A VANGUARDA ESTÉTICA DA LUTA CONTRA A IGREJA

CUNHA ALVARENGA

PELO que já dissemos em crônicas anteriores sobre a arte moderna, quer em seus ramos figurativistas, quer nos da corrente abstrata, podemos concluir que ela foi criada para, no setor estético, servir de instrumento da revolução no combate à concepção católica de vida.

Além das provas instrumentais colhidas na própria produção artística dessas variadas correntes, temos farta messe de depoimentos de inconfidentes. Sem muita originalidade, depois de liquidarem sumariamente a "tirania artística" da Idade Média, "velha praxe dogmática" derrubada pela concepção humanista da Renascença, mostram o caráter nitidamente anticatólico das sucessivas etapas dessa revolução estética.

O SONO MILENAR DO PRIMITIVO

POR exemplo, escreve um deles: "O futurismo também nasceu numa época de dinamismo embriagador. Ninguém crê mais nos dogmas. Não há mais fé cristã. A escravidão nos atormenta. A arte dos mestres não mais nos extasia. Não nos satisfaz. A literatura clássica nos aborrece sobremaneira. Desejamos contentar os nossos instintos. Desejamos e não compreendemos. Temos ânsias de sensações novas. E isto por quê? Porque somos constantemente despertados pelas nossas influências ancestrais. Dentro de cada um de nós dorme o seu sono milenar o primitivo. Assim, vemos os nossos primeiros desejos, recalcados na infância pelos preconceitos morais, se deslocarem agora do subconsciente, para se manifestarem nas produções dos artistas de vanguarda" (1).

Vemos do mesmo modo nas indiscrições de um Fernando Pessoa, ao definir sua posição religiosa, o que realmente se acha no “underground" dessa arte que se diz moderna: "Cristão gnóstico, e portanto inteiramente oposto a todas as Igrejas organizadas, e sobretudo à Igreja de Roma. Fiel, por motivos que mais adiante estão implícitos, à Tradição Secreta do Cristianismo; que tem íntimas relações com a Tradição Secreta de Israel ( a Santa Kabbalah) e com a essência oculta da Maçonaria" ( 2 ) .

Não é por outra razão que por detrás das principais correntes da arte moderna se acham "magos" e ocultistas como Max Jacob, Apollinaire, Madame Blavatsky, Annie Besant, Leadbeater, etc.

DENTRO DO UTÓPICO E DO ÓRFICO

SÃO também essas preocupações gnósticas que fazem um Oswald de Andrade, outro desastrado indiscreto, demonstrar claramente suas simpatias pelas correntes esquerdistas e liturgicistas que se acham infiltradas no seio da Igreja, ao dizer que o Catolicismo se reajusta, "retornando à sua posição por assim dizer socializante" (3). Para ele, porém, o que mais interessa "no movimento de renovação do Catolicismo é a figura central do alemão Romano Guardini. Este líder empresta uma importância descomunal ao culto, ao rito e à liturgia e isso me parece de uma importância capital, pois procura destruir o nó reacionário do clericalismo moralizante. Guardini no Espírito da Liturgia chega a colocar o Rito acima da Ética. Romano Guardini traz com a realidade da vocação do homem para crer e adorar, um apaziguamento das questões que faziam do pecado o estorvo da consciência da maioria dos crentes. Enquanto Barth manda crer, Guardini convida a adorar. São esses para mim os únicos caminhos eficientes encontrados hoje para um renovamento do cristianismo, dentro do utópico e do órfico e não fora do social" (4).

A kabala artística detém em suas mãos os cordéis de todos esses marionetes da arte moderna, quer se trate de iniciados nesses segredos tenebrosos, quer de simples ingênuos arrastados e subjugados por essa onda de loucura e de cabotinismo...

RAMOS DA MESMA ARVORE

DEIXEMOS de lado o expressionismo e outras correntes do século passado e retomemos apenas os principais ramos da arte dita de vanguarda, a partir do início deste século. Dentro da volta ao primitivo, à arte mágica dos feiticeiros da África e da Oceania, surge o cubismo, do qual se desprendem duas correntes: de um lado o futurismo, o raionismo, a arte abstrata; de outro, o dadaismo e o surrealismo. Sem falar em variações do próprio cubismo, como o tubularismo de Fernand Lèger, o purismo de Le Corbusier, etc.

Ora, como vimos em crônicas anteriores, essa arte moderna não corre em busca da beleza, mas da expressão, da ciência, da gnose, do ideal socialista de vida. É o que afirma Picasso ao dizer: "Não sei por que falam de beleza: a um químico não se lhe pede um precipitado bonito". Todas essas correntes se entregam ao automatismo, tomando como paradigma a arte dos loucos, dos selvagens, dos médiuns, a improvisação dos palhaços e das crianças. É o que explica o fato de haver sido conferido prêmio de pintura na I Bienal de Arte Moderna em S. Paulo, a Heitor dos Prazeres, um arrematado analfabeto das artes plásticas. E é aqui que entram a magia e o ocultismo. Mostramos que Kandinsky produziu suas obras de arte abstrata em estado de transe (5). Herbert Read afirma o mesmo com relação a Picasso, em suas variadas fases (6). Klee se inspirava na produção artística do chamado homem primitivo (confundido com o selvagem da Polinésia ou das Américas), bem como nas alucinações dos loucos, e desenhava sob hipnose. Chirico, ao pintar suas paisagens fantasmagóricas, fazia-o de olhos fechados, em estado de transe. Vimos também as ligações teosóficas de um dos expoentes da pintura abstrata, Mondrian. Esses fatos bastariam para pôr a opinião católica de sobreaviso diante dessas correntes estéticas, pois deles ressalta a oposição radical entre os princípios básicos da chamada arte moderna e o que há de mais fundamental na doutrina da Igreja.

UMA CONTRADIÇÃO APENAS APARENTE

VEJAMOS, por exemplo, essa prática generalizada do automatismo, com base na volta ao instintivismo do homem primitivo.

À primeira vista parece que nos achamos diante de uma flagrante contradição: os homens da arte de vanguarda, partidários da evolução progressiva da humanidade, que desejam cortar todas as amarras com o passado, chegando a propor o incêndio de todos os museus, esses homens super-modernos tomam como ponto de partida para a elaboração dos princípios diretores de sua arte a atitude mental de um selvagem, o primitivo das cavernas. Mas a contradição é apenas aparente. Como claramente afirma o sr. Osório Cesar, trata-se de libertar a humanidade do jugo do Cristianismo e, conforme a versão gnóstica da Queda, de promover a volta do mundo à tradição do antigo "conhecimento" ou ciência perdida com a união do espírito à matéria. Em termos católicos, trata-se de ouvir a voz da serpente: "Sereis como deuses”...

Como já tivemos ocasião de assinalar (7), nesse panteísmo gnóstico se vota o mais completo desprezo ao que denominam "moralismo" e "ascetismo". A noção de culpabilidade permanente estranha a tal sistema, pela simples razão de que a idéia do mal nele não atinge jamais o plano pessoal, pois o mal seria o resultado de um cataclismo cósmico, que teria produzido a escravização do espírito à matéria bruta. Portanto, quanto mais o homem se afundar no embrutecimento dos sentidos e da inteligência, tanto mais se libertará da corrupção da matéria e se transportará ao recinto espiritual e divino do Pleroma, até a atingir a completa libertação da idéia, aspiração de que o abstracionismo procura ser a representação plástica. Daí o valor que os gnósticos modernos dão à volta ao homem primitivo.

ARTE PRÉ-HISTÓRICA

ORA, para a doutrina católica, corroborada pela verdadeira ciência, não há homens primitivos, no sentido de um estado inicial de selvageria e de barbárie, mas homens decadentes. Criou Deus o homem à Sua imagem, no estado de integridade, dotado de inteligência claríssima, de justiça original unida à prática de todas as virtudes, com império absoluto da alma sobre o corpo e domínio sobre todas as criaturas, isento do sofrimento e da morte.

Começaram os homens, portanto, não guiados pelos instintos e desprovidos de consciência moral, mas dirigidos pelo dom da ciência e da sabedoria, e disto dão testemunho as civilizações anti-diluvianas e a tradição de todos os povos antigos, bem como as descobertas arqueológicas dos últimos tempos. Ninguém sabe a quando remontam os conhecimentos mais profundos, as grandes instituições e os mais altos monumentos do engenho humano.

Os selvagens contemporâneos, longe de representarem uma reminiscência do homem primitivo, são apenas escombros do que foram, restos de raças pertencentes muitas vezes a civilizações elevadas, como por exemplo os bororós do Mato Grosso Oriental, que guardam a tradição de uma cultura de que permanecem traços apenas na estrutura inteligente da língua. Das culturas pré-históricas poucos vestígios materiais nos restam, devido à ação destruidora dos agentes da natureza através dos tempos. Mas o que nos tem sido transmitido desautoriza essa volta ao fetichismo e ao instintivismo intentada pelos mentores da arte moderna. Do ponto de vista artístico, longe de ser levado pelos instintos, o homem antigo mostra um grande desenvolvimento intelectual. Eis porque Hipócrates dizia não duvidar de que "as artes hajam sido, primitivamente graças concedidas aos homens pelos deuses". Como estão longe da tauromaquia de Picasso os animais pintados ou gravados pelo homem pré-histórico na caverna de Lorthet, dos Altos Pirineus, e na gruta de Altamira na Espanha! Só com o advento da fotografia instantânea é que os artistas de hoje conseguiram reproduzir corretamente os animais em galope, em movimento, coisa que os seus ancestrais da segunda fase da época quaternária faziam admiravelmente bem.

REPÚDIO DO CRISTIANISMO

A realidade, portanto, é esta: não aceita a arte moderna a mensagem do Cristianismo e quer a volta do paganismo; despreza o dogma da Queda e, portanto, não pode admitir a salvação pela observância dos Mandamentos da Lei de Deus. Não aceita os homens na condição de pobres descendentes de Adão, herdeiros de sua culpa, mas quer o homem que desobedece ao seu Criador e entra no segredo mágico da árvore do bem e do mal... Inimigos dos planos de Deus, membros do corpo místico de demônio, que é o contrário do Corpo Místico de Cristo, os mentores dessa subversão satânica têm um código também à rebours para as palavras decadência e pureza: "Imaginar-se daí a decadência da mentalidade vanguardística é o máximo da incompreensão estética contemporânea. O vanguardista, como a criança, e até o esquizofrênico, é o indivíduo que conseguiu tornar à fase de pureza pré-histórica, desfazendo-se dos estúpidos preconceitos modernos; reage por isso por símbolos..." (8).

A perda da noção do pecado, eis um dos maiores flagelos do mundo moderno, segundo a voz de Pio XII. E a arte moderna eleva em sistema a destruição da noção do pecado.

Mas é preciso que não percamos de vista o fenômeno da revolução em suas várias frentes: temos aqui diante dos olhos, no setor das artes plásticas, apenas um recanto do sombrio laboratório em que todo um formigar de sábios, de filósofos, de cientistas, de artistas, de políticos, de sociólogos, de magos e feiticeiros, prepara o advento do filho da iniqüidade.

Continuaremos.

NOTAS:

(1) Osorio Cesar em "A Arte dos loucos e dos artistas de vanguarda" — edição de 1954.

(2) "Vida e Obra de Fernando Pessoa" por J. Gaspar Simões, pág. 234 do vol. 2o

(3) Oswald de Andrade em "A Marcha das Utopias", Estado de S. Paulo de 27 de setembro de 1953.

(4) Art. citado.

(5) "Arte abstrata ou charlatanice teosófica?", em CATOLICISMO, no 35, novembro de 1953.

(6) Herbert Read no "Journal of Royal Society of Arts", jan. 18, 1946.

(7) Cf. "... Et tu me suspendisti in patibulo Crucis", CATOLICISMO, no 28, abril de 1953.

(8 ) Neves Manta em prefácio ao livro cit. de Osorio Cesar.


VIRTUDES ESQUECIDAS

Difamar os maus para acautelar os bons

SANTO INÁCIO DE ANTIOQUIA

De uma carta aos cristãos de Éfeso (sec. XII):

SEI que alguns costumam traficar maliciosamente com o nome de Jesus, enquanto realizam obras indignas de Deus. Desses tais é preciso fugir como de bestas ferozes. São cães raivosos que mordem às escondidas, de quem deveis guardar-vos como de doentes contagiosos. ("Los Santos Padres", por Sigfrido Huber — Ediciones Desclée, de Brouwer — Buenos Aires — tomo I, p. 104).