentasse que esta reforma só pode ser operada pela Igreja, com os meios naturais, e sobrenaturais principalmente, de que dispõe.
Por fim, devemos dizer que na censura feita pelo artigo ao Clero católico dos últimos cem anos, há manifesta injustiça.
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O trabalho de que aqui transcrevemos os trechos principais, foi publicado no número de Dezembro de 1952 da revista "Fédération", que se edita em Paris. Diz a redação em nota que precede o artigo: "as reflexões de nosso amigo Hyacinthe Dubreuil merecem ser muito especialmente meditadas, porque não é de fora que ele julga. Nasceu ele no meio operário. Entrou para a fábrica aos quatorze anos. Viveu de seu trabalho por vinte e cinco anos — os vinte e cinco anos de sua juventude, sem um dia de férias. A imensa repercussão que lhe têm valido suas obras provem da autenticidade de um testemunho que não é o de uma experiência, mas o de uma existência. É isto que dá ao estudo que se segue todo o seu sabor e todo o seu valor".
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FOI por volta de 1848 que nasceu a imagem romântica do "operário". Por reação contra o baixo nível a que o reduzia o industrialismo nascente, os poetas - sobretudo os "chansonniers" - criaram uma imagem idealizada do operário, adornado então de todas as virtudes. Sabe-se o papel que representavam nessa época as canções políticas ou sentimentais. Uma delas, modificada nas oficinas, qualificava o operário de "sublime".
Esta imagem idealizada não desapareceu inteiramente. Ela é encontrada ainda na imaginação de certos "quarante-huitards" (*) retardados.
É esse o aspecto romântico, que ressurge de modo curioso no meio das novas aparências de nossa "organização" moderna e de nossos doutos mecanismos. De modo curioso, porque podemos observar que esse aspecto por assim dizer se insere em uma sociedade impregnada de concepções diametralmente opostas a todo romantismo. Não estamos vivendo, com efeito, como que mergulhados em espessa neblina?
Esta é uma imagem que gosto de empregar e explico da seguinte maneira: em certos dias de inverno, a neblina do Baixo-Sena sobe até Paris, e a qualquer pessoa é dado verificar que ela é por vezes tão densa que se pode observar sua penetração até nos subterrâneos do metro... Considerando um dia a sua presença em uma de nossas estações, essa neblina pareceu-me um símbolo do marxismo: há um século, ele tem sido objeto de uma propaganda tão intensa, tão extensa, tão continua, tem sobretudo se combinado tão maravilhosamente com um "materialismo" que não é mais um privilégio de classe, que terminou, tal corno a neblina que penetra até debaixo da terra, por invadir consciências que dele se crêem imunes...
É no meio dessa penumbra que "Padres-operários" acreditando aproximar-se melhor dos homens que querem dirigir, imaginam agir bem identificando-se com eles o melhor que podem, como que por um esforço de mimetismo, e adotam, como já ouvi, até o vocabulário incorreto que se utiliza ordinariamente nas oficinas, empenhando-se em imitá-lo com uma desagradável ostentação.
Ora, se tivessem um melhor conhecimento da verdadeira ação operária, esses Padres saberiam que o militante verdadeiramente penetrado de sua missão de elevação, esforça-se o quanto pode, por falar uma linguagem correta, eliminando pouco a pouco as vulgaridades e o calão. Pois sabe que deve ele próprio elevar-se, e que é elevando-se que contribuirá melhor para elevar os seus irmãos. Se os "Padres-operários" tivessem ocasião de escutar os representantes sindicais que participam das comissões oficiais, verificariam que aqueles homens falam simplesmente em vernáculo!
É por isso que, quando se vê pessoas instruídas esforçarem-se por falar como o operário inculto, pode-se dizer que elas se abaixam, e contribuem assim para manter o baixo nível daqueles que pretendem elevar. Vi certo dia a última expressão dessa atitude, naquilo que ouso chamar uma detestável comedia. Uma comedia que ia mais longe do que a alteração voluntária da linguagem. Era um domingo. O operário verdadeiro que assiste a uma reunião no domingo, comparece com um vestuário conveniente, isto é, com o simples terno, que é para ele o sinal do repouso. Ora, nessa reunião minha atenção foi atraída pela linguagem demagógica de um assistente, que estava vestido com um macacão azul como os que se usam nas fabricas, com a circunstância de que se podia perceber que não estava em nada estragado pelo uso... Soube com surpresa que se tratava de um Padre...
Não se tem o direito de representar uma comedia tão baixa.
... Mas não vi somente esse exemplo lamentável. Ouvi falar de muitos outros, que infelizmente deixam ver a que distância eles se conservam das verdadeiras e grandes questões que a vida e a organização industrial suscitam. Veja-se, por exemplo, esta história: em certa empresa de uma grande cidade, surgiu a tradicional questão de salários. Esta é longamente discutida pelos interessados, e os pontos de vista se opõem, não somente entre tais operários e a direção, mas também no meio dos próprios operários, alguns dos quais exigem mais do que os outros. Enfim, e como não se pode discutir eternamente, chega-se a um acordo sobre o inevitável "meio-termo", que é então aceito por todos, incluídos os comunistas, e exceto somente... um "Padre-operário" que ali se achava como delegado de seus colegas de oficina, e que declarou que as concessões obtidas eram de molde a "diminuir a combatividade operária"!
Antigamente, os anarquistas sustentavam que os operários ainda não eram suficientemente infelizes, e que era bom que sofressem mais, afim de que o espírito de revolta deles se pudesse apoderar! A violência das idéias dos operários que tinham motivos para reagir assim, me parece mais escusável do que essa atitude da parte de um homem que se presume pregar a paz e o amor.
Estas últimas observações nos mostram que a questão não é apenas de linguagem. Nesse esforço errado para “fazer de operário", ouvi vários Padres empregarem com ênfase o vocabulário das reuniões públicas, sem perceber que esse vocabulário carreia idéias das quais eles acabam por ficar impregnados. Leio, saído da pena de um deles, a palavra "luta" repetida com predileção, em frases que vemos habitualmente em cartazes, e entre os lugares comuns habituais sobre o "capitalismo" e o "Estado burguês". Não vale a pena vir de tão longe - do seminário - para fabricar para si urna tal personalidade.
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TOMEI a precaução, no início destas linhas, de acentuar a dificuldade deste tema, no qual seria tão fácil atribuir-me uma hostilidade preconcebida. Assim, se tenho persistido em colocar a expressão "Padre-operário" entre aspas, é que se esses homens são efetivamente Padres, certamente não são operários. O operário é um personagem em cuja pele não se entra tão facilmente, por mais que se queira. Este comentário me incita a voltar ao famoso provérbio, porque se o "hábito não faz o monge", o fato de deixar a batina pelo macacão azul não faz o operário. Os verdadeiros operários, não se encontram em sua situação a maneira de desbravadores. Suas condições de vida não são para eles um território desconhecido, onde cada detalhe os espantará, e que atravessarão de uma maneira mais ou menos provisória, conservando atrás de si o sólido ponto de apoio de uma certa situação pessoal, ou de uma poderosa organização como a da Igreja, Eles não entraram nessa vida por uma decisão livre e uma "adesão" voluntária. Nasceram nela. É o seu meio natural, a paisagem familiar de sua existência, e estão ali para ganhar a sua vida seriamente e no mais positivo e mais brutal sentido das palavras. Pois o mais significativo em sua posição é justamente não ter porta de saída...
Para ajudar esses pseudo-operários a compreender melhor a realidade das coisas, poderia eu sugerir-lhes uma leitura? Que eles se tranquilizem, não é uma "leitura má"! A revista "Etudes"! Em seu número de outubro de 1945, encontrarão, em um notável artigo, uma citação do Padre Dillard, morto no campo de Dachau depois de se ter inscrito como trabalhador na Alemanha para seguir os operários franceses. Que releiam aquelas admiráveis páginas, que vêm sob o título: "A honra de ser operário". Apreenderão ali coisas que deveriam saber, e que os tornarão mais circunspectos em sua maneira de compreender os personagens que pensam representar.
"Não se torna operário quem quer. Existe uma cultura operária que não se julga conforme os termos da cultura pura e simples..."
Para apreciar a situação do operário, e sobretudo para nela intervir com eficácia, é preciso olhar as coisas de mais alto do que geralmente se pode ver em um emprego de servente, o único acessível a quem não possui a prática de qualquer trabalho na extremidade mais humilde da hierarquia industrial.
Como é possível que pessoas cultivadas - pelo menos eu as suponho tais - não percebam até que ponto a sua visão da indústria é incompleta e artificial em um tal posto de observação? Quando, e geralmente pela primeira vez em sua vida, vão executar tarefas inferiores, ainda que por outros caminhos se tenham tornado "manejadores de idéias" e não manejadores de ferramentas, não é evidente que essas tarefas lhes serão automaticamente mais desagradáveis do que a quem não conheceu outra coisa desde a infância? Sua "reação", em presença de um tal trabalho, será inevitavelmente diferente daquela do operário verdadeiro. Ficarão chocados por toda a espécie de coisas que deixarão indiferente o operário, e que muitas vezes são com efeito sem importância, e por outro lado poderão passar sem as ver junto de questões para as quais os operários são dotados de uma sensibilidade aguda, formada por uma longa experiência da vida popular, que não está toda circunscrita entre os muros das usinas. Henri de Man, observou assim, com espanto, fatos que haviam escapado a seu ponto de vista de engenheiro.
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Na indústria atual, ao menos entre elementos avançados que se preocupam de lhe imprimir progressos sociais paralelos ao progresso técnico, insiste-se sobre a necessidade de eliminar as idéias falsas que podem se espalhar entre o pessoal, fornecendo-lhe "informações". É uma grande novidade; em um mundo onde por longo tempo se considerou que o pessoal fazia parte do material!
Eis uma palavra importante para nossos pseudo-operários: a informação. Sem dúvida eles me dirão que entrando sub-repticiamente na usina, por uma porta secreta tiveram em vista informar-se. Muito bem, mas eu os convido a olhar - se puderem - bem além dos detalhes que os cercam, isto é, a não negligenciar nenhum elemento de informação. Isso porque os vejo tão mal informados sobre a questão dos salários. Mal informados de muitas maneiras, ou seja, não somente na questão dos níveis, mas também, e isto é, aos meus olhos muito, mais importante, naquilo que concerne o vasto problema da remuneração do trabalho. É-se obrigado a lembrar a famosa imagem das árvores que impedem de ver a floresta... Pois eu os ouço adotar especialmente o tema fácil do aumento dos salários. Porém isto não é uma grande descoberta, e ninguém os esperou para montar nesse cavalo de batalha. É bem evidente que esses Padres perceberam que o Clero tinha posto um certo atraso em se ocupar dessas questões, e quiseram mobilizar-se afim de contribuir para dissipar a idéia de que a Igreja está do lado do poder do dinheiro. Mas, misturar-se ao concerto de reclamações não apresenta uma grande originalidade, quando isto acarreta a integração na corrente das reivindicações materialistas que caracterizam a nossa época.
A verdadeira solução da questão operaria exigiria outra coisa.
Vejo que vão me responder que este outro aspecto não está esquecido, e que até se propõe principalmente um reerguimento moral. Mas eu afirmo bem claramente que, se não se tem a coragem, quero dizer a coragem intelectual, de tomar face a este conjunto de problemas uma atitude totalmente diferente daquela que guia apenas as reivindicações materialistas, far-se-á inevitavelmente um trabalho errado.
Há pouco, aconselhei uma leitura aos "Padres-operários". Isto porque os sinto de tal modo impressionados pela atmosfera de propaganda na qual seu trabalho os imerge que se encontram muito evidentemente inclinados a ler aquilo que passa pelas mãos dos operários, e onde haurem, sem se aperceber disso, uma ideologia que é estranho vê-los assimilar sem desconfiança.
Quanto a mim - e não é seguro que esta declaração não lhes faça horror! - à leitura de "L'Humanité" prefiro a de... Le Play. Ainda que fazendo minhas reservas, bem entendido, quando ele vai um pouco longe, como por exemplo, quando aconselha casar arbitrariamente os criados entre si! Mas ele tem uma tão justa desconfiança do materialismo! Pergunto-me o que diria ele diante do uso que se faz do famoso e fácil pretexto do "mínimo de bem estar necessário à virtude", com o qual se cobrem tão singulares abusos de argumentação. Eis porque, à meditação desses jovens eu proponho aquele pensamento do velho engenheiro: "o fim supremo do trabalho é a virtude e não a riqueza".
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A solução da questão operária não é um domínio no qual entrar-se-á utilmente se se escolher a porta dos fundos pela qual os "Padres-operários" entraram, com uma abnegação à qual presto homenagem, mas com uma falta de visão que devo também constatar.
A questão do trabalho, a ordem "social" da indústria, é um bloco que é preciso considerar ao mesmo tempo em todas as suas partes, se se pretende representar nele um papel de reformador.
É o que já compreenderam - antes dos "Prêtres-ouvriers" - todos os que se preocuparam cora a "reforma da empresa". Estes não se retardaram nas questões acessórias que decorrem de questões mais altas. Eles se esforçam por encontrar uma estrutura de empresa que levaria, não somente a uma melhoria material na situação dos elementos inferiores da hierarquia industrial, mas a uma transformação orgânica pela qual a vida da empresa poderia ser mudada em todos os seus aspectos, isto é além dos aspectos materiais. Pelo menos eu encaro o caso das pesquisas que consideram estes problemas sobre um plano mais largo do que o de uma melhor repartição dos benefícios, Porque aqueles que se atrasam ficando apenas no plano da "participação de benefícios" não fazem outra coisa senão arrastar o peso das reivindicações materialistas.
Ai está o ponto cuja importância excede a de todos os outros: o apetite dos bens materiais tem isso de particular que nenhuma satisfação lograria acalmá-lo! Jamais o homem que se abandona a ele encontrará a paz do coração... E talvez esteja ai o que de mais importante eu poderia submeter à meditação do "Padre-operário". O que é uma proposição assas singular a lhe fazer!
Poderia eu fornecer-lhe uma informação? Que interrogue todos os que estudaram longamente a questão operária. Descobrirá que chegaram sem exceção a uma conclusão bem diferente da preocupação principal das coisas materiais: todos chegam à idéia de que o problema da elevação é um problema de educação.
É assim que podemos chegar, nós também, à idéia de entrar no estudo dos problemas do trabalho por outra via que não a porta dos fundos de que já falei. Antes pela porta principal, isto é, pela cabeça.
Por estranha e inesperada que esta proposição possa parecer a esses jovens, é pelo cume, pelos mais altos empregos que é preciso abordar a "humanização" do trabalho. É a via normal pela qual uma verdadeira transformação poderá um dia fazer sentir os seus efeitos até nos mais humildes empregos, poderá descer através da hierarquia. Pretender operar esta transformação em sentido inverso é uma quimera... Da mesma forma que um exército é aquilo que dele faz o seu general, o exército industrial é aquilo que o fazem os seus chefes. Por conseguinte, se uma evangelização é necessária, é por lá que é preciso começá-la... em lugar de se misturar às manifestações de baixo, e às batalhas com a polícia.
Isso também não é uma grande descoberta. Esses jovens não sabem provavelmente o que a indústria está realizando por sua própria conta. Ela descobriu - eu deveria dizer antes que ela está descobrindo aos poucos - que todo o desconforto da vida operaria repercute finalmente sobre... o rendimento! Ela começa a compreender que a melhoria do rendimento não é somente uma função das melhorias técnicas, mas também da adesão operaria. De onde um movimento novo que se esboça neste momento, por levar a cabo a educação dos chefes em todos os graus, a fim de acrescentar a suas capacidades técnicas um ascendente moral.
Os "Padres-operários" podem agora compreender até que ponto a sua generosa aventura atrasa?
(*) Expressão intraduzível que designa os que ainda aceitam o programa, ou pelo menos o espírito da revolução liberal de 1848, que derrubou o Rei Luiz Felipe e proclamou uma republica fortemente esquerdista.
Os Católicos francêses no século XIX
MONS. DUPANLOUP PEDE AO EPISCOPADO A CONDENAÇÃO DO "UNIVERS"
Fernando Furquim de Almeida
Mons. Dupanloup entrou na polêmica suscitada pelo livro de Mons. Gaume, com uma carta aos professores de seus seminários menores, em que, além de defender a educação clássica, atacava violentamente os seus opositores. Evidentemente era um ato disciplinar da Diocese de Orléans; por isso ninguém teria o direito de discuti-lo, se ele não fosse publicado em outras circunscrições eclesiásticas. Mas Mons. Dupanloup tinha interesse em dar-lhe a maior divulgação, pois, como vimos, seus métodos de educação, sobejamente conhecidos, incorriam na crítica de Mons. Gaume; por outro lado, sua reputação de educador dava-lhe uma oportunidade, que ele não queria perder, de desfechar um sério golpe no "Univers". Daí ter enviado a carta a todos os jornais de Paris antes mesmo de a receberem os seus destinatários.
A imprensa liberal e universitária, bem como as folhas católicas que não simpatizavam com o "Univers", publicaram o documento com grande destaque e celebraram de todos os modos a iniciativa de Mons. Dupanloup, de sair em socorro da cultura clássica e universitária com tanto ardor e combatividade.
Em artigo sereno e moderado, Veuillot mostrou a inconsistência dos argumentos do Bispo de Orléans, ao mesmo tempo que definia claramente a posição dos adversários do ensino clássico, que tinha sido desfigurada, e repelia as acusações que lhes eram feitas. Foi uma resposta completa, que não dava margem a novas discussões.
Mons. Dupanloup, dizendo-se ferido em sua dignidade episcopal, interditou o "Univers" nas casas de educação da Diocese de Orléans, através de um longo mandamento em que, depois de ensaiar uma tréplica a Veuillot, acusava-o de deslealdade e calúnia, e pedia que se atentasse para o perigo que a existência do "Univers" representava para a Igreja Católica.
Surpreendido com a violência do mandamento, Veuillot publicou em seu jornal uma carta ao Bispo de Orléans. Começava explicando os motivos pelos quais fora levado a escrevê-la: "A política aconselhar-me-ia a guardar o silêncio sobre vosso mandamento de 30 de maio. Pareceu-me mais sincero e mais respeitoso responder. Estou persuadido de que Vossa Excelência, depois de me ter pintado aos olhos do mundo com tintas que nenhuma explicação apagará completamente, não levará a mal que eu dê aos meus amigos a alegria de me justificar".
Lembra em seguida que, tendo jornais de Paris publicado a carta que dera origem ao incidente, sua resposta não poderia ser taxada de indisciplina contra um ato episcopal, tanto mais que, se o Bispo de Orléans se alinhasse entre os defensores do ensino clássico, outros prelados, como o Cardeal Gousset e Mons. Parisis, defendiam a tese de Mons. Gaume. Quanto à pecha de deslealdade e calúnia, estava com a consciência tranqüila, e tinha certeza de que nenhum juiz imparcial encontraria no seu artigo qualquer coisa que a justificasse, de modo que esperava que Mons. Dupanloup retiraria um dia essa acusação. Concluía dizendo que o "Univers" não pretendia em absoluto defender a Igreja "apesar dela", como afirmava Mons. Dupanloup, e que todos os seus redatores estavam dispostos a abandonar a luta quando a Igreja quisesse.
"Assim, Monsenhor — escreveu Veuillot — quando nossa obra parecer seriamente comprometedora, não será necessário desonrar os seus operários para destruí-la. Que falem os Srs. bispos. E no mesmo instante, sem delongas, sem hesitações e sem queixas, obedeceremos. Isso será feito imediatamente e para sempre. Não se deve temer que este grupo, formado lentamente e com tanta dificuldade, possa, uma vez destruído, recompor-se muito depressa".
Talvez o pedido de pronunciamento dos bispos franceses, contido nesta carta, tenha despertado em Mons. Dupanloup o desejo de obter a condenação formal do "Univers" pelo episcopado. O que é certo é que não respondeu a Veuillot, e sem demora deu início a uma nova ação de grande envergadura, mandando seus vigários gerais a todas as dioceses da França, a fim de convencer os bispos de sua tese de que a existência do "Univers" constituía um perigo para a Igreja.
Enquanto isso a polêmica sobre o ensino clássico continuava ardendo. Veuillot manteve-se ao lado de Mons. Gaume, mas sempre procurando circunscrever os debates exclusivamente ao campo doutrinário. Posição difícil de ser mantida, pois mesmo nos meios ultramontanos muita gente se julgava atingida pela mínima restrição feita aos clássicos pagãos.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
A era da técnica e a da "douceur de vivre"
Plinio Corrêa de Oliveira
Texto sem Formatação;Texto sem Formatacao'>Transeuntes numa cidade de nossos dias. Fotografia de um grupo de populares que
esperam a permissão de passar numa esquina de Louisville, EEUU. Grupos como estes se vêm em todo o mundo contemporâneo: pessoas dos sois sexos, das mais variadas idades e condições sociais, formando aglomerados maiores ou menores, à espera de um sinal luminoso, de um veículo, da abertura de uma repartição ou escritório, etc. Em suma, é um dos aspectos mais comuns da vida quotidiana.
Por isto, a fotografia se presta a uma pergunta: neste quadro, do qual tão frequentemente nós mesmos fazemos parte, qual a atmosfera moral? Há despreocupação, bem estar, alegria: há, em uma palavra, aquilo que Talleyrand chamava a "douceur de vivre"?
A resposta é forçosamente negativa. Dir-se-ia que cada um traz dentro de si um horizonte de brumas pesadas e cor de chumbo. Ninguém presta atenção no vizinho, ou em qualquer coisa que lhe esteja diante dos olhos. Todos - até crianças - fitam preocupadamente um ponto que está pairando menos no ar do que na mente de cada qual. São os problemas da vida quotidiana incerta, dura, difícil, que as condições do mundo contemporâneo impõem a cada um. Por isto, a atitude psíquica de quase todos é de quem está andando de encontro a um problema. E, com efeito, o que não é problema em nossos dias?
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A vida moderna é sombria e nervosa. Seus prazeres são desordenados, frenéticos, fatigantes e fugazes. São em via de regra momentos passageiros numa existência feita de luta áspera, de preocupação constante, de uma tensão que sentimos até dormindo. Entretanto, o homem parece não ter sido jamais tão sôfrego de prazeres. Como explicar isto?
Pode-se dizer da alegria o que S. Bernardo dizia da glória, que é como uma sombra: se corremos atrás dela, foge-nos; e se dela fugimos, corre-nos atrás. Não há verdadeira alegria a não ser em Nosso Senhor Jesus Cristo, isto é, à sombra da Cruz. Quanto mais o homem é mortificado, tanto mais alegre. Quanto mais procura os prazeres, tanto mais é triste.
Por isto, nos séculos de apogeu da civilização cristã, ele era alegre: basta pensar na Idade Média. E quanto mais se vai "descatolicizando", tanto mais vai ficando tristonho.
De geração em geração, esta mudança vai se acentuando. O homem do século XIX, por exemplo, não tinha mais a deliciosa "douceur de vivre" do homem do século XVIII. Entretanto, como era ainda mais rico em paz e bem estar interior que o de hoje!
Quantos de nossos leitores se lembrarão da fartura, da tranquilidade, da cordialidade de relações, da amenidade de vida que caracterizava o ambiente brasileiro ainda há vinte anos atrás. Carestia, inflação, filas, crise, quem falava nisto? E assim mesmo os velhos diziam que por volta de 1890 tudo era melhor!
Banalidade, dirá algum leitor. Todos os velhos julgam melhores os tempos de sua mocidade. E por isto o passado parece sempre melhor do que o presente.
Este fenômeno existe sem dúvida. Mas quanta superficialidade há em reduzir tudo a esta ilusão ótica. Neste sentido, a fotografia traz um concurso decisivo para a elucidação do assunto. Há inúmeras fotografias de populares de há cinquenta anos atrás. A diferença entre seu estado de espírito e o nosso é chocante.
Tomemos - de uma volumosa coleção - apenas um exemplo. Em Paris, por volta de 1900, proprietários e garçons de um pequeno restaurant que fornece ostras aguardam a chegada dos primeiros fregueses. Todos são calmos, sadios, normais. Os rostos estão desanuviados. Não há outros problemas para resolver senão os de uma rotina diária leve. Mas trata-se de gente integrada habitualmente em um ambiente de trabalho e vida de família, sem sonhar com grandezas alucinantes, nem prazeres extasiantes, nem catástrofes aterrorizantes; sem correr a 150 à hora pelas estradas, sem fazer filas, sem temer a falência para o dia seguinte, nem um desastre de automóvel para daí a 15 minutos. Temperança, sobriedade, normalidade, paz, equilíbrio, valores de alma inestimáveis que o neopaganismo está acabando da eliminar da face da terra!