(continuação)
Chefe do Estado, em tudo isto não há mascarada, nem concessões a fraquezas. Há apenas a observância de regras de procedimento inteiramente conformes com a ordem natural das coisas.
MODERNIZAÇÃO ESTÚRDIA
Mas, dirá alguém, não seria conveniente modernizar todos estes símbolos, atualizar todas estas cerimônias? Por que conservar ritos, fórmulas, trajes do mais remoto passado?
A pergunta é de um simplismo primário. Os ritos, as fórmulas, os trajes, para exprimirem situações, estados de espírito, circunstâncias realmente existentes, não podem ser criados ou reformados bruscamente e por decreto, mas sim gradualmente, lentamente, em geral imperceptivelmente, pela ação do costume. Ora, este processos de transformação, a Revolução Francesa com toda a sua sequela de acontecimentos o tornou impossível. Pois a humanidade se deixou fascinar pela miragem de um igualitarismo absoluto, votou desprezo e até ódio a tudo quanto, no terreno dos costumes, exprime desigualdade, e instituiu uma ordem de coisas nova, baseada sobre a tendência para o nivelamento inteiro, a abolição de todas as etiquetas e todas as pragmáticas. Imbuída deste espírito, ela perdeu a capacidade de tocar nas coisas do passado para outro fim, senão para as destruir. Se o homem contemporâneo fosse reformar ritos e instituir símbolos, como a Revolução Francesa criou nele a adoração da lei e o desprezo do costume, ele procuraria, ademais, fazê-lo por decreto. E ainda uma vez, nada é mais irreal, mais caricato, em muitos casos mais perigoso, do que as realidades sociais que se imagina poder criar por lei. A corte de opereta, rutilante, farfalhante, e profundamente vulgar de Napoleão o demonstrou bem.
DESTRUIR POR DESTRUIR
Aliás, é preciso acrescentar que o simples fato de um rito ou símbolo ser muito antigo, não é motivo para o abolir, mas antes para o conservar. O verdadeiro espírito tradicional não destrói por destruir. Pelo contrário, ele conserva tudo, e só destrói aquilo que há motivos reais e sérios para destruir. Pois a verdadeira tradição, se não é uma esclerosação, uma fixação hirta no passado, ainda muito menos é uma negação constante deste. A este propósito, permita-se-nos citar mais uma página magistral de Pio XII. Dirigindo-se à Nobreza e ao Patriciado Romano (“Osservatore Romano” de 19 de Janeiro de 1944), e referindo-se à tradição que a aristocracia da Cidade Eterna ali representava, disse o Pontífice: “Muitos espíritos, mesmo sinceros, imaginam e crêem que tal tradição não seja mais do que a lembrança, o pálido vestígio de um passado que não existe mais, que não pode voltar, e que quando muito é relegado, com veneração se tanto e com reconhecimento, à conservação de um museu, que poucos amadores ou amigos visitam. Se nisto consistisse e a isto se reduzisse a tradição, e se importasse em recusa ou desprezo do caminho do porvir, seria razoável negar-lhe respeito e honra, e seria para se olharem com compaixão os sonhadores do passado, retardatários face ao presente e ao futuro, e com maior severidade aqueles que, movidos por menos respeitáveis e puras intenções, mais não são do que desertores dos deveres da hora que se mostra tão lutuosa.
“Mas a tradição é coisa muito diferente de simples apego a um passado desaparecido, é justamente o contrário de uma reação que desconfie de todo são progresso. O próprio vocábulo, etimologicamente, é símbolo de caminho e marcha para a frente; sinonímia, e não identidade. Com efeito, enquanto o progresso indica somente o fato de caminhar para a frente, passo a passo, procurando com o olhar um incerto porvir, a tradição indica também um caminho para a frente, mas um caminho contínuo, que se desenvolve ao mesmo tempo tranqüilo e vivaz de acordo com as leis da vida, escapando à angustiosa alternativa: “si jeunesse savait, si vieillesse pouvait”, semelhante àquele Senhor de Turenne do qual foi dito: “il a eu dans sa jeunesse toute la prudence d'un age avancé, et dans un age avancé toute la vigueur de la jeunesse” ( Fléchier, Oração Fúnebre, 1676 )
“Por força da tradição, a juventude, iluminada e guiada pela experiência dos anciãos, avança com passo mais seguro, e a velhice transmite e consigna confiantemente o arado a mãos mais vigorosas, que continuam o sulco já iniciado. Como indica com seu nome, a tradição é um dom que passa de geração em geração; é a tocha que o corredor a cada revezamento põe na mão e confia a outro corredor, sem que a corrida pare ou arrefeça de velocidade. Tradição e progresso reciprocamente se completam com tanta harmonia que, assim como a tradição sem progresso se contradiria a si mesma, assim também o progresso sem tradição seria um empreendimento temerário, um salto no escuro.
“Não, não se trata de subir contra a correnteza, de retroceder para formas de vida e de ação de idades já passadas, mas sim de, aceitando e seguindo o que o passado tem de melhor, caminhar ao encontro do futuro com o vigor de imutável juventude”.
NOSTALGIA DE UMA SÃ ORDEM NATURAL
Ora, foi precisamente com esta tradição que o mundo contemporâneo rompeu, para adotar um progresso nascido, não do desenvolvimento harmônico do passado, mas dos tumultos e dos abismos da Revolução Francesa. Num mundo nivelado, paupérrimo em símbolos, regras, maneiras, compostura, em tudo que signifique ordem e distinção no convívio humano, e que a todo momento continua a destruir o pouquíssimo que disto lhe resta, enquanto a sede de igualdade se vai saciando, a natureza humana, em suas fibras profundas, vai sentindo cada vez mais a falta daquilo com que tão loucamente rompeu. Alguma coisa de muito interior e forte dentro dela me faz sentir um desequilíbrio, uma incerteza, uma insipidez, uma pavorosa trivialidade de vida, que tanto mais se acentua quanto mais o homem se enche dos tóxicos da igualdade.
A natureza tem reações súbitas. O homem contemporâneo, ferido e maltratado em sua natureza por todo um teor de vida construído sobre abstrações, quimeras, teorias vácuas, nos dias da coroação se voltou embevecido, instantaneamente rejuvenescido e repousado, para a miragem deste passado tão diferente do terrível dia de hoje. Não tanto por nostalgia do passado, quanto de certos princípios da ordem natural que o passado respeitava, e que o presente viola a todo momento. Eis a nosso ver a explicação mais profunda e mais real do entusiasmo que empolgou o mundo durante as festas da coroação.
Correspondência
De F. C. G. (Porto Alegre): "Assíduo leitor de CATOLICISMO - mensário que por todos os motivos merece respeito e aplauso - tomo a liberdade de vir solicitar-lhe um especial obséquio, que desde já agradeço: a indicação de algum estudo sobre Pascal, no que se refira à sua ortodoxia. Ficar-lhe-ia mais agradecido ainda se publicasse um apanhado das doutrinas desse autor, e lhes fizesse a crítica, pois tenho a impressão de que ele, por vezes, beira a heresia, principalmente nos seus pensamentos religiosos"
R - Pascal (Blaise Pascal, 1623-1662) recebeu de seu pai, Estevam Pascal, esmerada educação científica, filosófica e literária. Além disso, como católico fervoroso, exato no cumprimento dos seus deveres, providenciou Estevam que seu filho tivesse uma formação cristã esclarecida. Fê-lo desde cedo estudar a Sagrada Escritura, os Concílios e os Padres antigos. Conhecedor das tendências racionalistas de seu tempo, e mais ainda da índole curiosa do filho, que de tudo queria saber as razões, inculcou nele esta máxima: "A fé não pode ser objeto da razão, e muito menos estar-lhe sujeita".
Um caso singular ocorrido com Estevam, pôs Pascal em relação com sequazes de Jansênio, que o levaram a maior estima da religião, concebida, porém, à maneira jansenista. Em 1654 (23 de novembro) teve Pascal uma comoção interna - visão? Alucinação? Impressão? - na qual pretendeu ter entrado em contacto com o Deus de Abraão, Isaac e Jacob, não o Deus dos filósofos e sábios, dizia ele, mas o Deus a quem só se chega por Jesus Cristo. Este fato provocou sua decisão de abandonar as ciências para se consagrar exclusivamente à Religião. Retirou-se a Port Royal des Champs, junto dos famosos solitários jansenistas que ali tinham suas celas. Não escapou às extravagâncias destes, o que motivou o dito de sua irmã: "Oxalá tivesses a alma limpa como tens suja a camisa!".
Suas obras sobre questões religiosas são principalmente as "Provinciais" e as "Pensées".
Para Pascal a regra da fé é a tradição. Por tradição entende ele as normas dadas por Jesus Cristo e conservadas na Igreja antiga. Erraria quem pensasse que a Igreja de hoje é infalível: de fato ela não o é. O que não exclui a indefectibilidade da instituição de Jesus Cristo, uma vez que é sempre possível corrigir o engano presente mediante um confronto com a Igreja antiga.
Na Igreja, a primazia cabe ao Papa. É ele quem lhe dá unidade. Não se deve, porém, separá-lo da multidão dos fieis; é uma ilusão pretender que o Papa tem um poder super-eminente, superior ao povo. Nisto erram os papistas, que excluem a multidão; como erram os protestantes, que prescindem da unidade. A Igreja é o todo: o Papa e os fiéis; é somente juntos que gozam dos poderes e prerrogativas que Jesus Cristo conferiu à sua Igreja.
Ninguém dirá que esta Eclesiologia se ajuste à doutrina definida no Concilio do Vaticano, ou que nela se salve o dogma da infalibilidade pontifícia.
Há mesmo certos ditos de Pascal que o fazem um precursor da corrente condenada por Pio XII na "Mystici Corporis", segundo a qual a verdadeira Igreja não é a Igreja jurídica cujos corpos sociais todos conhecem, mas a Igreja pneumática que age no recesso das consciências. Assim, ao dizer que o Papa, como os demais homens, é passível de engano, especialmente por se encontrar no poder, ou então que os excomungados "salvam a Igreja", Pascal lembra muito os devotos dos "evangelistas da Idade Nova".
Na questão das relações entre a graça e o livre arbítrio, repete ele as concepções jansenistas. Antes da culpa original, tinha o homem a possibilidade de fazer o bem ou o mal. Dependia de seu alvedrio a salvação ou a condenação. Depois da queda, já nada pode fazer de bem sem a graça. De maneira que ou é arrastado pela deleitação da concupiscência, e peca, ou é irresistivelmente atraído pela deleitação da graça, e opera a virtude. Este modo de se exprimir já indica suficientemente como em Pascal a concepção da graça é igual à dos jansenistas, que não a entendem como um impulso de causa eficiente, mas como um atrativo de causa final.
Em tal conluio da graça com o livre arbítrio, onde a responsabilidade, e consequente merecimento ou culpa?
A apologética de Pascal também segue as idéias dos discípulos do Bispo de Ypres. Inclinado por sua primeira formação a desconfiar da razão em questões de fé, sentia-se à vontade no meio dos jansenistas que tanto deprimiam a natureza humana decaída.
A razão não pode, por si só, demonstrar as verdades religiosas, como a existência de Deus, a imortalidade da alma, etc., que fazem parte dos preâmbulos da fé. Mas, iluminada pela graça, consegue formular argumentos que a convencem, mesmo na ordem racional, destas verdades. A fé, pois, precede a razão, com precedência absolutamente necessária, mesmo para as verdades que de si são de alçada natural. É supérfluo mostrar que essa doutrina não está conforme com as definições do Concilio do Vaticano e as condenações de Bonnety, Bautin, etc.
Cumpre notar que, para Pascal, a faculdade de conhecer mais profunda não é a razão, e sim o coração. Aquela vale para as demonstrações da geometria, este penetra o âmago da verdade. Aquela chega a evidencia, mas é superficial; este não consegue a demonstração, mas sente o íntimo das coisas, embora sem as definir. A fé pertence ao domínio do coração. "É o corarão que sente a Deus. Eis em que consiste a fé: Deus sensível ao coração, não à razão". Dotes deste conhecimento: imediato, irracional, intuitivo, sintético.
Já se vê que não foi propriamente isto que a Santa Igreja definiu sobre a natureza da fé, chamada "rationabile obsequium".
Eis, em resumo, as doutrinas de Pascal em matéria religiosa. São realmente bem pouco ortodoxas. E suas falhas não são compensadas, em absoluto, pelo fato de terem posto em maior realce o problema da preparação psicológica no trato com infiéis ou hereges que sinceramente procuram a verdade. Aliás, a Igreja sempre reputou incompletas as apologias do Cristianismo - ainda as isentas de qualquer intuicismo cordial - que só se preocupam com mostrar a harmonia entre os dados da Revelação e as aspirações do coração humano.
É difícil avaliar quanto de pernicioso representou para a Igreja a atividade literária desenvolvida por Pascal no campo religioso.
Lanson o faz Precursor dos enciclopedistas, sustentando que, em polêmica religiosa, Pascal teve como discípulos a Diderot e Voltaire. De fato, manejando habilmente as armas do sarcasmo, da ironia e do ridículo, deu ele o exemplo de como se pode destruir o que há de mais sério e de mais básico em um espírito desprevenido, superficial, ou sem tempo para maior reflexão. E os filósofos do século XVIII aprenderam bem a lição!
Sua teoria do conhecimento, passando a fé para o coração, cujo conhecimento é imediato, intuitivo e irracional, mais uma sensação do que uma idéia, o faz precursor do Modernismo.
Sua maneira de conceber a inerrância da Igreja, deixando ao fiel o ajuizar da harmonia entre as atitudes atuais da instituirão de Jesus Cristo e as dessa mesma instituição nos seus primeiros séculos, criou o opinionismo, o chamado liberalismo católico, que é o racionalismo no seio da Igreja: a esterilização do espírito de fé.
Da sinceridade de Pascal, de sua fidelidade à Santa Sé, ou mesmo à objetividade, à realidade, à verdade, dá bem a medida a origem das "Provinciais".
Quando estava iminente a condenação de Arnaldo - alma do jansenismo na França - por parte da Sorbonne, em dezembro de 1655 (a Santa Sé condenou obras de Arnaldo em 1656), os corifeus da nova heresia reuniram-se em Port-Royal para excogitar um meio de evitar a condenação ou, ao menos, criar um ambiente que tornasse nulo seu efeito. Foi nessa ocasião que surgiu a idéia de apresentar toda a questão que se ventilava em Roma e na Sorbonne, como uma discussão de lana caprina, ridícula e sem interesse, e isto em forma humorística e irônica, em linguagem leve e atraente. O próprio Arnaldo fez a primeira tentativa. Seu panfleto, porém, não agradou aos amigos. Foi então que ele se voltou para Pascal, que estivera presente à reunião, e o exortou a assumir o encargo. No dia 23 de janeiro de 1656 saía à luz a primeira "Lettre écrite à un Provincial par un de ses amis sur les luttes presentes en Sorbonne". Seguiram-se mais oito opúsculos com o mesmo título. Pouco depois, já em plena polêmica com os Padres da Companhia de Jesus, eram publicadas mais seis "Cartas", cujo título variou um pouco: "Lettre écrite par l'auteur des Lettres provinciales aux Révérends Pères Jesuites". Finalmente as duas últimas eram dirigidas diretamente ao confessor do Rei, Padre Annat, que saíra a campo em defesa de seus irmãos de Companhia.
A finalidade das "Provinciais" não foi, pois, convencer da verdade, ou reconhecer o erro; e sim desviar a atenção do fundo da questão jansenista — das mais serias, pois que importava à salvação eterna e à conduta moral do povo fiel - com o propósito preconcebido de não aceitar qualquer decisão contraria ao próprio modo de pensar.
Em empresa tão inglória, não admira que Pascal fizesse uso de expedientes reprováveis, como desnaturar fatos e opiniões alheias. Foi seu ponto fraco - sem o qual aliás seria impossível sua argumentação. Os Jesuítas mostraram os erros e as falsificações contidos nas "Provinciais", de maneira que, em Paris, se tornou corrente a expressão: "Mente como um jansenista".
Há quem pretenda que Pascal se tenha reconciliado com Roma nos últimos anos de sua vida. Sua família sempre contestou que ele jamais tivesse abandonado as doutrinas de Port-Royal. Quem conhece a felonia dos métodos dos jansenistas, tem todos os motivos para desconfiar de suas retratações. Não nos compete, porém, julgar do recesso da consciência, cujo domínio só a Deus pertence.
Estudos sobre Pascal há muitos. No artigo que sobre ele escreveu C. Constantin no "Dictionnaire de Théologie Catholique", encontra-se longa bibliografia; aliás o próprio artigo constitui estudo erudito. O espírito jansenista de Pascal descreve-o bem Pastor no volume 14 (parte I, capitulo V, § 2) de sua História dos Papas.
AMBIENTES, COSTUMES, CIVILIZAÇÕES
UNIVERSALIDADE CATÓLICA
E INTERNACIONALISMO PAGÃO
Plinio Corrêa de Oliveira
Duas obras japonesas de arte moderna.
Numa, o pintor Nobuya Abe apresenta o sofrimento do oriental contemporâneo, que implora auxílio à humanidade: feiúra diabólica, desespero absoluto, ausência total de qualquer pensamento de confiança em Deus. O quadro retrata, com a hediondez própria ao estilo, a dor pagã de um ente humano vítima de um mundo também pagão. Este ente humano sofre em todos os órgãos, todas as juntas, todas as fibras de seu ser, sofre odiando sua dor, não a compreendendo de modo nenhum, estertorando por se ver livre dela quanto antes, e não confiando em nenhuma solução, pois não crê na Providência, e só dirige suas súplica à própria humanidade inexoravelmente má que o esmaga. Em duas palavras, pela estridência do desespero, pelo desatino das formas e dos horizontes morais, uma antecipação do inferno.
A outra apresenta o corpo humano! É obra do escultor surrealista Sueo Kasagi. Compare-se - se é que a comparação entre seres totalmente dessemelhantes é possível - este "corpo humano" com a figura de S. Francisco Xavier, no quadro abaixo da página. Neste, a fé parece ter impregnado de dignidade e fortaleza sobrenatural o corpo. Na escultura, uma concepção artística em delírio faz do corpo algo que não é humano, nem se parece com qualquer ser vivo ou capaz de vida!
O terceiro quadro apresenta S. Francisco Xavier em alto mar, implorando o auxílio de Deus durante uma terrível tempestade. O grande apóstolo do Oriente partira de Málaca em frágil embarcação, rumo ao Império do Sol Nascente, e a tormenta o surpreendeu durante o percurso. Seus companheiros de viagem foram tomados de pânico, mas Xavier, impávido, pôs toda a sua confiança na Providência. Deus acolheu benigno a oração de Seu servo, e a tempestade amainou sem que ninguém sofresse dano.
O possante movimento das ondas, a beleza dramática do mar revolto, o desamparo da embarcação transformada em joguete dos elementos desencadeados, a iminência do risco, o pânico dos tripulantes, a serenidade, a fortaleza, o espírito sobrenatural de Xavier, tudo no quadro contribui para definir um contraste empolgante. De um lado, os abismos líquidos do mar, que parecem querer abrir-se para tragar Xavier, e de outro lado sua serenidade perfeita, porque confia inteiramente no Céu. É uma glorificação rica em inteligência, tacto, e verdadeiro senso artístico, da virtude da confiança.
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Uma observação final. A Igreja é universal, e contudo sua influência, igual em todos os tempos e todos os lugares, respeita e até favorece admiravelmente as características legitimas, próprias a cada povo e a cada época. Assim, o quadro referente a São Francisco Xavier durante a tormenta traz todas as notas de finura, imaginação e riqueza de expressão da arte no Extremo Oriente, e não obstante é todo ele animado por um quente e vigoroso sopro de genuína inspiração católica. Pelo contrário, a escola artística do escultor e do pintor cujas obras apresentamos mata todas as características de tempo e de lugar. Basta ter visitado a Bienal em São Paulo, para notar que hediondezas destas pululam com desoladora uniformidade hoje em dia, em todas as partes da terra, comprimindo e asfixiando num mesmo molde o gênio artístico peculiar a cada nação. Internacionalismo profundamente errado, que é precisamente o oposto da admirável universalidade da Igreja.