(continuação)

Unidade no Dogma (conclusão)

"A ínclita nação dos maronitas, como rosa entre os espinhos"

número de 330.000, habitam a Síria, Líbano, Transjordania, Palestina e Egito, além de colônias nos Estados Unidos e América Latina.

Além dos ucranianos, rumenos, melkitas e húngaros, o rito bizantino unido à Santa Sé compreende: 60.000 ítalo-albaneses, 45.000 iugoslavos, 6.000 búlgaros e 2.500 gregos.

A FIDELIDADE A ROMA SALVOU A NAÇÃO MARONITA

Os maronitas têm sua origem nos antigos habitantes da Síria evangelizados por São Barnabé, São Pedro e São Paulo, portanto nos primeiros tempos do Cristianismo. A heresia monofisita, condenada em 451 pelo Concilio de Calcedônia, produziu em 543 um cisma, com a constituição da igreja monofisita síria, conhecida por igreja jacobita. Mas, uma parte da população não apostatou, permanecendo fiel aos ensinamentos do Concilio, graças à orientação dos monges discípulos do anacoreta São Maron. Surgiu assim a ínclita nação dos "Maronitas".

A vida de São Maron é relatada por Teodoreto, Bispo de Cyro e seu contemporâneo. Nasceu esse venerável Santo em meados do século IV e levou vida de penitencia numa montanha da Síria, a todos edificando por suas virtudes e milagres. Morrendo em 410, seus numerosos discípulos erigiram o mosteiro a que deram o seu nome, e que foi o grande centro de resistência ao monofisismo. Chegou a ter oitocentos monges, que sofreram grandes perseguições por Parte dos hereges, os quais massacraram trezentos e cinquenta deles.

No século VII, quando o Patriarcado de Antioquia esteve vago de 636 a 742, os maronitas se separaram de sua jurisdição e elegeram Patriarca próprio, na pessoa de João Maron, monge que se havia destacado na luta contra os jacobitas. A sede do Patriarcado ficou sendo o mosteiro de S. Maron, até sua destruição nos princípios do décimo século por invasores árabes. Nessa época, para se livrar dos muçulmanos, transferiram-se os maronitas, em sua grande maioria, para o Monte Líbano, onde já viviam alguns de seus monges, e ali estabeleceram a nova sede do Patriarcado.

Nesta região agreste, os cristãos maronitas realizaram verdadeiras maravilhas para torná-la habitável, e adquiriram as qualidades típicas dos povos montanheses. Absorveram seus vizinhos indígenas e conseguiram se tornar fortes para resistir às invasões islâmicas. Ficaram, porém, impossibilitados de manter contatos seguidos com Roma, apesar do que jamais esboçaram qualquer tendência de negar a sua supremacia, à qual permaneceram inviolavelmente fiéis.

Os chefes eclesiásticos assumiram a direção da nação, conseguindo organizá-la livre das desordens religiosas e políticas que continuamente se abatiam sobre os povos do Levante, o que lhe valeu a comparação de Leão X: "inclita natio Maronitarum, tanquam rosa inter spinas".

De tal modo mantiveram a noção de sua união com a Igreja Romana que, quando lá chegaram os cruzados em 1099, os maronitas os receberam cheios de entusiasmo e lhes deram todo o auxílio de que necessitaram. Os cruzados, por sua vez, os autorizaram a celebrar nos seus altares e com seus paramentos. Tão grande foi a união que se estabeleceu, que São Luiz IX lhes concedeu gozarem dos mesmos privilégios a que tinham direito os franceses nos Estados latinos do Oriente.

Dominado depois o país pelos sultões Mameluk do Egito, os maronitas conservaram certa autonomia política. Veio em seguida a dominação dos turcos otomanos, que mantiveram este estado de coisas. Com o tempo, porém, passaram a incentivar rivalidades entre os maronitas e os drusos. Essas rivalidades resultaram na tragédia de 1860, quando onze mil católicos foram massacrados em vinte e dois dias. A França intervém então, enviando uma expedição militar que restabeleceu a autonomia do Líbano. O Patriarca Maronita, que exercia extraordinária influência política, tornou-se daí por diante o grande apoio dos franceses contra as continuas tentativas inglesas de unir toda a Síria sob a sua proteção. Sob mandato francês depois da primeira guerra mundial, o Líbano é hoje independente.

Os maronitas, em número de 377 mil no Líbano, não são mais os seus únicos habitantes. Drusos, gregos melkitas e cismáticos, armênios unidos e separados, sírios, caldeus e judeus que em diferentes épocas entraram no país completam a heterogênea população de 865.000 almas. Na América do Norte, Argentina, México e Brasil, sobretudo, existem muitos maronitas emigrantes: quase tantos quanto no Líbano.

O atual Patriarca é Sua Beatitude Monsenhor Antoun Arida, Patriarca de Antioquia e do Oriente, residente em Beiruth.

O rito atual, apesar de influências latinas devidas ao contacto com os cruzados, ao Clero formado em Roma, e à ação de Legados Pontifícios, mantém traços evidentes do primitivo rito de Antioquia, de que se origina (este é atribuído a São Tiago Apóstolo, primeiro Bispo de Jerusalém). Conserva até hoje a grandiosa simplicidade das orações da Igreja de Antioquia. A língua litúrgica é o siríaco, falado na Síria e na Palestina no tempo de Nosso Senhor Jesus Cristo. Algumas orações são em árabe, que substituiu na região o siríaco, hoje língua morta.

O RITO ARMÊNIO

O povo armênio se converteu em massa ao Catolicismo nos fins do século III, embora a primeira evangelização tenha sido feita — conforme a hipótese hoje geralmente aceita pelos historiadores — senão pelos Apóstolos, certamente por seus primeiros discípulos. Já em meados do século II se tem notícias de um Bispo armênio.

Só entre 290 e 300 é que, com São Gregório o Iluminador, se dá a grande conversão e evangelização. Este reorganiza a Igreja Armênia, que sob a dupla influência grega e siríaca progride até ser atingida pelo cisma de Cerulário. Atualmente há apenas 80.000 católicos armênios, contra 3.100.000 cismáticos do mesmo rito.

A liturgia, visivelmente baseada sobre a de São Basílio, com elementos siríacos, foi elaborada sobretudo pelos Santos Sahac e Mesrop. Apresenta também alguns elementos latinos, recebidos dos cruzados, como certas orações preparatórias à Missa, o confiteor, e a conclusão do Santo Sacrifício com o início do Evangelho de São João. As horas canônicas mantém sua forma arcaica, acrescida de inúmeros hinos de bela inspiração que manifestam a riqueza da vida católica armênia.

O RITO SÍRIO, FONTE DE QUASE TODOS OS RITOS ORIENTAIS

A Igreja Síria, cujo chefe era o Patriarca de Antioquia, dominava em toda a Grande Síria — atualmente Síria, Líbano, Mesopotâmia, Arábia, Palestina até o século V. Diversas heresias, como a nestoriana, condenada pelo Concilio de Éfeso em 431, e sobretudo o monofisismo, afastaram grande parte do povo sírio da verdadeira Igreja. A igreja jacobita, ou monofisita, reuniu a maioria dos apóstatas.

No século XVIII o novo Patriarca jacobita, S. B. Mons. Miguel Jarweh, abjurou a heresia e fez profissão de fé católica. Seu título patriarcal foi reconhecido por Roma, nascendo assim a atual Hierarquia Síria Católica, cujo chefe atual é o Patriarca Sírio de Antioquia, Sua Beatitude Eminentíssima o Cardeal Inácio Gabriel I Tappuni. É calculado em 120 mil o número de católicos de rito sírio, número este um pouco superior ao dos hereges jacobitas de igual rito.

A Igreja Síria se orgulha de manter intacta a mais antiga liturgia conhecida, a do Apóstolo São Tiago, da qual derivam, segundo o consenso unânime dos autores, quase todas — senão todas — as liturgias orientais.

A "missa dos fiéis" neste rito parece nada mais ser que o próprio Grande Halele — ritual que seguiam os judeus para a manducação do cordeiro pascal — cristianizado e desenvolvido.

OS RITOS COPTAS DE ALEXANDRIA E DA ABISSÍNIA

O rito copta é adotado por duas comunidades muito ligadas entre si, a Igreja Copta de Alexandria e a Igreja Copta da Etiópia, ambas em comunhão com a Santa Sé.

O nome de coptas provem da designação dada aos povos cristianizados pelo Apóstolo São Marcos do Egito. Com a condenação de Dioscoro, Patriarca de Alexandria, pelo Concilio de Calcedônia, como fautor do monofisismo, os coptas se rebelaram e esposaram esta heresia. Grandemente perseguidos pelos imperadores bizantinos, que por meio de excessivos maus tratos e humilhações quiseram fazê-los aceitar as decisões do Concílio, estas populações receberam como salvadores os invasores árabes de Amr ibn el-As em 639, que expulsaram ou prenderam os bizantinos e deram liberdade aos coptas. Mas pouco durou esta liberdade; grandes perseguições se seguiram, especialmente a movida por Saladino, o famoso chefe muçulmano contra a terceira cruzada, a ponto de no século XII somente 10% da população pertencer à igreja copta.

Após uma tentativa de reerguimento pelo canonista Safi ibn as-Assal no século XIII, de duração efêmera, e da dominação turca e egípcia, restavam, em 1820, 100 mil coptas. Em princípios do século passado, o Sultão do Egito Mohamed Ali deu-lhes liberdade, e daí adveio um grande progresso, que resultou nos 2 milhões de coptas separados atuais.

A Igreja Católica Copta tem sua origem em 1741, quando o bispo copta de Jerusalém, Atanásio, se converteu. Em 1899 o Santo Padre Leão XIII criou o Patriarcado Copta Católico de Alexandria, provendo-o com Cirilo Macário; mas sua duração foi efêmera, pois este apostatou, arrependendo-se porém, no momento da morte.

Sucederam-lhe vários Administradores Apostólicos até 1947, quando S. S. Pio XII nomeou novo Patriarca, na pessoa de S. B. Mons. Marcos II Khuzam. São hoje 70 mil os católicos do rito copta de Alexandria.

A igreja cismática da Etiópia, que só nestes últimos anos vem ganhando autonomia em relação à de Alexandria, embora ainda continue sob sua autoridade, remonta à eleição de Frumencio como Bispo da Etiópia, por Santo Atanásio, no século IV. Acompanharam os etíopes a igreja-mãe de Alexandria na heresia monofisita. No século passado, fruto do trabalho de missionários jesuítas, capuchinhos e lazaristas, alguns etíopes voltaram ao Catolicismo. Em 1839 foi criada a Prefeitura Apostólica do Tigre e em 1847 o Vicariato Apostólico da Abissínia. Em 1951, o Santo Padre Pio XII, gloriosamente reinante, nomeou dois Administradores Apostólicos, Bispos, para os católicos de rito copta da Etiópia e da Eritréia, dando assim a esses 75 mil fiéis a honra de possuir uma Hierarquia própria.

O rito copta conserva muito de suas origens do tempo de São Marcos. Os coptas de Alexandria usam na liturgia a língua copta, e os da Etiópia uma língua semítica, o gheez.

O RITO CALDEU

Segundo a tradição, os primeiros apóstolos da Galileia foram os Reis Magos, a quem se seguiu São Tomé. Aos discípulos deste se atribui a liturgia empregada pelos caldeus, de onde o nome de "missa dos apóstolos". O rito caldeu floresceu rapidamente, atingindo em pouco tempo o número de duzentas dioceses. As invasões mongólicas e islâmicas e por fim a heresia do nestorianismo foram os instrumentos de que se serviu o demônio para arruinar este florescente centro de Catolicismo, que antes deu à Igreja um grande número de mártires.

Em meados do século XIII procuraram os nestorianos caldeus voltar à união com Roma, o que porém só se deu dois séculos depois, quando parte deles se converteu à Igreja verdadeira, formando a chamada Igreja Católica Caldeia. Seu Patriarca conservou o título de Babilônia, mas mora em Bagdá.

Após a união voltaram as perseguições. Na Pérsia e na Mesopotâmia, dois centros principais dos católicos caldeus, elas atingiram o auge durante a guerra de 14-18, quando massacres sistemáticos foram organizados contra os católicos.

OS GRUPOS CALDEU-MALABAR E SÍRIO-MALANKAR

Na Índia os cristãos ocupavam durante a Idade Média as costas de Malabar e Coromandel e as Ilhas Maldivas. Estavam sujeitos ao patriarca cismático caldeu de Bagdad, mas tinham clero indígena.

Esses hereges receberam muito bem os portugueses. Missionários dominicanos, franciscanos e jesuítas conseguiram a conversão de numerosos prelados caldeus. Procuraram porém os portugueses latinizar a liturgia, o que provocou descontentamento, aumentado com a nomeação de um Bispo jesuíta latino. O resultado foi um cisma quase geral, que aderiu à igreja jacobita.

Um pequeno grupo permaneceu fiel a Roma, e outros foram voltando à unidade. Pio XI reuniu-os em uma Província "sírio-malabar", hoje com quatro Bispos de rito caldeu, dependendo diretamente da Sagrada Congregação para a Igreja Oriental, e possuindo pouco mais de um milhão de fiéis.

Nos últimos anos, do grupo que aderira à igreja jacobita, cerca de 80 mil chefiados pelos Bispos Ivanio, Teofilo e Severios, voltaram ao seio do Catolicismo, e constituem a Província Eclesiástica "sírio-malankar", que tem à testa Ivanio, Arcebispo de Trivandrum. São do rito sírio, diverso, pois, dos de rito caldeu, e em muito menor número do que estes: apenas 70.000 fiéis.

Padre do rito armênio

Benção solene na Missa pontifical do rito grego

Bispo do rito caldeu


OS CATÓLICOS FRANCESES NO SÉCULO XIX

Calúnias e anonimato

Fernando Furquim de Almeida

O Conde de Falloux, que fora obrigado pela enfermidade a abandonar a política ativa, procurou defender sua atuação como ministro de Luís Napoleão, publicando no "Correspondant" uma série de artigos sob o título "O Partido Católico, o que foi ele e o que se tornou", mais tarde reunidos em um volume profusamente difundido por toda a França. O "Univers", que fora o principal adversário do antigo ministro, era responsabilizado pelo desaparecimento do Partido Católico. Defendendo uma tese ingrata, o Conde de Falloux não atacava diretamente, mas insinuava, usava de subentendidos, afirmava conhecer fatos que revelaria quando fosse necessário. Enfim, fez um trabalho hábil e inteligente, porém nada convincente.

Veuillot, também em uma série de artigos, reunidos depois no livro "O Partido Católico", respondeu refutando todas as acusações e pedindo que os fatos a que aludia o Conde de Falloux fossem revelados. Sob a alegação de que a resposta de Veuillot era um longo artifício, o Conde de Falloux se recusou a acrescentar qualquer coisa ao que escrevera, limitando-se a dizer que apelava para o julgamento da posteridade.

Depois desse verdadeiro fracasso do ex-ministro da Instrução Pública, os inimigos do "Univers" não podiam mais ter ilusões. Ouvindo certa vez acusarem o jornal de ir além das intenções de Pio IX, Victor Cousin fez calar os acusadores, exclamando: "Convenhamos em que, hoje como sempre, Veuillot tem por si o Papa e a gramática". Mas se a luta de viseira erguida era impossível aos adversários de Veuillot, restavam-lhes as armas do anonimato e da calúnia, e não recearam valer-se delas.

Um certo Jacquot, personagem até então absolutamente desconhecido, publicou um panfleto em que lançava as mais torpes calúnias contra o redator-chefe do "Univers", a pretexto de escrever sua biografia. Já ia a obra pela nona edição, sem que Veuillot a julgasse digna de resposta, quando o "Moniteur du Loiret", folha que se editava na diocese de Orléans, começou a transcrevê-la. Mons. Dupanloup não podia perder essa oportunidade de manifestar seus sentimentos para com seu grande adversário, e apressou-se a dirigir ao jornal um pedido nestes termos: "Quaisquer que tenham sido os erros do Sr. Veuillot, deploro tal publicação e ficaria agradecido se o Sr., como espero, tivesse a bondade de não a continuar. O remédio para o mal não é esse".

Léon Lavedan, o responsável pelo "Moniteur", atendeu "à caridade e sabedoria do seu ilustre e venerável Bispo". Eram de tal ordem, no entanto, as infâmias de Jacquot, que Mons. Dupanloup não poderia ter tomado publicamente essa atitude, aceitando-as implicitamente e só reprovando a sua divulgação. Veuillot escreveu ao "Moniteur du Loiret" protestando contra a intervenção do Bispo de Orléans, de cuja caridade falsa ele não tinha necessidade.

A brochura do Conde de Falloux e o panfleto de Jacquot foram esquecidos com o aparecimento de um livro anônimo: "L’Univers jugé par lui-même, ou Études et documents sur le journal l’Univers, de 1845 à 1855". Publicado em apresentação de luxo por uma boa editora, "Dentu", anunciado em todos os jornais e distribuído gratuitamente com a máxima liberalidade, era um modelo de má fé e habilidade. Pretendia demonstrar que o "Univers" era revolucionário, turbulento, sem respeito, sem caridade, estava recheado de injúrias e insultos e se entregava, em nome da Igreja, a contradições e palinódias com cuja solidariedade ela se desonraria.

A técnica usada para demonstrar tudo isso consistia na citação de parágrafos, e mesmo apenas linhas de artigos tomados em dez anos de vida do jornal, seguidos dos comentários convenientes. Por exemplo, em 1846 o "Univers" tomara a defesa de Luís XVI contra ataques do "Siècle", e naturalmente se referira às virtudes desse rei; ao passo que, em 1856, mostrara que ele adotara posições falsas e não soubera ver a verdadeira face dos acontecimentos. Foi fácil ao autor de "L’Univers jugé par lui-même" extrair desses dois artigos trechos escolhidos, que dessem a aparência de contradição. Para completar, nos intervalos das citações vinham calúnias, insultos e tudo o que se pudesse atirar contra a probidade de um homem.

No momento da publicação, Veuillot se achava em férias e não pensou que a questão fosse grave, dado o caráter anônimo do livro. Além disso, as citações eram tomadas tão a esmo em todas as seções do jornal, e a fonte tão mal indicada, que era evidente a desonestidade do trabalho. Assim, o "Univers" era acusado de ter preparado a revolta, o assassínio político, o regicídio, e como prova vinha um trecho de quatro linhas com a esta sumária indicação da fonte: 1848. Não era possível procurar essas poucas linhas em 7000, de um jornal composto em tipos miúdos! A difusão e a acolhida que teve o livro revelaram logo, no entanto, uma campanha organizada e com mentores altamente colocados, tudo indicando um novo complô contra a existência do jornal de Veuillot. Este renunciou às férias e voltou a Paris para se defender.

Estavam os redatores do "Univers" coligindo material para processar o autor do livro, quando "L’Ami de la réligion", sem querer, deu motivo a que o grande diário católico recebesse uma verdadeira consagração internacional. Tudo começou com uns artigos de "L’Ami de la réligion" elogiando "L’Univers jugé par lui-même". Indignado, o Bispo de Arras, Mons. Parisis, escreveu-lhe uma longa carta de protesto, na qual dizia: "Se o "Univers" fosse tudo o que se afirma, e nada mais do que isso, seu processo já estaria feito e seria necessário suprimi-lo. Ora, não temo proclamá-lo com uma profunda convicção: a supressão do "Univers" seria para a Religião uma infelicidade pública".

E mais adiante: "Na Itália, na Inglaterra, na Irlanda, por toda parte encontrei o "Univers" em casas de todos os prelados e de todos os católicos eminentes. Perguntai aos missionários da América ou da Oceania, das Índias ou da China que jornal lêem, todos responderão: o "Univers".

E continuava: "Vós vos alegrais porque uma brochura recente extraiu de vinte volumes in folio, e as justapôs, citações que não encheriam ao todo um número do jornal, dando por conclusão: "Voilà L’Univers". Acho, senhores, que o autor das "Provinciales" vos precedeu nessa arte fácil. Acrescento ainda que não o igualastes".

"L’Ami de la réligion" classificou a carta de Mons. Parisis como um libelo de advogado, ao que o Bispo de Arras respondeu com a seguinte nota:

"Peço-vos dizer que se falei foi como Bispo, e não como publicista. Vi a Religião interessada nesse caso, não no que se refere às questões debatidas, que são muitas vezes colocadas no campo livre das opiniões, mas no que se refere à existência mesma do "Univers", ameaçada por projetos que conheço, deploro e não posso deixar de temer. Não é um jornal o que defendo, é uma grande instituição católica que há vinte anos leva a defesa da Igreja a todas as partes do mundo, e que querem quebrar por meio daqueles mesmos a quem ela é devotada. Vi paixões violentas e incríveis ilusões a serviço desse projeto detestável, e dei o grito de alarme: eis todo o segredo da minha carta".

As adesões do episcopado a Mons. Parisis não se limitaram à França. Da Espanha, da Inglaterra, dos Estados Unidos, enfim, de todas as partes do mundo chegavam cartas elogiando o "Univers" e apoiando as palavras do Bispo de Arras. O Arcebispo de Smirna declarava a Mons. Parisis que todo o episcopado e todos os missionários do Levante o tinham encarregado de agradecer-lhe pela intervenção a favor do "Univers".

"L’Ami de la réligion" afirmava que também tinha sido apoiado por vários bispos, mas nenhum o fez publicamente, tendo mesmo o Cardeal de Bonald, citado nominalmente, escrito a Veuillot nos seguintes termos: "Lamento que meu nome tenha sido invocado contra vós, e que se tenha pretendido fazer dele uma arma contra o jornal. Partilho (salvo na questão dos clássicos) da maneira de ver do Bispo de Arras, e como ele eu consideraria a supressão do "Univers" uma infelicidade, que privaria a Religião de um defensor cheio de coragem, de zelo e de luzes".

Apesar de todas essas manifestações, a campanha desencadeada por "L’Univers jugé par lui-même" cresceu a tal ponto que Veuillot foi obrigado a processá-lo. Esse processo é uma das páginas mais tristes da história do Catolicismo francês no século XIX, e revela quanta razão tinha Mons. Parisis ao deplorar as maquinações que os inimigos do "Univers" tinham forjado.


NOVA ET VETERA

Ainda o câmbio negro

J. de Azeredo Santos

O câmbio negro é resultado típico do intervencionismo estatal na vida econômica dos povos. Pode-se mesmo afirmar que se trata de instituição oficiosa do Estado moderno.

Allard, em seu livro sobre os escravos cristãos, faz uso de uma imagem bem forte e eloquente para explicar a decadência do homem livre na sociedade pagã da Roma imperial — imagem que se aplica como uma luva à presente conjuntura política, social e econômica: assim como as águas de um rio, quando encontram obstáculo ao seu livre curso na superfície dos vales, abrem caminho no solo e se desenvolvem em correntes subterrâneas, do mesmo modo a oposição do dirigismo do Estado leva o natural e livre curso da vida econômica a procurar caminhos escusos e subterrâneos, sobretudo através dessa sinuosa instituição a que se deu o nome de câmbio negro.

DUAS CAUSAS CONVERGENTES

Temos, porém, que distinguir duas causas principais que agem de modo simultâneo e convergente na produção deste último fenômeno.

Uma, vem a ser a própria economia planificada, com o seu séquito de burocracia, de códigos, de regulamentos, de papelório, de canais competentes, de licenças prévias, de prioridades, de proibições, de taxações, de entraves de toda a espécie.

Assim é que uma grande organização industrial pode ser levada a diminuir sua produção, ou mesmo chegar às portas de um colapso completo, porque um funcionário, baseado no parágrafo X, alínea Y, do artigo Z de não se sabe que portaria ministerial, proíbe a importação de duas grosas de parafusos imprescindíveis à manutenção do maquinário

A SUPERSTIÇÃO DO REGULAMENTO

A este respeito nos lembramos de um comentário corrente no Rio de Janeiro ao se realizar uma concorrência para o reforço do abastecimento de água daquela cidade. O Tribunal de Contas negara registro ao contrato da firma vencedora, por não se enquadrar ele nas normas e regulamentos existentes. Comentário da ocasião: o carioca morrerá de sede, mas terá o consolo de saber que morrerá de acordo com o regulamento... Não nos referimos ao mérito da decisão do Tribunal, pois bem sabemos o que muitos desses contratos significam em meteria de ônus para o povo, que é quem, em última instância, paga as liberalidades dos dirigentes da máquina administrativa. Queremos apenas frisar quanto a opinião popular tem a sensação de que em todas as atividades do Estado existe o culto supersticioso dos regulamentos, dos canais competentes, da letra burocrática que mata ou neutraliza todos os esforços daqueles que ainda crêem na liberdade de iniciativa em um mundo em que a planificação da vida econômica se torna cada vez mais asfixiante.

Outro esteio do câmbio negro vem a ser a imoralidade administrativa, o regime do suborno, dos empenhos políticos para a obtenção de favores governamentais, a instituição dos testas de ferro em negócios escusos que não podem ser realizados sem a cumplicidade do poder público.

Esta segunda causa é consequência da primeira, pois os entraves burocráticos agem como a metralhadora nas mãos do gangster. Com efeito, um gangster desarmado tem a sua periculosidade muito diminuída. E aos que possam achar esta linguagem demasiado forte, temos a acrescentar que estamos sendo injustos com o gangster. É ele um criminoso, mas não se pode negar seu destemor — arrisca a vida, de metralhadora em punho, para roubar. E aqueles que assaltam a bolsa da sociedade de decreto em punho, que para proveito próprio usam do intervencionismo do Estado na vida econômica, têm a agravante da covardia e da impunidade. Já dizia Chesterton que o último patife existente na Inglaterra foi o infortunado Guy Fawkes, enforcado em 1606...

O DESRESPEITO À MAJESTADE DA LEI

Na Inglaterra, porém, é forçoso reconhecer que o fenômeno do cambio negro não se apresenta com as cores carregadas de outras piegas. Povo ordeiro e dotado de grande respeito pelas leis e instituições, não deixa, entretanto, de sofrer as consequências implacáveis do intervencionismo socialista ali implantado pelo trabalhismo fabiano:

"À medida que a economia planificada revela suas consequências, diz o professor John Jewkes, com sua autoridade de lente de Economia Política na Universidade de Manchester, o homem comum se torna consciente da existência de um grupo de Supremos Planificadores que praticam erros espetaculares, e de um enxame de planificadores mirins que põem em vigor regulamentos sem nenhuma razão de ser. É nesta atmosfera que o desrespeito à lei cresce, e o câmbio negro floresce.

"A Grã Bretanha não é naturalmente um campo fértil para o câmbio negro. O povo é respeitador das leis por hábito e tradição. Não dispõe de uma grande população agrícola da qual, como em tantos outros países, os alimentos possam ser adquiridos ilegalmente ou por meio de troca. Mas não há dúvida que, em meados de 1947 (quando se achava no poder o governo trabalhista), uma grande parte do povo inglês estava infringindo algumas leis de que tinha conhecimento, um número maior estava infringindo leis de que não tinha conhecimento, e um número ainda maior estaria disposto a infringir as leis se para isso tivesse oportunidade" (John Jewkes em "Ordeal by Planning", pag. 221).

INVASÃO DO CAMPO DA ATIVIDADE PRIVADA RESPONSÁVEL

Não será esse Estado orçamentívoro e hiper-legiferante e super-planificador e burocratizado o maior provocador da desordem e da prevaricação na vida econômica no mundo de hoje?

"Se, com efeito, o Estado se arroga o dispor das iniciativas privadas, diz Pio XII, estas, que se governam por normas internas delicadas e complexas que garantem e asseguram a consecução do fim que lhes é próprio, vêm-se danificadas, com desvantagem para o bem público, por serem arrancadas de seu ambiente natural, isto é, da atividade privada responsável" (Enciclica "Summi Pontificatus").

Ora, legislar sobre os preços, sobre a moeda, sobre a política cambial, sobre os salários, sobre a produção, baixar do seu pedestal de distribuidor de justiça para ser negociante e capitão de indústria, não será isso regredir o Estado aos tempos em que os régulos do Império Romano competiam, através do trabalho escravo, com o povo livre, ao ponto de forçar os cidadãos romanos a descer aos subterrâneos, das profissões equívocas, ou a ombrear com os escravos nas empresas industriais e agrícolas dos "gauleiter"1 e comissários do povo daquela época?

1 Chefe de distrito (nazismo)