A luta entre a Cruz e o Crescente no Marrocos (2)

As Raízes Culturais e Ideológicas dos Partidos Nacionalistas

J. Nevez

CASABLANCA, abril - Os partidos nacionalistas do Protetorado compreendem:

- o "Hizb el Istiqlal", ou Partido da Independência;

- o "Hizb el Qaumi", ou Partido Democrático da Independência;

- o Partido do Povo Marroquino,

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O "Hizb el Istiqlal" é positivo: os franceses devem se retirar. O ódio à França é o alimento espiritual de seus membros, e constitui aliás o único ponto claro de seu programa. O "Istiqlal", com efeito, absolutamente não define o que quer para depois de conseguida a independência. Contudo, seus animadores se dizem ultra-realistas; sua intenção parece ser o estabelecimento de uma monarquia absoluta, confiada hereditariamente à dinastia alauita, isto é ao Sultão atual, Sidi Mohammed V, e seus descendentes masculinos. Note-se que, embora a dinastia alauita reine no Marrocos desde o século XVI, o trono nunca foi hereditário. Morrendo um Sultão, os "ulemas", ou doutores da Lei, se reúnem, elegem, e logo após proclamam o novo Sultão, escolhido sempre na dinastia alauita. Essa pretensão do "Istiqlal" é portanto contrária à tradição marroquina, e pó isso há muitos que a reprovam.

É principalmente na burguesia citadina que o "Istiqlal" recruta seus aderentes. Na maioria dos casos, trata-se de comerciantes ricos cujas fortunas, já estabelecidas antes do Protetorado, acham-se agora notavelmente aumentadas devido à prosperidade que a paz francesa trouxe ao Marrocos. Assim um dos membros do Comitê Diretor do Partido, Si Laghzaoui dirige uma empresa de transporte rodoviário que estende sua rede de comunicações sobre um terço do Marrocos. Convém não esquecer que antes da vinda dos franceses só havia no império cherifiano estradas para animais, e que, para viajar de uma cidade para outra, era necessária uma forte escolta, bem como pagar um direito de passagem a cada um dos chefes de bandidos que infestavam o país...

Os filhos desses burgueses ricos foram fazer seus estudos nos liceus franceses do Protetorado ou nos "medersa", estabelecimentos superiores de estudos alcorânicos, restaurados pela França. Os alunos dos liceus logo se convencem, devido ao ensino liberal e ateu que recebem, da necessidade de se libertarem de um jugo "insuportável". Quem aprende a admirar a Revolução francesa até mesmo nos seus excessos, necessariamente se torna também um revolucionário. Os que saem dos "medersa" tornaram-se doutrinadores islâmicos, e o fanatismo religioso acabou de cegá-los.

Enfim, como todos os partidos de oposição, o "Istiqlal" se esforça por agrupar os descontentes. Ora, descontentes sempre os há: pelo menos, os que já foram castigados pela justiça; e esse partido, que afeta conservar a ortodoxia muçulmana, não tem dificuldade em alistá-los sob a bandeira de suas "tropas de choque".

Este espírito religioso sobre o qual o "Istiqlal" funda a maior parte de sua propaganda, não lhe dá contudo a solidez que se poderia imaginar. Se seus membros odeiam a nação protetora frequentemente também se odeiam entre si, e os ecos de disputas estrondosas são muitas vezes ouvidos fora dos laboratórios onde se produz a doutrina. Os motivos são numerosos: invejas, desejos de precedência, e sobretudo dilapidação dos fundos do Partido. Com efeito, as coletas realizadas sob pretextos religiosos são frutuosas, mas é muito raro que seu produto chegue integralmente ao tesoureiro. Quanto a este, seu principal cuidado é falsificar a escrita. As longas filas de automóveis americanos estacionados em frente aos locais onde se realizam as reuniões do Partido, causam escândalo no seio do povo miúdo.

De qualquer modo, a propaganda é feita com grande ardor. Ela se desenvolve quase sempre sobre um plano tal, que o Marrocos dificilmente poderia lhe opor reação: de um lado, o plano religioso; de outro, o plano monárquico. Todas as declarações do Partido começam com uma invocação a Deus, à qual todo bom muçulmano é obrigado a responder "amin", isto é, amem, e por um protesto de fidelidade ao Sultão. O período do ano em que essa propaganda se torna mais intensa é o mês de jejum do "Ramadhan". Esse jejum, que a grande maioria dos marroquinos observa é tão penoso que cria um verdadeiro estado de tensão mística. O povo se torna nervoso, excitável e irritadiço no mais alto grau. São frequentes as reuniões nas mesquitas; os espíritos, que se tornaram mais receptivos devido à fadiga, estão prontos a aceitar qualquer doutrina subversiva com aparente fundamento religioso.

Sob o ponto de vista político, a tão proclamada fidelidade ao Sultão vem se unir à propaganda com base religiosa. Realmente, Sidi Mohammed V é um "cherif", isto é, um descendente do profeta Maomé. Essa qualidade é muito considerada em todo o Islã, e particularmente no Marrocos, onde, por sua causa, até os berberes aceitam a soberania espiritual do Sultão.

Este só podia reagir favoravelmente diante da adesão do "Istiqlal" a um programa de monarquia absoluta. Realmente, o Sultão apadrinha a ação do Partido.

Seu filho mais velho, o Príncipe Imperial Mulay Hassan, assiste freqüentemente a certas reuniões do Comitê Central. Uma ajuda vinda de tão alto só pode favorecer o desenvolvimento desse Partido.

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É chegado o momento de esboçar a silhueta do Sultão. Subiu ao trono em 1928, depois da morte de seu pai, Mulay Yussef e de sua eleição pelos "ulemas". Sua atitude foi pró-franceses até 1943. Ele sabia o quanto devia à nação protetora, em particular a manutenção da dinastia no trono. Em 1912, reinava o Sultão Mulay Hafid, personagem de pequena envergadura que estava para ser derrubado por um árabe audaz das tribos "zayanes", Moha Ou Hammu, quando se decidiu a assinar o Tratado de Protetorado. Seu primeiro cuidado foi o de precisar nas cláusulas do Tratado que a República francesa se obrigava a manter no trono a dinastia alauita.

Em 1943 realiza-se a Conferência de Anfa, tão importante na história das relações franco-marroquinas, como na da guerra de 1939-1945. O Presidente Roosevelt, violando as leis da hospitalidade, e sem nada comunicar ao Residente Geral da França no Marrocos, travou contato direto com o soberano e se entregou a uma crítica tão violenta quanto injusta da obra francesa no Protetorado. Mostrou-lhe o estado em que estava a França, rebaixada à categoria de nação secundária, extenuada pela derrota de 1940, e participando do desenvolvimento da guerra somente com restos de forças militares, onde predominavam os elementos vindos da União Francesa. Propôs ao Sultão a amizade e o auxílio americano, pintando com cores brilhantes o poder e a riqueza da grande república. Sidi Mohamed não ignorava nenhum desses fatos; tinha-os mesmo estudado, Mas tinha decidido, de forma cavalheiresca que o momento em que a França caia na desgraça não era propicio para se afastar dela. Melhor do que o Presidente Roosevelt, ele conhecia tanto a grandeza da obra da França no seu pais, como sua generosidade.

Sua primeira atitude foi quase uma recusa, disfarçada segundo um método bem marroquino, sob a forma do adiamento da decisão para outra oportunidade. Mas, ao mesmo tempo, abria-se em Alger a penosa disputa de precedência entre os generais De Gaulle e Giraud. Este último era "um velho marroquino". Seu prestígio nos meios muçulmanos era grande, e ao seu lado o general De Gaulle fazia figura de aventureiro. O general Giraud era da velha escola. O general De Gaulle falava incessantemente da libertação dos povos... e foi ele que levou a melhor. A resolução do Sultão estava desde então tomada. Sem nenhum ódio profundo à França, resolveu mudar a orientação de sua política, e tender para a independência.

Observemos também que o exílio do General Noguès, Residente Geral desde 1936, tinha afetado muito o soberano. Os dois homens estavam ligados por uma amizade que perdura ainda. Se o General Noguès estivesse então em Rabat, é certo que, de um lado, ter-se-ia pedido uma retificação ao Presidente Roosevelt, e de outro, o Sultão não teria modificado sua atitude.

Observemos ainda que o Sultão personagem religiosa do islã, não podia se manter insensível diante do argumento do Presidente Roosevelt relativo à perda de poder da França. Como já dissemos, Deus permitiu aos franceses que se instalassem no Marrocos, dando-lhe a força. Se a retira, simultaneamente ordena aos marroquinos muçulmanos que se libertem da tutela francesa.

Um fato, de qualquer forma, é claro: a mudança de atitude do Sultão desde 1943. Ele se lembra, ademais, que foi um americano o primeiro a lhe pregar rebelião. Não devemos pois nos espantar se Sidi Mohamed freqüentemente se volta para os Estados Unidos, e se sabemos que o "Istiqlal" recebe fundos americanos para alimentar sua propaganda. Esses fundos provêm tanto do próprio governo americano, como de organismos privados, quais certas sociedades protestantes que se dizem "inspiradas pelo Espírito Santo", Está verificado que os americanos têm tudo a ganhar com a partida dos franceses, os quais têm sido até aqui os únicos que se preocupam com o povo marroquino. Os homens de negócios de Wall Street poderão se entregar impunemente a um comércio frutuoso: que lhes importa que esse comércio se desenvolva em detrimento dos operários marroquinos, que cairão na ruína, ou dos "fellahs", que não se poderão manter diante da concorrência dos produtos americanos?

Mas no dia em que os franceses forem expulsos, o Sultão conta se libertar da tutela americana mesmo no plano econômico, criando direitos alfandegários proibitivos, que até agora têm sido recusados ao Protetorado.

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Quanto aos membros do "Istiqlal", cumpre não ter ilusões sobre o seu desinteresse. Já sonham com os prêmios e com os cargos que Sua Majestade deverá lhes conceder, em troca dos serviços prestados. Campeões da monarquia absoluta e independente, dominando o país graças às células constituídas desde o tempo dos franceses, eles saberão impor seus desejos a um soberano que lhes deverá tudo; caso contrário, podem reservar-lhe a sorte do Rei Faruk, do Egito.

Eis, portanto, um rápido quadro do "Istiqlal", ultra-realista, xenófobo, niilista, fanático, mas... trabalhando para si próprio. É o mais violento dos partidos nacionalistas, e é também o mais ativo o mais prestigiado. É ele, afinal, que possui o maior crédito no estrangeiro, em particular entre os americanos, cuja ingenuidade chega ao ponto de apoiar aqueles que não hesitarão em "lançar fora o bagaço, quando tiverem extraído o suco da laranja", e que, desde já, não tiveram dificuldades em se aliar aos piores inimigos dos Estados Unidos - os comunistas.

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O Partido Democrático da Independência, embora tendo numerosos pontos em comum com o "Istiqlal", é contudo mais matizado em suas intenções. Admite a colaboração técnica dos franceses, mas exige, e o mais cedo possível, as rédeas do governo marroquino. Segundo o seu modo de ver, o atraso de vários séculos que se verifica existir no Marrocos só pode ser vencido com o auxílio de uma nação ocidental. Uma vez que a França já desempenha esse papel, uma vez que é ela o país que melhor compreende os problemas marroquinos, e, em última análise, é urna das nações mais generosas, é preferível a outras Potências européias. Mas sua colaboração deve se realizar sem segundas intenções.

A França deve, o mais depressa possível, renunciar ao Tratado de Protetorado, substituí-lo por um tratado de aliança entre Estados soberanos, reconhecer a completa independência do Marrocos, e conceder-lhe auxilio técnico. Em outros termos, o PDI quer técnicos, não administradores.

Essa fórmula, razoável em si, apresenta muitos perigos, tanto para a França como para o Marrocos. Inicialmente, não se cogita de uma retribuição marroquina à ajuda francesa nem de uma compensação pela obra já realizada. A França, empobrecida por duas guerras mundiais, de bom grado se sacrificou pelo país do qual era a nação protetora, mas não pode pensar em fazê-lo gratuitamente para com um Estado que estivesse a ponto de denunciar unilateralmente um tratado de aliança.

Quanto ao Marrocos, não está ele ainda maduro para um "self-government", apesar dos esforços da nação protetora nesse sentido. A França generalizou a instrução até um ponto jamais atingido em nenhum outro país do mundo. Por ocasião da chegada dos franceses, tudo ainda estava por ser feito. Em trinta anos, todo o território foi coberto de estabelecimentos escolares. Não há vila, por menor que seja que não possua uma ou mais classes onde professores qualificados, franceses e marroquinos, ensinam as crianças de todas as idades. Além disso, foi criada uma escola industrial em Casablanca, para a formação de equipes de técnicos, uma escola de agricultura em Meknes, uma escola de administração marroquina em Rabat, e oficinas-modelo em todos os grandes centros. Mas apesar de todas essas realizações no terreno do ensino, o Marrocos ainda não é capaz de se governar a si próprio. A incorruptibilidade dos cargos públicos é totalmente desconhecida. A população ainda não está suficientemente desenvolvida. Os próprios marroquinos sentem-se muito felizes em apresentar suas petições aos inspetores franceses, que não cobram as consultas.

Estes traços não são o apanágio somente do Marrocos. O Islã inteiro mostra-nos atualmente o espetáculo de capitais ensanguentadas pelas revoltas, de governos postos a baixo por um oficial propenso a "pronunciamentos". Acontece com os marroquinos como com os egípcios, os sírios, os iranianos, vítimas do marasmo decorrente da imaturidade política. O Marrocos independente seria, em nossos dias, presa dos extremistas de toda qualidade. Os títulos universitários que os jovens marroquinos apresentam, não sem um muito legítimo orgulho, não são diplomas de serenidade...

De qualquer forma, é isto o que reclama o PDI. Mas, ao contrário do "Istiqlal", ele exige a instauração de uma monarquia constitucional. Reconhece-se por esta característica que seus elementos são muito afrancesados, mas, infelizmente, num sentido nem sempre satisfatório. É com efeito no seio deste partido que exceção feita do comunista se encontra o maior número de ateus.

Quase todos os mentores do PDI receberam instrução francesa nos estabelecimentos de Estado. É o momento de deplorar ainda uma vez o ateísmo oficial do ensino público francês. Estes jovens marroquinos não souberam reter apenas a parte negativa, o fato de querer dispensar Deus. Eles puseram em seu lugar os ídolos adorados no Ocidente: a máquina, o progresso, o gozo imediato, o bezerro de ouro...

Certamente, se o Istiqlal era o partido talhado para atrair o Sultão, o PDI é aquele que devia atrair os favores dos homens políticos de Paris. Numerosos, aliás, são os membros do PDI que prosseguem seus estudos nas faculdades da metrópole. Recebidos de bom grado nos salões parisienses pelo gosto da originalidade, advogam a causa de "seus irmãos oprimidos". Sua elegância, seu brilho, sua facúndia, seu espírito libertário tingido de ateísmo não podem deixar de seduzir nossos deputados, que se põem a julgar o Marrocos através desses jovens, como se lá tivessem passado a existência... de sorte que os mais firmes apoios do PDI se encontram na Câmara dos deputados da França!

Apesar de tudo, devemos reconhecê-lo, estes marroquinos não cortam inteiramente os liames com a França. Não hesitam em frequentar os meios franceses, e ficam muito lisonjeados com a acolhida amistosa que encontram na França, se bem que sofram muitas vezes pelo fato de que, se as barreiras raciais não existem com relação a eles, as religiosas permanecem vivas (uma católica não desposa um muçulmano polígamo). No fundo não há ódio real nos jovens qaumi. Existe sobretudo a dor de um ser que se sente desenraigado e ainda inadaptado. Infelizmente, como em todo o Islã, os movimentos políticos, para obter algum sucesso de massa, devem ser mais passionais que racionais. Também o PDI, razoável no princípio, torna-se, cada vez mais, tão fanático como o Istiqlal. Estes dois partidos não cessam de lutar, porfiando cada um por sobrepujar o outro, eles excitam-se mutuamente e não é senão com certo hábito que se chega a distinguir um do outro.

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O Partido do Povo é de criação muito recente. Não participou da redação do Manifesto de Janeiro de 1944 e permanece ainda pouco conhecido. Sabe-se contudo que se apresenta como monarquista constitucional; é mais provável, de acordo com o que consta de seus aderentes, que seja no fundo republicano. Bem entendido, reclama a independência, mas ignora-se se aceita condições.

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Eis portanto, esboçados nas suas grandes linhas os três partidos nacionalistas marroquinos. Veremos em próxima correspondência o Partido Comunista.

Bazar de calçados em Fez


VERDADES ESQUECIDAS

Combater o pecador pode ser o melhor meio de o salvar

São João Crisóstomo

Do Sermão sobre os Espetáculos, pregado em Constantinopla no ano 398:

Assim como os pastores afastam das sãs as ovelhas contagiadas de sarna para que não passem a moléstia às outras, do mesmo modo farei eu!

Portanto, quem quiser continuar na vida impura não entre na igreja mas seja censurado por nós, seja nosso inimigo comum! Procedei vós do mesmo modo: não palestreis com ele, não o acolhais em casa, não tomeis refeições com ele, evitai-lhe a companhia nas viagens, nos passeios, nos negócios! Assim como os caçadores costumam acossar de todos os lados os animais difíceis de caçar, do mesmo modo encurralaremos os embrutecidos, eu deste lado, vós do outro, e em pouco tempo os apanharemos na rede da salvação.